quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O cinema de resistência de Kleber Mendonça Filho

Domingas, um dos símbolos da resistência em "Bacurau"
É muito difícil escapar de uma leitura política contemporânea para “Bacurau” diante dos tempos difíceis em que o Brasil e lideranças importantes do mundo vivem. Em tempos em que a democracia é chacoalhada, a desesperança toma conta de corações e mentes e volta a imperar uma espécie de terraplanismo ético, estético, moral, filosófico e político, o cinema de Kleber Mendonça Filho grita para que a sociedade moderna, plural e multifacetada resista.

(ATENÇÃO PARA POTENCIAIS SPOILERS A PARTIR DAQUI)

Com três longas de ficção na carreira, Kleber, que em “Bacurau” divide o roteiro e a direção com Juliano Dornelles, sempre mostrou fazer esse cinema de resistência tendo o Nordeste e, em especial, a sua Pernambuco, como principal cenário de suas histórias. “O som ao redor” (2012) era sobre resistir a uma certa oligarquia e cultura dominantes, ao mesmo tempo em que uma espécie de milícia tomava conta de um bairro de classe média de Recife. Ali haviam todas as reflexões envolvendo a alta sociedade e a pobreza no entorno de um microcosmo num estilo de cinema que, por vezes, lembra o de Robert Altman. “Aquarius” (2016), por sua vez, era sobre uma resistência também ao poder de uma empreiteira e uma batida de pé da cultura e dos valores locais sobre a voracidade e a arrogância de quem comanda o mercado e tenta impor o poder econômico sobre indivíduos menos respaldadas por esse poder. 

É quando chegamos a “Bacurau” onde resistir é, acima de tudo, sobreviver. Ao contrário de seus trabalhos anteriores, Kleber, ambienta seu filme num futuro próximo distópico em uma cidade do interior do Nordeste, onde os habitantes vivem numa sociedade quase igualitária em que a comida é dada a quem precisa e as dificuldades com o fornecimento de água são dribladas pelo trabalho em conjunto. 

Em Bacurau, tudo funciona como uma engrenagem. Dos habitantes na entrada da cidade, passando pela médica vivida por Sônia Braga, os comerciantes, as prostitutas, e os habitantes e até os bandidos. Cada um tem a sua função para que a cidade não falhe. E a coesão dá um certo grau de fascínio a existência daquela cidade. Bacurau é um único organismo vivo. E como tal organismo, cada célula tem sua função e meios de defesa. 

Nada é por acaso nas cenas de “Bacurau”. Há uma explicação na placa próxima da cidade que diz “Se for, vá na paz”, que se percebe mais ao fim do filme e é complementada quando finalmente conhecemos o museu da cidade, frequentemente mostrado durante o filme e tão falado quando lá surgem os primeiros forasteiros. Entrar no museu é entender que Bacurau é essa resistência a quem tenta impor o seu domínio sobre a cidade. 

Resistência que está na marca de cada um dos seus habitantes, mas é principalmente refletida em Domingas (Sônia Braga) e Lunga (Silvero Pereira). A primeira é quase uma liderança intelectual da cidade junto com o professor Plínio (Wilson Rabelo). Os dois detém o conhecimento médico e histórico de Bacurau. O segundo é a força, a violência que, por vezes, é necessária para conter o avanço do inimigo. 

Inimigo este que na história é personificado por forasteiros americanos que surgem na cidade comandados por Michael (Udo Kier). E nesse choque entre os habitantes da cidade e os forasteiros, percebemos as sutilezas do discurso por trás de “Bacurau”. O avanço de uma máquina de dominação, o discurso extremista, os fins que justificam os meios, a violência sádica e desmedida. Tudo isso enquanto do outro lado há uma cidade que resiste e reafirma o seu modo de ser. 

Claro que está apenas é uma leitura possível de “Bacurau”. Uma tentativa de interpretação. Também podemos interpretar o filme como uma aventura distópica num futuro não muito distante onde cidades inteiras são transformadas em jogos de matar para ricos colecionadores de armas e "emoções". E podemos nos divertir de forma despretensiosa com essa narrativa com ecos no cinema de Quentin Tarantino. Mas é nos pequenos detalhes que “Bacurau” mostra sua grandeza. E quão grande e cheio de camadas interessantes este filme é. 

Cotação da Corneta: nota 9

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