quinta-feira, 8 de março de 2012

O cinema no tempo de sua bisavó

Dujardin e Berenice em "O Artista"
Há dois anos, quando deu a “Guerra ao Terror” o Oscar de melhor filme, a Academia, involuntariamente ou não, sinalizava que o cinema ainda era mais importante pelo seu trabalho de roteiro, direção e dos atores do que toda a tecnologia 3-D daquela bobagem chamada “Avatar”. Neste ano, embora uma produção em 3-D tenha sido uma das grandes vencedoras da noite, foi a celebração de um cinema feito no tempo da sua bisavó, poucas décadas depois dos irmãos Lumiére, que foi o grande vencedor da noite.

A tradição, a delicadeza e a sensibilidade do cinema mudo são os temas centrais de “O Artista” e “A invenção de Hugo Cabret”, dois bonitos filmes ainda em cartaz e que deixaram a festa no Kodak Theatre com dez estatuetas, sendo cinco para cada lado. Enquanto a produção fraco-belga faturou os prêmios de filme, diretor (Michel Hazanavicius), ator (Jean Dujardin), figurino e trilha sonora original, o trabalho de Martin Scorsese levou as estatuetas de fotografia, direção de arte, edição de som, mixagem de som e efeitos visuais.

“O Artista” é a homenagem de Michael Hazanavicius ao cinema mudo da Hollywood dos anos 20 e 30. No filme, ele conta a história de George Valentim (Jean Dujardin, muito bem num papel que ele não abandonou nem na hora de receber o Oscar), ídolo de toda uma era que começa a entrar em decadência com o início das produções com som. Mais do que se sentir deslocado, Valentin resiste à mudança e é ultrapassado na preferência do público e dos estúdios por sua fã e estrela em ascensão Peppy Miller (Berenice Bejo).

Lírico, o filme tem cenas maravilhosas como a de um desesperado Valentim que vê todos os objetos a sua volta finalmente emitirem algum som enquanto ele não consegue fazer nada sair de sua garganta. Uma grande sacada de Hazanavicius que trouxe a modernidade para a sua película muda para exibir os conflitos de um modelo que começa a ser abandonado por outro que indica a nova era do cinema.

Valentim entra em decadência, quase se mata, mas é finalmente salvo por Pepe, que lhe propõe um filme em que os dois atuem juntos. Mas ele não consegue falar. Não é desse tempo. É de uma era assaz morta. É ai que Pepe encontra uma saída e Valentim ganha uma sobrevida a ponto de finalmente conseguir falar, finalmente sair dessa prisão que ele se impunha para ser aceito pelo novo cinema que começa a surgir.

Cena de "Hugo Cabret" com Kingsley 
Scorsese volta ainda mais no tempo no seu lúdico “Hugo Cabret”. A história, que no início se desenhava como um filme fofinho em que o jovem Hugo (Asa Butterfield) tem que lidar com a perda do pai (Jude Law) e escapar do cruel inspetor da estação de Paris vivido por Sacha Baron Cohen para não parar em um orfanato, se transforma numa bela homenagem do diretor americano ao francês Georges Méliès. O ilusionista, que começou a fazer filmes no início do século XX, ficou conhecido por ser um dos primeiros cineastas a usar técnicas como a captura de frames de forma mais lenta, a sobreposição de imagens para gerar um truque de ilusionismo nos filmes, a substituição gradual de uma imagem por outra num processo chamado dissolução e a técnica de pintura dos filmes com a mão.

Visto hoje, soa ridículo e até patético diante da tecnologia que existe para se fazer filmes, mas era algo inovador quando Méliès fez trabalhos como “Uma viagem a Lua” (1902) e “A viagem impossível” (1904), dois dos seus mais famosos trabalhos entre os 531 filmes que dirigiu.

No filme, um Méliès melancólico vivido por Ben Kingsley sobrevive na estação de Montparnasse como um comum vendedor de uma loja de brinquedos. Sua vida é a neta Isabelle (Chlöe Grace Moretz) e a mulher Jeanne D’Alcy, atriz e sua musa nos tempos de cineasta. Essa história é verdadeira e capta junto com a do jovem Hugo o momento em que Méliès é revisitado por seus fãs.

O fã que vai resgatar Méliès no filme é o pesquisador Michael Stuhlbarg (Rene Tabard). Ele será o vetor do reerguimento do cineasta desgostoso da vida artística. É uma bonita história de paixão pela magia do cinema e uma celebração da sétima arte feita por Scorsese, que deixou um lado lúdico aflorar para prestar a sua homenagem ao cinema num filme completamente diferente daqueles que estamos acostumados a ver com o nome do diretor nos créditos.

Tanto “O Artista” quanto “Hugo Cabret” não olham para o passado com saudade, mas com deferência. Uma deferência que só os apaixonados pelo cinema têm. E pelo visto os velhinhos da Academia também curtiram muito as homenagens.


Abaixo, um dos mais famosos filmes de Méliès:


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