quinta-feira, 24 de março de 2011

Discutindo a relação, a arte, a vida

Existe uma vantagem em não conhecer o trabalho prévio do cineasta iraniano Abbas Kiarostami. É assistir ao seu mais recente filme com um olhar diferente de quem detém o conhecimento de sua elogiada obra. O olhar que tem o frescor da novidade é beneficiado pela visão de originalidade e pela ignorância da impossibilidade de comparar. Sem poder tecer teias de relacionamento, nada me parece cópia de algo, mais do mesmo ou inferior ou superior a um filme A ou B do diretor.

Por coincidência a questão orignalidade-cópia é um dos temas abordados em “Cópia Fiel”, o trabalho em questão que representou a minha, digamos, perda de virgindade, com a obra de Kiarostami.

Numa bela e não identificada cidade da Toscana, o escritor inglês James Miller (William Shimell) vai dar uma palestra para falar sobre o seu novo livro, “Copie Conforme”, título original do filme. Lá ele expõe suas ideias acerca de obras de arte ou coisas comuns e do valor que damos a ela que a fazem ter um valor maior ou menor de acordo com a maneira como a vemos. E abre a polêmica do seu livro ao dizer que uma cópia não deixa de ser uma homenagem à obra original.

Não muito atenta à palestra e mais preocupada com o filho jogando videogame ao lado está a francesa Elle (Juliette Binoche). Dona de um loja que faz cópias de obras originais, ela parece apenas mais uma leitora em busca de alguns livros autografados para os amigos e conhecidos e que tinha reservas quanto ao trabalho do escritor.

Mas os dois vão se encontrar e iniciar uma análise sobre a arte e o valor da originalidade e de reproduções num debate filosófico que ultrapassa a fronteira da produção em si e entra nas pequenas coisas como a natureza ou o comportamento das pessoas.

Enquanto não chega a hora de o escritor pegar o trem e seguir viagem, um novo tema entre no debate entre Elle e James. É quando o filme de Kiarostami abandona parcialmente o tema filosófico de antes e entra numa grande discussão de relação com a francesa expondo ao inglês todas as suas frustrações após 15 anos de casamento em que para ele não existe mais aquele amor que ela vê nos jovens casais que acabam de se casar ali naquele vilarejo. Um ritual importante para ela, mas que não tem sentido para ele, que julga saber o que o futuro reservará para estes casais tão empolgados com o início da vida a dois.

Nesse momento em que descobrimos um pouco mais da dupla, o filme parece que vai mudar de tema repentinamente, mas a questão central desse debate filosófico permanece: o valor e a importância que cada coisa tem a partir de um olhar específico e único de cada um.

E é com a arma, o livro e os argumentos de Miller que Elle vai trabalhar sobre a importância das pequenas coisas que marcam a diferença entre o relacionamento que permanece vivo e outro que jaz a sete palmos.

Autor também do roteiro da película, Kiarostami faz questão de fazer Miller cair em contradição numa cena em uma pracinha em que se discute o valor e a importância de uma estátua aparentemente sem conteúdo artístico. É ali que Elle reforça seus argumentos ao mesmo tempo em que Miller acaba recebendo pequenos conselhos sentimentais de um idoso vivido pelo escritor Jean-Claude Carriére.

“Cópia Fiel” guarda semelhanças com “Ponto de Mutação”, filme de 1990 do diretor Bernt Amadeus Capra em que uma cientista interpretada pela sueca Liv Ullmann, que vive reclusa no Monte St Michael, na França, expõe sua filosofia de vida abrindo um debate com um político americano e um poeta interpretados, respectivamente, por Sam Waterston e John Heard, entre caminhadas por belos e/ou soturnos cenários.

A Toscana de Kiarostami é mais ensolarada que o monte St. Michael de Capra, da mesma forma que o tema do cineasta iraniano é menos hermético do que o do diretor austríaco. Mas a essência do ponto de vista do estilo dos dois trabalhos é a mesma: duas ou três pessoas num debate de ideias que desperte a reflexão no espectador e talvez alimente um prolongamento da conversa ao subir dos créditos.


“Cópia Fiel” dividiu opiniões em Cannes, mas se é preciso assumir uma posição, fico entre os que o aplaudiriam sem o menor esforço. É um trabalho que aos meus olhos, assumiu um grande valor de forma semelhante ao que “Ponto de Mutação” marcou lá atrás a minha vida escolar. Agora dá licença que eu vou correr atrás de conhecer os outros trabalhos de Kiarostami.

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