domingo, 6 de novembro de 2011

O thriller de Almodóvar

Elena Anaya como a misteriosa Vera
Pedro Almodóvar é responsável pelo que talvez seja o vilão mais cruel, traiçoeiro e frio que eu vi neste ano no cinema. O cirurgião plástico Robert Ledgard é a personificação da perversão no trabalho que marca o reencontro do diretor espanhol com o ator Antonio Banderas depois de 21 anos. Desde “Ata-me” (1990), Banderas, hoje com 51 anos, não era dirigido por Almodóvar. Nestas duas décadas, o ator colecionou alguns bons filmes – “Entrevista com vampiro” (1995), “A balada do pistoleiro” (1995) – e muitas bombas dispensáveis.

Banderas nunca foi necessariamente um ator fantástico, mas engana direitinho num filme azeitado. É o que acontece em “A pele que habito”. Na nova película de Almodóvar, ele é Ledgard, o tal vilão maquiavélico que eu descrevi acima capaz de traçar e executar um plano tão bizarro e perverso que faz o thriller de Almodóvar dar uma virada de embrulhar o estômago.

Ledgard é um bem sucedido cirurgião que faz experiências transgênicas para criar uma pele que seja resistente a picadas de mosquito e queimaduras. Por trás da obsessão do cirurgião está um dos seus traumas: a morte da mulher, que comete suicídio meses depois de ficar completamente queimada após um acidente de automóvel em que o carro em que ela está com o amante e irmão de Ledgard pega fogo.

Claro que muito do que ele faz não é considerado legal pela comunidade científica. Por isso usa a sua própria mansão para as suas experiências. Entre elas, está manter a misteriosa Vera (Elena Anaya) presa num dos quartos vestindo apenas um collant que cobre o seu corpo todo, cuja pele é, nas palavras do cirurgião, extremamente macia. Uma pele perfeita como a que ele sonhara.

Vera tem papel fundamental na trama de Almodóvar. Dentro do intrincado roteiro escrito pelo cineasta, ela é a personificação da esposa morta de Ledgard, mas quem assiste ao filme descobrirá que ela é muito mais do que uma personagem que atiça os desejos não apenas de Ledgard, mas do seu irmão.

Vera não é o único ponto fraco do cirurgião numa trama cercada de vingança e paixão de um homem frágil e à mercê das mulheres que o cercam. O trauma com a morte da mulher potencializa com o destino semelhante da filha Norma (Blanca Suárez), menina que está em tratamento de uma fobia social, mas acaba quase sendo estuprada numa festa por Vicente (Jan Cornet), jovem que apronta muito em Toledo, mas vai pagar caro por este último ato. Após acordar de um desmaio, Norma acha que foi estuprada pelo pai, tem que ser novamente internada, e acaba dando cabo da vida da mesma forma que viu a mãe fazer.

No thriller de Almodóvar, canções abrem portas traumáticas na mente, os personagens são psicologicamente perturbados e mesmo as mulheres fortes que são a marca de seus trabalhos revelam alguma fragilidade. Todos tem algum ponto fraco que os despedaça, uma carência que fragiliza.

“A pele que habito” é um thriller clássico, mas tem o toque do diretor espanhol nesta sua primeira incursão neste gênero. O bom humor que é uma das marcas dos seus filmes, assim como as cores fortes, são deixados um pouco de lado em nome de um forte clima de suspense. Mas os temas homossexuais e fortes sentimentos de desejo e paixão estão lá expostos em carne viva a cada passo de Ledgard, o vilão frio e calculista que terá o destino clássico em um filme tenso em que Almodóvar tem o mérito de abrir uma nova pasta nos arquivos de thriller da produção cinematográfica.

É impossível não sair incomodado de uma sessão de “A pele que habito”. Almodóvar usa o tema da cirurgia plástica para dissecar a alma e fazer refluir dela o monstro que habita o inconsciente humano. Ou ao menos aqueles que estão entre os mais perversos deles. E o desfecho de sua experiência é um trabalho que resulta num dos melhores filmes do diretor neste século e talvez um dos melhores de sua filmografia.

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