sexta-feira, 6 de abril de 2012

Entre muros e tijolos

Waters com o muro-telão ao fundo
Num determinado momento, ali pelo meio do show no Engenhão, uma amiga vira para mim e diz: "Esse cara fez muita análise". No que eu rebato: “Não, ele fez o "The Wall". Essa foi uma das conclusões que tirei ao ver de perto o espetáculo que Roger Waters fez no estádio no Rio de Janeiro.

Cinco anos depois de ter trazido para o Rio, mais especificamente na Apoteose, a íntegra do disco “Darkside of the moon” (1973) – e mais outras tantas canções num show de mais de duas horas -, Waters voltou à cidade desta vez para um projeto ainda mais ambicioso: expor suas vísceras novamente com a ópera-rock “The Wall”, disco igualmente clássico lançado em 1979 que foi idealizado principalmente por Waters, mas também contava com a fundamental participação de David Gilmour nas faixas mais conhecidas e que se eternizaram no coração dos fãs do Pink Floyd.

No Engenhão, Waters não está mais com os parceiros da velha banda Gilmour, Nick Mason e Richard Wright. Compensa a ausência do trio com nove músicos que o acompanham nessa jornada lisérgica que exorciza monstros interiores e aponta para as nossas fraquezas, temores e insignificâncias.

Além dos membros da turnê que passam o show erguendo o muro num espetáculo visual incrível (um dos muitos, aliás), estão ali para compensar a ausência do trio restante do Pink Floyd os vocalistas Robbie Wyckoff, Jon Joyce, Kipp Lennon, Mark Lennon e Pat Lennon, os guitarristas Snowy White e Dave Kilminster, que faz os solos de “Comfortably Numb” e “Another brick in the wall – part II”, o baterista Graham Broad, o guitarrista e baixista G.E. Smith e os tecladistas Jon Carin e Harry Waters, o filho do homem que vê ali do palco, enquanto toca, um pouco da história da sua família e de como papai via os vovôs.

“The Wall” é mais que um espetáculo musical. É uma experiência sensorial. É melhor do que qualquer filme 3-D que você tenha visto no cinema. Em todo lugar há o que ver e ouvir. É o som fantástico do álbum clássico de 81 minutos, é o muro que é construído, o muro que vira um mega telão, aviões que explodem no palco, caixas que se abrem, projeções, bonecos, um porco voador que denuncia o que a humanidade produz de pior e o absurdo som quadrifônico que o faz ouvir uma coisa a sua frente e outro atrás de você ao mesmo tempo criando uma atmosfera única. Com Waters nunca há problemas de acústica ou som ruim. Com Waters tudo é grandioso, perfeito, único.

“The Wall”, o show, assim como o filme de Alan Parker (1982) conta a história de um roqueiro decadente que perde o pai na guerra (o pai de Waters morreu na Segunda Guerra Mundial, quando ele não tinha nem um ano de idade) e cresce sob a superproteção da mãe, retratada na canção “Mother”, a quem ele dá uma alfinetada no show. O menino também não tem boas palavras a dizer aos velhos e opressores professores, que teimam em ensinar uma “no education”, mas não passam de tijolos nas paredes.

O músico cresce, tem uma vida hedonista com groupies enquanto vê a mulher se afastar dele. Até que percebe que ela faz falta e a implora para que volte. Tarde demais. Ele já está envolto num caos, mas precisa se reerguer para um último momento de brilho.

Tudo é perda na obra de Waters. Cada tijolo dessa parede metafórica que se ergue em torno do personagem central da trama é resultante das frustrações da vida do roqueiro que no filme é vivido por Bob Geldof.

Aqui o próprio Waters assume o personagem, que atualiza e potencializa a dor de sua parede com imagens de vítimas de violência, a começar pelo seu próprio pai e dando destaque ao brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado pela polícia britânica num metrô de Londres em 2005. O show é dedicado a ele, mais um tijolo estendido no muro marcado por sangue.

“In the flesh?” abre o show. De óculos escuros, sobretudo preto e uma faixa no braço indicando a “nova ordem” dos martelos cruzados, uma viagem nazista do roqueiro, que representa uma crítica à cegueira que o fã tem diante do artista numa linha meio “A Onda” (1981), Waters recebe o público com homens de bandeiras hasteadas, compasso militar e fogos de artifício. O show avança por “The Thin Ice”, “Another brick in the wall Part I” com as já citadas imagens de pessoas mortas por diversas formas de violência até desembocar em “The happiest days o four lives”.

Agora os “canhões” se voltam contra os professores e suas atitudes despóticas diante dos alunos. No filme, o jovem é humilhado pelo seu professor por estar escrevendo poemas ao invés de prestar atenção na sua aula sacal e insignificante. Na película, os versos que o professor lê são os de “Money”, que estaria no “Darkside of the moon”.

Em “Mother”, um boneco gigante com jeitão de charge surge para interpretar essa mãe que vigia o filho como um “Big Brother” (o de George Orwell, por favor). A palavra é riscada no muro e vemos “Big Mother is watching you” enquanto Waters questiona se ele deve construir o muro, sonhar com a presidência ou confiar no governo. O muro dá a resposta em inglês e em bom português: “Nem fodendo”.

Waters segue em sua jornada com críticas ao consumismo, aos dogmas e o enterro de seu personagem em uma vida tão vazia quanto hedonista. O muro está quase completo em “Don’t leave me now” e é fechado após “Goodbye cruel world”. Vinte minutos de intervalo depois, a banda retoma com “Hey you”, mas só a ouvimos. Eles tocam por trás do sufocante muro, que se transforma num gigantesco telão.

Waters em "Comfortably numb"
O período de isolamento só se encerra em “Comfortably Numb”, um dos momentos mais fantásticos, visualmente falando, do espetáculo quando Waters, cantando sozinho diante do muro gigantesco de repente soca a parede, que é implodida descortinando um novo e colorido mundo a ser explorado.

No fim, Waters veste novamente a capa de líder nazista, roqueiro preconceituoso que despeja o seu ódio em judeus, negros e homossexuais numa visão crítica dos fãs que seguem seus ídolos sem contestá-los. Isso acontece em “In the flesh”.

“The Trial” marca o julgamento do jovem que estava fechado no mundo e é condenado a se expor para a vida. É a senha para que o muro, agora sim, literalmente venha abaixo. “Outside the wall” encerra o espetáculo gigantesco com todos os músicos reunidos a frente do cenário de destruição. A ópera-rock de Waters está concluída deixando, paradoxalmente, felizes os que acompanharam essa jornada de dor e beleza irretocáveis.

Set list do show: “In the flesh?”, “The thin ice”, “Another brick in the wall part 1”, “The happiest days of our lives”, “Another brick in the wall part 2”, “Mother”, “Goodbye blue sky”, “Empty spaces”, “What shall we do now?”, “Young lust”, “One of my turns”, “Don’t leave me now”, “Another brick in the wall part 3”, “The last few bricks”, “Goodbye cruel world”, “Hey You”, “Is there anybody out there?”, “Nobody home”, “Vera”, “Bring the boys back home”, “Comfortably numb”, “The show must go on”, “In the flesh”, “Run like hell”, “Waiting for the worms”, “Stop”, “The trial” e “Outside the wall”.

Alguns momentos marcantes do show:
"Comfortably Numb"
"Another brick in the wall - part I"
"Mother"
"Another brick in the wall - part II"
"In the flesh"
"Young Lust"

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