terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Não se aposente, Daniel!

Belo vestido. Fui eu que fiz
Daniel Day-Lewis está se aposentando e a Corneta não está sabendo lidar com isso. Tudo porque ele não se aposenta decadente e como um fantasma dele mesmo como muitas vezes vemos acontecer com os atletas. Ele se aposenta com um personagem maravilhoso e um trabalho impecável.
Ao finalizar “Trama Fantasma”, Day-Lewis disse que foi sobrecarregado por um sentimento de profunda tristeza e que ainda tentava viver com isso. E disse ainda que não sabia exatamente o motivo da tristeza. Eu entendi perfeitamente. Seu Reynolds Woodcock é um dos personagens mais intragáveis, asquerosos e DEPLORÁVEIS que eu já vi. Provavelmente uma das figuras mais vis que o ator já interpretou. Tudo isso banhado pela trilha sonora de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead, banda especialista em músicas para cortar os pulsos.
E não é só isso. Para piorar, o diretor Paul Thomas Anderson conta a história desse renomado estilista da high society inglesa com uma classe e uma beleza que o prende numa maldita linha de costura te apertando numa roupa cheia de alfinetes.
(CUIDADO QUE AGORA VEM UM DESFILE DE SPOILERS)
“Trama Fantasma” é basicamente uma história de amor entre duas pessoas que não valem nada. Reynolds é um estilista cheio de mania, cheio de mi-mi-mi, cheio de frescurinhas, cheio de toques e que claramente teve uma infância em que foi excessivamente mimado pela mãe. Pior, o cara ainda tem que ter o cabelo impecavelmente escovado e só usa meias grená.
Tudo o incomoda. Não pode fazer barulho no café da manhã porque “o gênio está criando”, não pode mudar a rotina porque “o gênio fica abalado”, não pode fazer barulho chupando a sopa na colher porque “o gênio perde a concentração” enfim... é uma vida toda de negações para que o estilista possa criar os vestidos para as ladies da Inglaterra. E as roupas são encantadores porque realmente o cara é bom no que faz.
Só que Reynolds está entediado. Tem uma mulher que não o entretém mais e procura tratá-la com o seu frequente olhar de tédio e desprezo e a frase: “Estou trabalhando. Não me enche o saco”.
Até que um dia ele resolve ir passar um tempo na roça (o campo, em inglês vitoriano) e lá encontra a garçonete da sua vida. Logo de cara ele pensa: “Meu amigo, que tiro foi esse?”. Foi amor (ou o mais próximo disso) à primeira vista. E o que o encantou? Sua caligrafia impecável para escrever ovos e bacon e sua...barriguinha. Morram de inveja musas fitness e blogueirinhas. Ele se apaixonou pela moça porque ela tem BARRIGUINHA.
Mas como tem sempre que ser desprezível para manter a sua fama de gênio maldoso incompreendido, Reynolds diz: “Você não tem peito”.
“Desculpa. Eu posso colocar silicone”.
“Não, não precisa. Você é perfeita assim”, apressa-se a dizer.
Parecia uma vida de sonho para Alma (Vicky Kreaps). Era amada por um homem importante, poderoso e genial e que ainda fazia as roupas dela.
Mas logo a rotina daquela união ia começar a desagradá-la. Primeiro porque Reynolds desde sempre fazia questão de dizer que ela não era relevante na vida dele. Só mais uma peça no tabuleiro de xadrez, só mais uma linha na costura que se soltasse ele comprava outra e substituía.
E você agora poderia estar dizendo: “Mas isso é uma relação abusiva! Sai dessa, miga!”. Pode ser, mas Alma não tinha vocação para Amélia, meus caros. Para conquistar finalmente o amor daquele homem, para conseguir o que as outras não conseguiram, só transformando-se na sua versão feminina e sendo igualmente desprezível.
Alma foi à luta, colheu uns cogumelos venenosos (nunca confiei em comidas com cogumelos) e o deixou na SARJETA. O deixou dias sentado no trono chamando urubu de meu louro. Depois disso, não restou a Reynolds nada além de pedi-la em casamento. “Eu te amo (Amo-te em português de Portugal). Casa comigo? Você é a Alma do meu negócio?”
“Agora tenho esse macho no meu cabresto. Fiz esse Clodovil vitoriano comer na minha mão”, pensou a moça.
Nã-ná-ni-nã-não. Reynolds era carne de pescoço e logo a relação volta a dar curto circuito. Ele percebeu que casamento estraga qualquer criatividade e passa a colocar a culpa na mulher, é claro.
Obviamente, ela não ia deixar barato. Eis que temos uma das mais belas cenas do filme. “Ah é assim? Quer um omelete de cogumelos, my dear?” Alma o faz com muita manteiga só porque ele ODEIA manteiga. Mas ele come, come com gosto porque sabe que a dor vindoura libertará a sua criatividade para inventar vestidos incrivelmente brilhantes, mas nunca chiques porque chique é uma palavra horrenda.
Reynolds pensa: “Finalmente eu tenho uma mulher que me entende. Ela só precisa aprender a fazer aspargos, mas fora isso é perfeita”. E faz a declaração de amor mais asquerosa deste ano no cinema: “Eu te amo, garota. Me beije antes que eu vomite”.
Enfim. Dêem o quarto Oscar para Daniel Day-Lewis que ele merece. E só para aumentar o peso da bagagem na viagem que ele planeja fazer pelo mundo.
Cotação da Corneta: nota 8.
Indicações a careca dourado: Melhor filme, ator (Daniel Day-Lewis), atriz coadjuvante (Lesley Manville), diretor (Paul Thomas Anderson), figurino e trilha sonora.

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