sábado, 29 de abril de 2017

Poesia no ônibus

Driver no busão, mas escrevendo poesia
Todo tirano mau feito pica-pau tem seu lado sensível. Quando não está querendo matar o próprio pai (isso não é mais spoiler, né) em "Star Wars", Kylo Ren leva uma vida pacata e feliz numa pequena cidade de New Jersey escrevendo poesias. Ok, eu misturei tudo. Mas permitam-me a licença poética para falar desse novo trabalho de Adam Driver em parceria com o cineasta Jim Jarmush. 

"Paterson" é um filme sobre poesia. E desde já amamos só por isso. Ele fala sobre um motorista de ônibus que tem duas qualidades singulares. Escreve poemas e acorda diariamente na hora para trabalhar sem precisar de um despertador.  Qual é o seu segredo Paterson (Adam Driver)? Se você vendesse ele ganharia mais dinheiro do que escrevendo poesias no seu caderninho secreto. 

Todo dia Paterson faz tudo sempre igual. Desperta às 6h da manhã, beija a namorada Laura (Golshifteh Farahani), faz o café da manhã, sai para trabalhar e pega o ônibus 23 de Paterson (sim, ele tem o mesmo nome da cidade), faz as suas oito horas de trabalho, com uma hora de pausa para o almoço, e volta para casa. Mas o seu trabalho não para por aí. Ele ainda tem que levar o cachorro para passear. Neste meio tempo, aproveita para dar uma parada no bar de Doc (Barry Shabaka Henley) para beber sua sagrada e singular caneca de cerveja. 

É assim de segunda a sexta, com pequenas variações. Surpresas que a vida lhe apresenta. Um ônibus quebrado, um maluco ameaçando se matar por amor com uma arma de brinquedo. Coisas pequenas. Afinal, dirigir em Paterson não tem a mesma emoção do que o Hell de Janeiro selvagem. Nem de longe o 23 de Paterson se assemelha à riqueza de histórias e bizarrices de um 410.

Mas é justamente da observação da vida comum que Paterson, o motorista fã de Williams Carlos Williams, extrai a sua poesia. Há poesia em tudo. No amor pela namorada que o compreende mesmo ele sendo um analógico que não sabe mexer em aplicativos e nem tem um celular, à caixa de fósforos com letras que parecem megafones. Há poesia na vida banal. Só é preciso observá-la atentamente. E lapidar a poesia por entre as pedras que são banhadas pela cachoeira. 

O motorista de Driver é justamente esse cara quieto que tenta ouvir a pequena música que flui das observações cotidianas. É monossilábico, pois prefere observar. Sua arte é secreta e voltada para si. Ao contrário de Laura, a namorada que faz da própria casa dos dois um ateliê concretista/modernista com suas pinturas com círculos e faixas em preto e branco. Até os cupcakes dela tem essa assinatura. 

Paterson, porém, sofre da modéstia e melancolia e não observa a poesia que existe na sua própria vida. Um motorista de ônibus de Paterson, a terra se William Carlos Williams e onde Allen Ginsberg passou uma temporada. É de uma conversa com um turista japonês que ele acaba ganhando novo fôlego para recomeçar após uma tragédia pessoal. 

Cabe ao mesmo turista também dar uma grande lição sobre a poesia neste bonito filme de Jim Jarmusch: "Poesia traduzida é como tomar banho com capa de chuva". Uma grande verdade. E talvez por isso o diretor tenha adotado a ideia de escrever os poemas na tela enquanto Paterson os recita. Ficou bonito. 

Cotação da Corneta: nota 8

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