segunda-feira, 23 de março de 2015

O taxista nostálgico

O taxista nostálgico estava impossível naquela noite. Ainda não engolira o passageiro que pegara uma hora antes e tentara humilhá-lo. Era um típico playboy da South Zone do Hell de Janeiro querendo impressionar a gatinha da vez que ele estava pegando. Mas voltemos um pouco no tempo. O tempo em que um operário das palavras encontrou o taxista nostálgico.
No rádio, Rita Lee exibe todo o seu talento. O taxista aumenta o rádio e começa a cantar. "E nem só de cama vive a mulher/Por isso não provoque/É cor de rosa choque".
Exibindo uma boca com sorriso largo que revelava a ausência de laterais no sistema defensivo, o taxista para a cantoria e comenta:
- Isso é que é música! Rita Lee, parceiro! Não se encontram mais cantoras como a Rita Lee. Quem é que seria capaz de fazer uma poesia como essa hoje? Um funkeiro? Nada. Espera sentado. Vocês vivem na pior - disse o taxista no alto dos seus 50 e muitos anos para o operário da escrita.
- No meu tempo de jovem, na sexta-feira eu escolhia o que eu ia ver no Circo Voador. Era Rita Lee, Cazuza, Raul Seixas... Eu conheci todos eles. Para não falar no Legião Urbana. E o que eu deixei de herança para vocês? Anitta! Hahahaha - gargalhou diabolicamente o taxista.
- Alto lá! Anitta não é do meu tempo não! É para os mais jovens - argumentou o operário das palavras.
- Agora há pouco peguei um rapaz todo metidinho. Acho que ele queria impressionar a mulherzinha que ele tava comendo e começou a esculachar as músicas que eu estava ouvindo no rádio, falando que era coisa de velho - disse ele, frequentemente tirando as duas mãos do volante para dar emoção à viagem. - Foi quando eu comecei a acabar com ele em todas as áreas da vida.
A partir daí, o taxista nostálgico exibiu todo o museu de grandes novidades de sua existência. E o tempo, como o taxímetro, não para.
- Eu desfilei em escola de samba, sabe. Ai falei para ele. Cara, eu desfilava na avenida com a Pinah. O que você tem hoje? Claudia Leitte! - vangloriou-se ele, dando novas gargalhadas de lobo mau que comeu os três porquinhos e gesticulando muito enquanto olhava para o operário da escrita. Afinal, o trânsito está sempre livre e os sinais estão sempre abertos para o táxi.
- Acabei com ele em todas as áreas. Música? Rita Lee, Legião, Cazuza. E você tem o que? Mr. Ca-tra? A-nit-ta? Fala sério - completou ele falando daquele jeitinho debochado e fazendo questão de separar as sílabas dos artistas que desprezava.
O taxista nostálgico é o típico carioca de almanaque. O léxico é rico em gírias e palavrões intercalados pela construção dos pensamentos. Ele tem ainda aquela fala malemolente, espécie de cruzamento de Evandro Mesquita com Fernanda Abreu. E, claro, adora futebol, uma especialidade do brasileiro médio. Flamenguista, o taxista faz uma revelação.
- Eu era da torcida do Flamengo. Naquele tempo só tinha craque. E a gente conhecia todo mundo de frequentar a casa. Zico, Júnior, Leandro. Quando tinha aniversário eles sempre chamavam a gente. E ai deles se não chamassem - disse o taxista, revelando as práticas "carinhosas" das torcidas organizadas desde tempos imemoriais.
Vejam bem, o taxista nostálgico desfilou com a Pinah, foi de torcida organizada, conhecia craques do futebol. Eu não sei como ainda não lançou uma biografia. Mas ele queria mesmo era contar como achincalhou o playboy.
- Acabei como ele. Naquela época todo time tinha craque. Zico, Roberto, o Fluminense tinha um jogador. Como era mesmo o nome?
- Romerito?
- Isso! Jogava demais o Romerito. O Vasco tinha um timaço também. Nunca ganhava do Flamengo, mas era um timaço. Enquanto isso, o rapazinho aqui tem que aguentar Lu-cas Mug-ni. Porra, vai tomar no cu. Acabei com ele.
A viagem está chegando ao fim. Não sem antes o taxista nostálgico simular lances do Zico tirando as mãos do volante e os pé da embreagem e do acelerador. E revelar velhas praticas da torcida rubro-negra.
- A torcida do Flamengo era foda. Botava 60 mil pessoas no Maracanã contra o Bonsucesso. Jogava junto. Mas também cobrava. Quando tinha jogador na noite, a gente ia em cima deles. Qual é? Está fazendo o que aqui? Tem jogo amanhã, parceiro. Por isso que o Zico tem toda a moral que tem. Nunca foi para a noite. Foi aquela mulher, a Sandra, que deu um jeito na vida dele.
Já o Marcelinho Carioca não gozou do mesmo prestígio.
- Isso era um filho da puta. Perdeu um pênalti contra o Vasco. Uma vez teve uma festa na casa do Júnior Capacete e nós da torcida fomos. Lá na festa juntamos ele. Se o Júnior não impedisse, a gente ia encher ele de porrada. Saiu daqui correndo.
- Para brilhar no Corinthians - provocou o operário das palavras.
Um breve silêncio tomou conta do taxista nostálgico. Mas ele logo voltou a falar dos seus dias gloriosos de manda-chuva informal da Gávea. Eram bons tempos aqueles, mas hoje ele garante estar sossegado. Ajeita os óculos de aro grosso e traça as linhas presentes de sua biografia.
- É uma vida dura a de taxista. Trabalha sábado, domingo, feriado... Mas eu não reclamo não. Eu vivi - disse ele, dando aquela ênfase de quem sentiu a vida empiricamente.
Chegamos ao destino.
- É R$ 30, parceiro.
- Taí.
- Obrigado. E vai com Deus. Até a próxima.


O taxista nostálgico aumenta o som do rádio e segue revigorado pelas ruas do Hell de Janeiro. De certa forma, naqueles minutos, ele viajou no tempo para aquele Circo Voador e aquele Maracanã que não voltam mais.

Nenhum comentário: