sábado, 5 de março de 2022

"A filha perdida" e as escolhas certeiras nas adaptações de Elena Ferrante

Olivia Colman pegando um bronze numa praia grega
Se tem algo que o fã de Elena Ferrante ainda não pode reclamar é de como a obra da escritora italiana é adaptada para os meios audiovisuais. A série “A amiga genial”, que já está na sua terceira temporada, é quase uma cópia da sua tetralogia napolitana e tem um nível de qualidade que remete ao neorrealismo italiano ao mesmo tempo em que mostra um trabalho de atores, diretores, roteiristas, direção de arte e fotografia quase impecáveis. 

Adaptação de um romance anterior da escritora, “A filha perdida” (“The Lost Daughter”, no original) também não deixa a dever à série. O filme dirigido por Maggie Gyllenhaal consegue captar bem a essência da história de uma mulher que enfrenta os traumas do passado enquanto passa férias numa praia durante o verão europeu. 

Primeiro longa dirigido por Gyllenhaal, que também assina o roteiro, “A filha perdida” é bem sucedido também porque suas atrizes que dividem o papel principal, Olivia Colman, que faz a Leda madura, e Jessie Buckley, a Leda jovem, dão um show de interpretação à parte. 

Colman como a mulher mais velha, com seus traumas e remorsos, usa das sutilezas do seu olhar e do minimalismo de sua interpretação para passar todas as hesitações, dúvidas, incertezas e até um certo ar misterioso para a Leda de 48 anos que se sente uma mãe ruim pelas escolhas que fez no passado ao mesmo tempo em que não superou alguns traumas vividos na juventude. 

A Leda de Colman é mais experiente e a melhor versão de si mesma em que alterna hesitações com uma sabedoria tão latente que te faz querer conviver mais com ela, ainda que ela seja econômica em revelar-se. 

Ao mesmo tempo, sua personagem tem um ar nostálgico de quem deseja reviver alguns dos momentos mais libertadores de sua vida, como nas passagens do filme com Lyle (Ed Harris), mas algo a trava. Seja ela mesma ou o ambiente que se revela aparentemente inóspito. 

Já a Leda de Buckley é a natural jovem impulsiva com ânsia de viver, mas travada por um casamento, duas filhas pequenas e todos os freios sociais possíveis e imagináveis. Uma mulher que vai se revelando brilhante no mundo acadêmico ao passo em que vai sendo devorada por uma vida desonestamente assoberbada. Até que chega o dia em que ela joga a toalha numa atitude que gera consequências para toda a vida da personagem. 

Buckley está brilhante no papel de Leda jovem e mereceu demais sua indicação ao Oscar. Ela soube transmitir as dores, as crises e as frustrações da personagem, mas também um grau de sedução que a mesma deseja ressaltar. 

O trabalho de Gyllenhaal na direção também é notável. A diretora soube nos trazer a intimidade, a hesitação das personagens e seus plenos fechados nos levam a sentir a intimidade dos personagens, as incertezas, as frustrações latentes. Tudo isso é muito enriquecedor em um filme que é bem bonito visualmente.

Talvez a única nota negativa de “A filha perdida” seja mais algo menor. Mas em comparação com “A amiga genial” a série ganha por ser falada em italiano e estrelada por atores locais. É claro que, como já disse, os trabalhos de Colman e Buckley são impecáveis. Por outro lado, acho que o filme perde força porque americanos e britânicos estão tão fora do seu habitat natural que soa estranho todos ali passando dias na praia num verão europeu. E isso é algo muito europeu. 

Isso acontece porque, embora os temas de Elena Ferrante sejam universais, sua ambientação tem uma cor marcantemente local. Suas histórias são muito italianas. Quiçá muito napolitanas. Então soa estranho uma penca de personagens falando em inglês e comportando-se como tais italianos, ainda que o filme deixe bem marcado que eles não o são a partir de escolhas naturais da adaptação. 

Não ajuda o fato de o filme se passar na Grécia ao invés da Itália da obra original. No livro, a família que contracena com Leda é a típica – talvez até a partir de uma ideia generalista de quem lê a obra - família italiana numerosa e barulhenta que americano nenhum reproduziria no contexto específico que Ferrante descreve. 

Houve um estranhamento natural pelas escolhas da adaptação. Ainda que o trabalho de Gyllenhaal seja muito bom. 

Mas os acertos de “A filha perdida” são enormes. Ferrante definitivamente sabe para quem distribuir as suas obras para que elas permaneçam quase imaculadas quando saiam dos seus livros para ganharem vida em outros meios. 

Nota 8,5 



Nenhum comentário: