sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Cotação da corneta: 'Livre'

Cheryl e sua mochila básica
"Meu nome é Cheryl Strayed. Eu era uma jovem, que tinha uma vida regrada e cursava a mesma faculdade que a minha mãe. Mas um dia mamãe ficou doente e veio a falecer. Eu perdi o meu chão. Me emburaquei nas drogas, dei para todo cara que me pagasse uma bebida. Trai meu marido incontáveis vezes. Fui ao fundo do poço e dei um mergulho na heroína antes de perceber que eu tinha que dar a volta por cima. Precisava me afastar do que me destruía, e até das pessoas que amo. Isolei-me três meses numa trilha. Muitas vezes pensei em desistir, tive medo, sofri com a fome e o frio. Mas essa foi a experiência que eu vou levar para sempre na minha vida. Porque se você quer algo, tem que lutar para conseguir. Eu venci. Eu renasci. Casei, tive filhos. E agora estou aqui para contar minha história. Essa é minha vida, esse é meu...” Bem, vocês sabem como termina a propaganda.

A corneta nesta semana foi examinar a cota autoajuda do Oscar. Vocês sabem que todo Oscar tem a sua cota autoajuda. Filmes edificantes, histórias de vida que inspiram o povo e atenuam as dores cotidianas. No ano passado era “Philomena” (o filme autoajuda nem sempre é ruim, pode ser ótimo também) No retrasado era “As aventuras de Pi”. Neste ano, a historia edificante poderia ter sido "Invencível". O problema é que o novo filme de Angelina Jolie não é grande coisa. Não dava para concorrer em nada além do que três categorias técnicas, ainda que a história do ex-atleta olímpico Louis Zamperini seja bem mais interessante que a de Cheryl.

Interpretada por uma Reese Whiterspoon que também resolveu renascer depois de algumas bombas na carreira - como não esquecer “Água para elefantes” (2011), um filme horripilante até no título? -, Cheryl é a jovem de "Livre". Em uma história “baseada em fatos reais”, a moça vai além do limite da dor até resolver buscar uma forma de purificação. Sua ideia era se enfurnar por três meses numa trilha que passa pela fronteira do México e vai até o Canadá.

Era a famosa Pacific Crast Trail (PCT), praticamente o Iron Man dos praticantes de trilhas. A PCT oferece enormes desafios e dependendo da época do ano você tem que enfrentar tanto um calor de 38ºC e seca em um deserto, quanto o frio de montanhas cobertas de neve. É chapa quente. Não é para amadores.

Mas Cheryl, então com 26 anos, era amadora. O problema é que ela também precisava cumprir a sua via crúcis particular e não dava para fazer isso subindo a trilha do Morro Dois Irmãos. Também não dava para resolver o problema fazendo o Caminho de Santiago, pois isso era mainstream demais já na época dela (década de 90).

E Cheryl precisava de um certo isolamento. Necessitava da abstinência da vida louca vida que levava para encontrar um sentido para a sua existência. É ou não é um enredo perfeito de autoajuda?

No filme de Jean-Marc Vallée, acompanhamos toda a jornada de Cheryl. As dificuldades enfrentadas, as pequenas conquistas, as amizades que vem e vão ao sabor da trilha. Tudo com frases marcantes de nomes como o poeta Walt Whitman em suas pausas. Afinal, não existe autoajuda sem frases de efeito.

A jornada de Cheryl é contada com competência por Reese, que nos devia algo assim desde que fez June Carter, a esposa de Johnny Cash em "Johnny e June" (2005). Por este papel, ela ganhou um Oscar de atriz coadjuvante. Agora concorre na categoria principal do careca dourado, enquanto Laura Dern, que faz a sua mãe no filme, está na disputa da estatueta de coadjuvante. Algo que soou como um certo exagero.

"Livre" pode inspirar almas em conflito da mesma forma que "Na natureza selvagem" (2007). Com a vantagem de ter um final feliz. Por outro lado, o filme é tão lindinho demais (até os problemas são incríveis), tão fofinho e certinho demais, com aquele clima “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”, que às vezes parece meio boring. São várias situações se repetindo e uma série de personagens desinteressantes durante a trilha de Cheryl. Uma amiga me disse que o livro é bem mais rico. Contudo, isso não se refletiu na película.

Se é preciso reconhecer o bom trabalho de Reese, "Livre" é inferior ao último filme de Vallée, o "Clube de compras Dallas" (2013). Este trabalho, por sinal, rendeu dois carecas dourados para seus principais atores. (Matthew McConaughey e Jared Leto). Será que um raio cai duas vezes no mesmo lugar? Cientistas dizem que sim. Mas neste caso específico do Oscar, é improvável que aconteça. E no balanço final da corneta, “Livre” ganhará uma nota 5,5.

Indicações ao Oscar: Atriz (Reese Whiterspoon) e atriz coadjuvante (Laura Dern).

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