sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Cotação da corneta: 'Abutre'

Gyllenhaal louco por uma tragédia
Um dos meus momentos favoritos do irascível francês Eric Cantona foi quando, em 1995, ele abandonou uma coletiva de imprensa dizendo a seguinte frase aos jornalistas: “Quando as gaivotas seguem a traineira, é porque elas pensam que sardinhas serão atiradas ao mar”. Na ocasião, o ex-jogador do Manchester United deveria se explicar sobre a famosa voadora que deu em um torcedor do Crystal Palace durante uma partida do Campeonato Inglês. Bons tempos em que jornalistas eram considerados “gaivotas”. Para o diretor Dan Gilroy, jornalistas agora são como abutres atrás de carne podre que servem de matéria-prima para alimentar seus telejornais diários. Pelo menos os que saem pela noite atrás de tragédias.

Esse espécie de farejador do horror noturno também tem um jeito de psicopata com aquele olhar de quem é filho de Jack Nicholson, em “O Iluminado” (1980) após anos de terapia. Para não falar no visual cabelo boi lambido de Anton Chigurh (Javier Bardem) de “Onde os fracos não têm vez” (2007).

Mas vamos direto ao ponto. “O Abutre” é bom. Bem bom. Conta a história de um zé ninguém, que vive de roubos de tampas de bueiro e cabos de cobre, não consegue emprego em lugar nenhum e aparentemente mal tem dinheiro para comprar uma mariola. Mas um dia tem um insight e vislumbra uma possibilidade de faturamento ao se deparar com uma equipe de TV independente que filma um carro em chamas enquanto a motorista é resgatada pelos bombeiros.

Louis Bloom (Jake Gyllenhaal, muito bem no papel e cotado para o Oscar) desperta neste instante o seu tino empresarial. Compra uma câmera de vídeo e sai pelas ruas para mostrar a vida como ela é nas madrugadas de Los Angeles. Afinal, ele sabe que o povo quer ver sangue. Quanto mais batidas, assassinatos e tripas expostas, mais audiência.

Mas, vocês sabem, com o tempo a vida real vai ficando um tanto enfadonha e Louis sente a necessidade de evoluir, burilar melhor suas notícias. Aumentar sem inventar (muito). Ele acredita estar crescendo no negócio. Logo, quer transformar seus vídeos em verdadeiras obras de arte.

E Louis se esforçará na arte de criar a sua obra-prima televisiva para deleite das massas sedentas por sangue no café da manhã. Nem que para isso tenha que passe por cima de concorrentes e aliados pouco confiáveis.

"O Abutre" pode ser visto como uma crítica de Gilroy ao jornalismo sensacionalista que tanto vemos e consumimos (não me venham com essa história de que vocês só leem Marcel Proust e nunca clicam naquelas chamadas do tipo "Fulana esquece calcinha em casa e mostra demais em festa. Fotos"). É um filme em que um cidadão vai além dos limites éticos e morais para conseguir o seu objetivo.

E adoramos estes personagens malditos. Principalmente quando são bem feitos. Ok, é impossível torcer por Bloom conforme acompanhamos o que ele vai fazendo no filme. Mas é igualmente impossível não querer ver o que ele vai armar no seu próximo vídeo e qual será o seu próximo passo além do limite. É uma boa jogada do diretor, que vai esticando a corda a cada passo e mostrando a audiência da TV para a qual Bloom trabalha só melhorando seus índices. E, consequentemente, Bloom vai faturando cada vez mais.

Mérito também de Gyllenhaal, que pode agora ganhar sua segunda indicação ao Oscar. A primeira foi por ator coadjuvante em “O segredo de Brokeback Mountain” (2005). Enquanto os velhinhos do careca dourado não se manifestam (os indicados saem dia 15 de janeiro), a corneta dará a ele e ao seu filme uma nota 7,5.

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