domingo, 10 de janeiro de 2016

A vastidão do oceano

Ninguém conhecia o mar como Billy Duncan. O velho marinheiro tinha o oceano como a sua verdadeira casa. Afinal, passava meses viajando pela vastidão das águas até onde os mapas registravam e muitas vezes além. Toda vez que voltava de suas expedições, Billy tinha muitas histórias a contar. E ele descrevia as aventuras com riqueza de detalhes e provocava um fascínio generalizado. Eram histórias fantásticas. Difíceis de acreditar para os adultos. Mágicas para as crianças. 

Toda vez que Billy desembarcava no porto de Southampton era cercado por crianças.  Elas não se incomodavam com sua aparência asquerosa, a barba espessa e fedendo a uma mistura de sal e peixe podre. Nem reparavam na sua jaqueta azul meio rasgada pelo tempo de uso e as intempéries do mar. 

- Billy! Billy! Quantas baleias você matou? 

- Billy! Você conheceu selvagens? Eles existem mesmo? - gritavam as crianças que se aglomeravam no porto à espera de Billy. 

- Depois, garotos. Deixem-me primeiro tomar o meu conhaque na taverna do velho John, o manco - respondeu o marujo com a voz rascante que o tabaco lhe deu. 

Billy era o capitão do principal baleeiro da região. Por vezes, saia em jornadas longas pela vastidão do oceano a procura destes animais que podiam ser dóceis ou perigosos. Nunca se sabe como uma baleia pode se comportar. Mas elas poderiam ser bem mais agressivas quando sentiam o cheiro do baleeiro Fitzgerald III se aproximando. 

Na Inglaterra do início século XIX, era o óleo de baleia que impedia as cidades de mergulharem na escuridão quando a noite caia. Por isso, os homens desbravavam os mares em busca dos animais. Era uma questão de sobrevivência. E Billy era um dos melhores no seu ofício.

O mar não o desgastava. Era o sol no rosto que o deixava com um aspecto ainda mais envelhecido. Billy tinha 40 anos, mas parecia ter quase 60. Foi casado até os 35, mas a morte de Mary Duncan-Robinson de tuberculose com apenas 30 anos o deixou viúvo muito cedo. Nunca mais teve outra mulher. Casou-se com o mar. 

Logo que entrou na taverna, Billy foi saudado por John, o manco. 

- Ora, vejam se não é o bom e velho Billy Duncan. Eu sabia que você vinha desde que os navios desembarcaram no porto quando senti o fedor de peixe que o cerca. Como vai, Billy? - recebeu-o John, que andava com dificuldades em direção ao capitão do Fitzgerald III. 

- Pior do que ontem. Melhor do que amanhã - respondeu o marinheiro, já sentando em sua tradicional mesa ao fundo do estabelecimento. 

John já se dirigia em direção a Billy pronto para ouvir as suas histórias com a garrafa de conhaque. O dono da taverna mancava, pois fora esfaqueado numa briga há dez anos. O corte atingiu um nervo, enfim algo vital, e John nunca mais andou direito. Billy foi quem salvou a vida do dono da taverna e os dois ficaram amigos desde então. 

- Aparentemente nada mudou desde a minha última vinda nesta espelunca, John. 

- Você está enganado, Billy. Temos um forasteiro na área. Um alemão. Desembarcou há dois dias no trem de 15h23m na estação. 

- E o que um porco teutônico quer aqui em Southampton? - questionou o marinheiro, que não gostava de alemães. 

John, o manco, ajeitou o corpo na cadeira, abriu um sorriso debochado e disse: 

- Falar com você. 

Billy ficou surpreso. Não tinha nada a conversar com aquele alemão. Ou qualquer alemão. Nunca haviam entendido o motivo pelo qual ele não gostava de alemães, mas era no mínimo ousado um deles atravessar a Europa, singrar o Canal da Mancha e tomar um trem de Londres a Southampton só para falar com ele. Resolveu ouvir o que a figura germânica tinha a dizer. 

- Ele está aqui? 

- Sim, é aquele filhote de leite de cabra sentado ali no canto lendo o “Times de Southampton”. 

- Chame-o aqui. Se ele quer falar comigo, que venha até mim. Não moverei um músculo para me dirigir a um alemão. 

John virou-se para o alemão e gritou chamando-o. Disse para ele se sentar na cadeira em que estava, pois voltaria ao trabalho. 

O alemão obedeceu. Sentou-se e olhou para Billy. O marinheiro o encarava sem nada dizer. Foram poucos segundos assim, mas pareceu uma eternidade para o jovem. Ele se comportava como se estivesse diante de uma figura mitológica. 

- Qual é o seu nome, garoto?

- Walter, senhor. 

- Só Walter? Você não tem família? 

- Walter Benjamin, senhor. 

- Regra número 1 para você continuar conversando comigo. Eu não sou um "senhor". Senhor está no céu, um lugar para onde eu não vou, pois sou um assassino.

A palavra assassino deixou o jovem Walter mais branco que o topo das montanhas de Munique. Walter tremia. 

- Eu mato baleias. Mas você deve saber disso se veio me procurar. Bom, regra número 2: eu só aceito falar com gente como você com muito álcool na mesa. Logo, pague-me mais uma garrafa de conhaque. 

- Sim, senhor. Quer dizer, sim, é claro - respondeu o alemão, atendendo ao pedido. 

- O que você quer de mim? Se veio de tão longe, não foi para olhar para mim com essa cara de quem viu um fantasma. 

- De fato eu vim em busca de uma inspiração. Conversava com camponeses do interior. Mas quando me aproximei de Southampton conheci a sua história e queria ouvir mais do próprio. 

- Eu não tenho histórias, garoto. Eu só trabalho - interrompeu Billy. 

- Mas suas aventuras ecoam por toda a cidade. Seria incrível conhecer algumas delas. 

- E para que você quer saber o que eu faço no mar? 

- Eu busco inspiração para um romance que estou querendo escrever. 

Billy riu. Gargalhou debochadamente para ser mais preciso. Escritores ou pseudo-escritores não eram bem vistos por ele. Billy costumava dizer que não confia em homens que têm a mão macia. Era um sinal para ele de homens fracos, que não trabalham. Homens afeminados que não mereciam nada além do desprezo ou uma boa surra. 

Walter obviamente tinha mãos macias. Nunca fizera trabalhos forçados. Mas estava determinado a escutar a narrativa de Billy. Sabia que tinha ouro diante dele. Ouro para um romance épico que se passasse no mar. Precisava apenas dobrar o capitão. 

Mas Billy estava reticente. Nunca gostou de alemães. Imagina alemães de mãos macias. Estava quase encerrando a conversa quando Walter lhe ofereceu um pagamento em troca. Três xelins por hora de conversa. E mais a bebida. A melhor da taverna de John. 

Billy não quis conversa. Levantou-se da mesa, pediu desculpas a Walter, mas não contaria nada ao alemão afeminado. 

- Minha história eu já compartilho com o mar. 

Não era verdade. As crianças sabiam disso. Assim com John, o manco. Depois que Billy deixou a taverna, Walter foi conversar com John. Tentar uma ajuda pelo amigo de Billy. Precisava ouvir a história do homem que caçava baleias. 

John tentou fazer com que Walter desistisse de sua empreitada e voltasse para a Alemanha. Billy não falaria. Havia se tornado ainda mais introspectivo desde a morte da esposa. Ele só se abria com as crianças. E Walter não aparentava nem um pouco ser uma delas. 

Walter, então, retornou para a hospedaria onde estava há três dias. Antes de deitar-se acendeu o lampião. Ficou ali, diante da mesa contemplando as suas anotações. Olhou para a chama que queimava graças ao óleo de baleia que Billy trazia sempre que desbravava o mar. 

Nada daria certo. Nada faria sentido nessa história sem o depoimento dele, pensou. E foi dormir com essas palavras ecoando na sua cabeça. 

No dia seguinte, o tempo estava nublado em Southampton. Como de costume, Billy foi até a taverna beber. Eram assim os seus dias entre uma estadia e outra no mar. 

Desta vez, porém, deu atenção as crianças antes de entrar na taverna. De longe, Walter observava um Billy tão simpático com as crianças. Nem parecia o marujo carrancudo e intimidador que conversara com ele. 

O capitão não reparou que estava sendo observado. Estava perdido no seu mundo paralelo, na sua vida que acontece sem muitas emoções longe do barco. 

Depois de dar algumas moedas a um pobre mendigo que estava jogado na rua, Billy entrou na taverna. Cumprimentou John e sentou na mesma mesa que senta há 18 anos. Comeu um pão, pediu o ensopado da casa e degustou mais um copo de conhaque. 

Trinta minutos se passaram até que Walter tomasse coragem de abrir a porta e entrar no local novamente. Ao avistar o jovem alemão desprezível, Billy bufou de enfado. Walter pediu uma garrafa de conhaque e seguiu firme em direção ao marinheiro. Podia ter mãos macias, mas estava disposto a exibir a coragem de alguém da tripulação do Fitzgerald III.

- Eu podia estar bêbado, mas se a minha memória não falha, eu lhe avisei ontem que não conversaria com você – afirmou Billy, ainda irredutível. 

- Eu não me dou por vencido facilmente - retrucou Walter, com firmeza. 

- Há uma linha tênue entre a sabedoria que te impulsiona e a teimosia que te mata - retrucou Billy, colocando a sua faca em cima da mesa. 

Walter não se permitiu ter medo. Sua alma tremia, mas o corpo precisava se manter como uma rocha se ele quisesse sugar aquela experiência. Precisava ouvir para criar. E ninguém naquela cidade fria colada no mar tinha melhores histórias que Billy. 

John só olhava de longe a ousadia do jovem alemão. Era realmente um abusado, pensou. Mas admirava a sua insistência. Muitos teriam saído daquela taverna para nunca mais voltarem. Walter não apenas voltou como encarou Billy mais uma vez. 

- Eu não quero que você divida suas histórias comigo de graça. Estou disposto a pagar o preço que for. 

- Poupe o seu dinheiro, garoto. Eu não o quero. Em três semanas eu volto para o mar. Não preciso perder meus dias aqui com você. 

- Mas eu só preciso de algumas horas. E eu pagarei por isso. 

- Eu não quero dinheiro. Não quero conversar com você. Só quero ficar sozinho.

- Esse isolamento tem a ver com a sua mulher?

A lembrança de Mary era uma aposta arriscada do jovem alemão. Billy poderia ter um acesso de raiva e expulsá-lo a pontapés pelas ruas enlameadas de Southampton. Mas Billy não esboçou nenhuma reação intempestiva. Acendeu um cigarro, fitou seus olhos azuis fixamente no rosto de Walter e com a voz rascante de sempre o mandou embora. 

- Volte para a Alemanha. Volte para o lugar de onde você jamais deveria ter saído. 

Sentindo-se definitivamente derrotado, Walter levantou-se do banco. Vestiu o casaco e a taverna ouviu pela última vez as suas pesadas botas. 

Três semanas se passaram desde a conversa entre os dois. Walter não foi embora. Conversou com camponeses, ouviu donos de estabelecimentos, casais importantes da cidade. Queria uma história. Ou várias histórias para contar. Esteve tão envolto naquela cidade que se esquecia de coisas simples como fazer a barba. 

Quando voltou ao porto para conversar com alguns pescadores, Walter avistou Billy preparando-se para voltar ao mar. O capitão coordenava todos os subordinados. Não podia deixar faltar nada. Dos suprimentos da tripulação aos arpões que ajudariam o Fitzgerald III a trazer o óleo de baleia fundamental para a cidade. 

Walter pensou que não seria uma boa ideia novamente puxar assunto com Billy. Ainda que aquela fosse a sua última chance. Nunca mais se veriam a partir do momento que o Fitzgerald III singrasse o mar. 

Paralisado pelos pensamentos, nem reparou a chegada de Billy para falar com ele. 

- Ainda não foi embora, forasteiro? - perguntou o capitão.

- Estava pensando se você me daria uma última chance de conversarmos - retrucou Walter. 

- Não sabia que alemães tinham tanta fé. É culpa de Lutero?

- Não temos fé. Apenas somos persistentes. 

- Vá para casa, garoto. Tenho certeza que você colheu boas histórias da nossa comunidade nestas semanas. Vá para casa e escreva o seu livro. 

Walter pareceu desanimado com mais uma negativa de Billy, mesmo no momento da relação dos dois em que ele mais se mostrou aberto. Foi quando subitamente uma ideia louca passou pela sua cabeça.

- E se eu fosse com você? E se eu embarcasse com você?

- Um homem que sequer sabe amarrar direito as botas não tem condições de entra no meu navio - disse Billy, dando gargalhadas. 

- Tenho certeza que eu posso ser útil em alguma função do seu barco. Além disso, você perdeu dois tripulantes de última hora que ficaram doentes. Não precisa me dar uma função importante. Mas tenho absoluta certeza que posso ser útil. 

Walter tinha razão. E Billy sabia disso. A maldita tuberculose havia afetado dois dos seus homens, que não poderiam viajar. O jovem alemão poderia limpar o convés, ajudar na comida, além de outras tarefas que não exigissem tanta força ou uma precisão nos nós das cordas. Na pior das hipóteses, poderia virar isca de baleia, pensou maldosamente. 

- Se você não deseja contar a sua história, deixe-me vivê-la para entendê-la - suplicou Walter. 

- Você é abusado, garoto. Sabe que ficaremos até seis meses no mar? Enfrentaremos tempestades, calor, sem falar nas baleias que iremos caçar. Tem certeza que você quer isso mesmo?

Walter parou alguns segundos que foram uma eternidade. Pensou no que deixaria para trás, na aventura que viveria sem a certeza de que voltaria vivo, mas no fim estava determinado. O sim saiu com a firmeza de um homem apaixonado diante do casamento. 

Billy se aproximou dele. Lançou seu olhar ameaçador. Sua barba fedia a peixe, mas Walter não hesitou. Nem reclamou. O capitão pegou um saco de batatas e jogou nos braços de Walter. Aquilo devia pesar uns 30 quilos, mas o jovem alemão aguentou. Ou fingiu muito bem que aguentou. 

- Ei, George! Temos um novo marujo. Coloque-o na cozinha. Dizem que alemães sabem fazer batatas - gritou Billy Duncan. 

- Pode deixar, capitão. 

Assim, Walter embarcou no Fitzgerald III. Quando as âncoras do navio foram levantadas, ele não tinha mais como voltar atrás. Estava preso por pelo menos quatro meses naquele navio e com aquela tripulação. 

Torceu para que tivesse tomado a decisão correta. E pensava sobre isso enquanto observava o seu primeiro pôr do sol do convés do navio. 

- Tenho que admitir que você teve colhões ao entrar neste navio, garoto - surpreendeu-o Billy Duncan. 

- Eu também não acreditei no que eu fiz. Mas era preciso fazê-lo - respondeu o jovem alemão. 

- É bonito, não é? O sol se pondo no mar? - perguntou o capitão tomando uns goles da garrafa de conhaque que levará ao convés. 

- Nunca vi nada tão belo na minha vida – respondeu o alemão, verdadeiramente admirado. 

O vento estava bom e o barco navegava em boa velocidade mar adentro. Aquele seria um dia calmo da viagem do Fitzgerald III. 

- Imagino quantas outras coisas belas verei nesta viagem. E horríveis também, é claro. 

- Lá - disse Billy, apontando para a costa que não era mais possível ver. - Você vivia em uma redoma de segurança. Aqui, garoto, você verá a vida. 

Com estas palavras o capitão se despediu. Entregou a garrafa de conhaque para Walter, deu dois tapas em suas costas e voltou para os seus aposentos. Já era noite. Walter tomou um gole da bebida e olhou para a imensidão do mar com o seu silêncio sendo interrompido apenas pela passagem do navio. 

Ficaria assim por uns bons minutos antes de se recolher para dormir. Sua aventura estava apenas começando.

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