quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De profundis. Or not

Pintura de Edvard Munch
- Afinal, qual é o sentido da vida?

A pergunta caiu como uma bomba na mesa do bar em que os quatro amigos se encontravam todo mês. Há relatos de que até os copos de cerveja transpiravam de tensão. Uma licença poética que ignorava o calor senegalês que fazia no Rio de Janeiro.

- Eu falo sério. O que faz, eu, você ou ele levantarmos diariamente cedo, encararmos engarrafamentos monstruosos para trabalhar feito cornos. Todo dia sempre igual. De segunda a sexta. Sem falar alguns fins de semana e feriados. Para que fazemos isso tudo? Por que fazemos isso tudo? Foi só para isso que aquele macaco lá atrás resolveu começar a andar, desenvolver o raciocínio e botar para funcionar o seu telencéfalo altamente desenvolvido e a porra do polegar opositor?

João Luiz era o filósofo da turma. Formado em História, cineasta frustrado, escritor com bloqueios que o deixavam ansioso, achando que nunca mais conseguiria fazer algo decente diante do computador, era um professor dedicado de uma faculdade particular. Querido pelos alunos e pelos colegas, parecia pronto a mudar o mundo com suas ideias a cada vez que atravessava a rua.

Era um iconoclasta. E se achava um fracassado por mais que tivesse sucesso no trabalho, bons amigos e realizasse os sonhos que ele podia realizar com o salário que ganhava. A ideia de dirigir uma Ferrari ou um Aston Martin nunca esteve nessa lista de sonhos possíveis.

Mas uma frase tão enigmática quando profunda como aquela deixou seus amigos preocupados. Parecia o primeiro passo para um ato final shakespeariano do suicídio.

- O que você tem, bicho? A vida tem todo sentido. Você não está feliz em estar aqui com a gente, tomando uma gelada, nessa night gostosa?

Esse é Roberto. Mais velho da turma, nasceu no mesmo dia que o cantor Roberto Carlos uns 35 anos depois. A coincidência não deixou dúvida para a sua mãe, fã do Rei. Melhor para ele. Do contrário, receberia o nome de um dos avôs numa curiosa disputa de cara ou coroa em plena maternidade. E, convenhamos, ser chamado de Atanagildo ou Florisberto ia, no mínimo, causar sérios problemas para a criança.

O Rei salvou a sua vida, mas deixou sequelas graves. Uma delas é a cada três frases usar o termo “bicho” que nem o Roberto Carlos deve falar mais. Produtor de TV, Roberto já tinha feito uma série de programas sobre a Jovem Guarda. É um fã a serviço do ídolo, mas também um bom amigo. Talvez o melhor de João Luiz.

- Bicho, a vida é amor. Você está aqui interagindo conosco e com a sociedade para ajudar a criar um mundo melhor para os seus filhos. As suas aulas são a sua contribuição para este mundo novo que surge a partir dos teus atos. Bicho, tudo é muito astral... Você não sente isso? Essa energia que nos move?

- Poucas vezes em ouvi tanta bobagem. Só faltou você citar que Deus nos criou a sua imagem e semelhança – rebateu de primeira Rogério.

Rogério é cientista, niilista e ateu. Todo o papo flower power de Roberto o dava azia. É prático, cartesiano e, principalmente, kantiano. O baixinho de Kögnisberg era o seu ídolo, a ponto dele saber citar de cor trechos da “Crítica da Razão Pura” ou da “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. João Luiz, no entanto, gostava de dizer que Kant estava mais para o seu Deus só para provocá-lo. Rogério é tão kantiano que tem um hábito bizarro. Todo dia, no mesmo horário, caminha pela Lagoa. Até ai, nada demais. O problema é que ele não faz isso por causa do exercício em si, mas porque Kant, quando vivo, lá no século XVIII, fazia o mesmo pelas ruas da sua cidade na antiga Prússia a ponto da população local acertar os seus relógios a partir das passadas do filósofo.

Se o Rio de Janeiro soubesse daquele segredo de Rogério como os três amigos da mesa, também faria o mesmo com o seu relógio.

- Kant dizia: “Eu dormi e sonhei que a vida era beleza. Acordei e notei que a vida era dever”. É isso, meu caro. E não adianta procurar tal explicação para o seu dilema porque você não vai encontrá-la. Talvez o propósito não seja questionar qual é o sentido da vida, mas como você a faz ter sentido. Ou o que você fará para dar a ela algum sentido.

- Eu tenho 30 anos e não fiz nada de relevante. O que o faz crer que nos próximos 30 eu farei algo?

- João, estamos aqui há uma hora e meia. E eu não bebi o suficiente para ter afetada as minhas funções matemáticas. Cinco ex-alunos seus fizeram questão de parar aqui para te cumprimentar. Você de alguma forma marcou a vida destas pessoas e as ajudou a torná-las melhor, mais divertida ou a tê-las mais sapiência. Isso sem contar aquelas duas mulheres que você fez questão de NÃO nós apresentar.

- Bicho, a loura tinha os peitos maiores do que os da Wanderléia!

- E a morena com aquele olhar de Rita Hayworth em “Sangue e Areia”? Divina e pura sensualidade como uma Gilda do século XXI.

Até então Walter José estava quieto. Mas quando se trata de falar de mulher, ele sempre se manifesta. Walter é cineasta e tem prazer em filmar tudo o que diz respeito ao universo feminino. Trata mulheres com lirismo. São poesias vivas e sua única inspiração.

- Você está em crise, João. É a crise dos 30. Ela passa. Vai por mim. Estou com 33 e bebo aqui sem culpa enquanto penso no meu próximo filme e na minha próxima mulher. Não necessariamente nessa ordem.

Galã da turma e com nome de astro da Hollywood dos anos 40 – pelo menos é assim que ele gosta de imaginar -, Walter se vê como um Cary Grant ou um Clark Gable melhorado (mas os amigos dizem que ele não passa de um Mazaropi pós-moderno). Boêmio, um tanto fanfarrão, mas divertido, era a face vídeo-intelectual do grupo, sendo capaz de citar diálogos inteiros de cenas de filmes de Fellini, imitando os atores envolvidos, o que era sempre garantia de diversão.

- A vida, meu caro, não tem um sentido único. É você que o constrói a partir do uso que faz destes anos que teve, tem e terá a partir do momento do seu nascimento. Questionar um sentido para ela, me soa como sintoma de depressão. E um passo para o suícido, pois se você questiona um sentido para ela dá margem a questionar todo o resto e ficará paralisado.

- A questão não é - retrucou João - dar cabo da vida porque eu posso estar vendo alguma falta de sentido nela. O que eu questiono é a razão de todos os meus atos. Ou dos nossos atos. Com que objetivo eu levanto, me alimento, trabalho, saio no fim de semana, vejo um filme ou não. Vou a um show ou não. Qual o motivo da minha existência? Por que eu estou aqui?

- Você não deve fazer estas perguntas, porque muitas delas não têm resposta. Você deveria procurar ser feliz, bicho.

- Mas o que é a felicidade, Roberto?

Nesse momento, Roberto vira para Walter e diz:

- Maldito Sócrates! Eu falei que você não devia tê-lo apresentado aos diálogos de Platão.

- Certa vez eu conheci um guia turístico que devia ter a minha idade numa ilha que visitei nas férias. O lugar era paradisíaco com uma água de um azul mais azul que os olhos da Kate Winslet. Ele ficava ali de bermuda e camiseta ensinando a história da ilha para nós turistas num inglês bem aceitável. Tinha uma serenidade que eu não tenho. Ou sequer acho que possa ter tido mesmo num momento em que eu poderia estar mais perto da plena felicidade em que o ser humano pode alcançar. Ele parecia ser feliz e não ter angústias. Era um estado de plenitude. Tudo isso sem toda a I-tecnologia, sem carro, sem nada de extra. Apenas ali, ele de bermuda, chinelo e camiseta e o mar a sua frente. 

Roberto e Walter observam o desabafo de João aparentando não saber mais o que fazer para animar o amigo. Rogério, no entanto, arrasta o copo uns dois palmos na mesa, vira-se para João e, olhando nos seus olhos, diz:

- A felicidade é um ponto fora da curva numa escala de tormentos e provações pelas quais o ser humano passa. É impossível ser feliz. Todavia, você pode estar feliz. Só que buscar isso, paradoxalmente o trará angústia e infelicidade. Kant dizia que “a felicidade não é um ideal da razão, mas sim da imaginação”. Ou seja, o que discutimos aqui é uma abstração difícil de chegar a uma conclusão. Trocando em miúdos, estamos perdendo tempo dando círculos numa versão pasteurizada do eterno retorno nietzschiano.

- Resumindo o que o Rogério disse, deixe a vida te levar, meu caro. Entra no carro e segue pelas curvas da estrada de Santos sem olhar para trás, bicho.

- Mas com que motivação eu entro nessa estrada? Por que pegar o carro para o desconhecido?

- E há algo melhor e mais excitante do que embarcar no desconhecido? Já imaginou se o Frodo tivesse continuado naquela área idílica da Terra Média? Nunca teria conhecido o lado bom e o lado ruim de tudo naquela aventura. Ele sofreu muito, ganhou e perdeu, mas saiu maior do que entrou. Arriscar é preciso. Sempre.

As palavras de Walter não trouxeram conforto nem solução para as questões de João. O cineasta rebateu dizendo que a arte nunca visa o conforto, mas o incômodo.

- Olha, não sei a que conclusão chegaremos aqui, nem se chegaremos a ela. Mas sei de uma coisa. Esse papo meio “Ponto de Mutação” me deixou com fome. Ainda servem aqui aqueles bolinhos de bacalhau divinos?

- Claro que sim, Roberto! Aquilo é praticamente a definição de felicidade e o sentido da vida que o nosso amigo aqui tanto procura.

Enquanto Walter pede os famosos bolinhos da casa, Rogério vira para João e resolve propor um brinde à vida e à sua total falta de sentido.

- Mas ainda assim, é o nosso bem mais valioso.


E todos finalmente concordam com uma coisa. Os bolinhos de bacalhau realmente são divinos.

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