quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A treta da patinação no gelo

Contemplem a minha maravilhosidade
Estar diante de “Eu, Tonya” é fazer a pergunta inevitável: patinação artística é esporte, educação física ou balé com patins? O filme de Craig Gillespie só ajuda aos que defendem a tese de que não é esporte. Afinal, por mais incrível que Tonya Harding (Margot Robbie, que está muito bem no filme) pudesse ser, a primeira parte do filme mostra que ela era sempre julgado pela sua aparência, digamos, menos clássica, e suas escolhas musicais pouco ortodoxas nas performances (meu Deus, o que esses caras tinham contra ZZ Top?). Ou seja, na patinação, não basta ser a melhor no que faz porque tem sempre um jurado de ALEGORIAS E ADEREÇOS para baixar a sua nota.
Pior, se toda a versão do diretor for correta - a reprodução dos momentos de competição, pelo menos, é impecável -, Tonya ainda era julgada pelo seu comportamento explosivo fora do ringue porque todos queriam um exemplo da família americana nas Olimpíadas de Inverno. Ou seja, além do jurado de alegorias e adereços, ainda há o jurado da MORAL E DOS BONS COSTUMES. E vocês ainda querem que eu considere patinação esporte. É bonito, mas onde está a avaliação técnica das performances? Onde está o nível Corneta de qualidade?
Mas “Eu, Tonya” não é apenas um filme, e, aliás, um dos melhores deste Oscar, sobre verdades acerca da patinação. É também sobre uma das maiores tretas dos esportes de inverno. É ainda mais um filme sobre como o esporte é tão belo quanto sujo e também sobre como escolher muito mal as suas amizades.
Falemos sobre o caso. Tonya Harding era uma atleta talentosa que foi a primeira americana a executar um triple axel numa competição. O triple axel é uma pirueta em que você dá três giros e meio no corpo no ar e aterrissa lindamente como princesa da Disney no gelo. É uma manobra muito difícil e raramente executado neste “esporte”. Tonya fez isso e ganhou notoriedade. Mas seu talento nunca foi o suficiente.
Vinda de uma família pobre com uma mãe que a agredia constantemente (vivida maravilhosamente bem por Allison Janney), Tonya tinha que se virar nos 30 para vencer na patinação. Isso incluía costurar as próprias roupas. Roupas estas que não agradavam aos jurados fancy.
No fim da adolescência, ela foi viver com o marido Jeff (Sebastian Stan), o que significou apenas uma nova mão para lhe bater. Esse casamento foi o maior erro da vida dela e custou a sua carreira.
Isso porque, após o quarto lugar nas Olimpíadas de Inverno de Albertville, na França, em 1992, Tonya ganhou a sua segunda chance graças à decisão do COI de mudar a data das Olimpíadas de Inverno para não coincidir com os Jogos de Verão. Ou seja, a próxima edição seria em 1994, em Lillehammer, na Noruega.
Tonya treinou feito um Rocky Balboa para entrar no time olímpico americano. Mas o seu marido e o seu guarda-costas Shawn (Paul Walter Hauser) acharam que podiam dar uma forcinha. Então, contrataram um cara para acabar com o joelho da grande rival de Tonya, Nancy Kerrigan (Caitlin Carver), a queridinha e princesinha dos americanos.
Por causa disso, Tonya quase perdeu a vaga na equipe americana. Aliás, o filme dá a entender que a atleta só foi mantida porque a CBS, que tinha os direitos de transmissão dos Jogos, estava de olho na alta audiência que obteria com a rivalidade Tonya-Nancy no ringue. Ah, o esporte. Por que eu não fico surpreso?
Tonya sempre negou que soubesse dos planos do guarda-costas toupeira (meu deus, ele realmente é um idiota que vive no mundo da lua) e do marido, mas no fim foi quem pagou o preço mais alto. Divino e terrestre. Afinal, ter problema no equipamento no momento da sua apresentação olímpica é coisa quase impossível e só causada pelos deuses do esporte. E na Terra porque foi quem pagou o preço mais alto ao ser banida da patinação.
No fim, ficou a sensação de que se fosse menos cabeça quente e tivesse uma família mais estruturada, Tonya Harding poderia ter ido bem mais longe na esporte. Suas glórias se resumem ao triple axel e uma prata no mundial de Munique, em 1991. E sua biografia acabou sendo manchada eternamente por esse episódio.
Nancy, por sua vez, conquistou duas medalhas olímpicas (uma prata justamente em Lillihammer após o ataque ao seu joelho), tem uma família fofa com dois filhos ginastas e diz que nunca recebeu um pedido de desculpas de Tonya. Ela diz que não viu o filme e não pretende ver. E afirma que a vítima disso tudo foi ela. Hoje, a ex-patinadora participa da “Dança dos Famosos” nos EUA.
Nancy tem suas razões. “Eu, Tonya”, de certa forma, pinta Tonya Harding como uma vítima. Do sistema, da mãe e do marido abusivos, da Justiça e do Comitê Olímpico. Por mais que também a mostre como uma figura irascível. Porém, não deixa de ser um belo filme feito com jeitão de documentário com seus depoimentos fakes dos personagens. Tudo para contar uma história para lá de surreal. Ainda não consigo acreditar no quão idiota era aquele guarda-costas.
Cotação da Corneta: nota 8.
Indicações ao careca dourado: melhor atriz (Margot Robbie), atriz coadjuvante (Allison Janney) e edição. 

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