domingo, 16 de março de 2025

“Vitória”: A luta de uma idosa contra a criminalidade e a impunidade no Rio

Lembro muito bem quando o jornal Extra publicou uma série de reportagens que contava a rotina do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na época, eu era um jornalista ainda iniciando a carreira, que trabalhava num jornal da minha cidade e achei impressionante a coragem que Dona Vitória teve movida por uma indignação pelo que ela via acontecer pela janela do seu apartamento em Copacabana. Conhecendo a realidade do Rio de Janeiro, eu não teria a mesma coragem.

Vale a pena demais ler as reportagens do jornalista Fábio Gusmão e que bom que o Extra as republicou recentemente. Leia aqui a série “Janela Indiscreta” do Extra.

Vinte anos depois das reportagens, chega aos cinemas “Vitória”, filme inspirado na história daquela senhora. Estrelado por Fernanda Montenegro e dirigido por Andrucha Waddington, que pegou o projeto depois do falecimento do diretor Breno Silveira, o filme infelizmente é um recorte muito real da vida no Rio de Janeiro.

Sob a interpretação magistral de Montenegro, Waddington soube captar tão bem a vida amalgamada que coexiste na cidade que é uma das vitrines do Brasil para o mundo. O Rio tem a beleza, as relações cordiais, as trocas de pequenos favores por dinheiro, as pessoas que se ajudam gratuitamente, a simpatia dos seus habitantes, mas também tem a corrupção, a má educação, o desrespeito, a relação simbiótica do poder com a ilegalidade. A crueldade do crime, a impunidade, o medo de não se estar seguro nem dentro de casa.

Qualquer um que já tenha vivido próximo a uma comunidade tão fortemente comandada pelo tráfico quase tem gatilhos de transtorno de estresse pós-traumático com as cenas do tiroteio que mostram Vitória deitada no chão, ou dormindo dentro do banheiro com medo de uma bala perdida. Para não falar de quem realmente tem que viver na linha de frente dentro das comunidades sob o jugo do tráfico.

O maior mérito do filme é dar essa textura tão viva a uma vida no Rio que nas últimas duas décadas teve pequenos picos de melhora em meio ao oceano sem fim de problemas. A própria Ladeira dos Tabajaras continua sofrendo de problemas semelhantes aos denunciados por Vitória há 20 anos, como mostra uma reportagem do Extra publicado neste mês de março.

Outro ponto forte do filme é aliar o drama social com uma reflexão sobre a solidão na velhice. Dona Vitória é sozinha e, por isso, valoriza tanto as interações que têm com Bibiana (Linn da Quebrada) ou o menino Marcinho (Thawan Lucas), que vive na favela perto do seu prédio, mas a ajuda com as compras e em pequenos favores no dia a dia. E por isso, ela faz de tudo para tentar protegê-lo quando Marcinho começa a ser cooptado pelo tráfico.

A solidão é inevitável na velhice, mas isso não faz de Vitória uma mulher triste e amargurada. Pelo contrário, mesmo antes de se indignar com o que acontece na frente da sua janela, Waddington mostra uma mulher ativa, que vive a sua vida com as limitações naturais do corpo. Uma mulher que tem a sua rotina, caminha na praia, tem os seus momentos de diversão e que tenta ajudar ao próximo e ser justa na medida do possível. Seus embates com o síndico e os moradores do condomínio em que vive são os momentos que demonstram muito bem que a sua indignação e senso de justiça vão para todos os lados. Do mais alto escalão da polícia às pessoas com quem convive diariamente.

“Vitória” toma algumas liberdades em comparação com a história original publicada na reportagem de Fábio Gusmão. O principal deles é o personagem Marcinho, mas seu acréscimo é um ganho para a história, pois mostra uma realidade bastante conhecida de quem mora no Rio. A transformação de um menino bom em soldado do tráfico pela falta de oportunidades e pela pobreza da família.

Por outro lado, muitas passagens que parecem irreais realmente aconteceram. Como o fato de Vitória afrontar o tráfico. Num dado momento, os traficantes realmente sabiam que ela estava filmando, mas aparentemente tinham tanta segurança de que nada aconteceria com eles que simplesmente pouparam a vida dela por acharem que ela era apenas uma velha maluca. Também é real a bala que atingiu a casa dela, uma realidade infelizmente bem comum de quem vive perto de zonas de conflito. Também é real a resistência em sair do apartamento em Copacabana conquistado com tanto suor. No fim, a reportagem só foi publicada porque Vitória aceitou deixar Copacabana e entrar para programa de proteção à testemunha.

A identidade de Vitória só foi revelada em 2023, quando ela faleceu em Salvador, na Bahia, onde foi morar quando entrou para o programa de proteção a testemunha. Joana da Paz desejava ter a sua história contada em um filme e sonhava até com Fernanda Montenegro no papel dela. Embora não tivesse tido a chance de ver o filme pronto, seu desejo foi atendido. E mais do que isso, ganhou um ótimo filme que ajudará a eternizar ainda mais o seu ato de coragem.

Nota 8,5/10.

sábado, 15 de março de 2025

Book review: “A máquina de fazer espanhóis” e “Baratas”

“éramos sempre noventa e três pessoas no feliz idade. sempre noventa e três velhos ali metidos. e não havia alteração disso. a cada fuga, alguém entrava de novo a compor o número preciso de utentes, como um universo perfeito, completo, que se alimenta dos restos de tempo que as pessoas têm”. (Pág. 273)

“A máquina de fazer espanhóis” é o terceiro livro que eu leio de Valter Hugo Mãe. “Descobri” esse escritor através de uma entrevista a um programa de TV do Brasil, o “Roda Viva”. Na ocasião, ele estava lançando o excelente “As doenças do Brasil” e eu me identifiquei muito com diversos pontos abordados por ele nessa entrevista.

O “Roda Viva” foi o estopim para eu abrir o caminho para a sua literatura justamente com “As doenças do Brasil”, que Mãe considerou na entrevista o seu melhor livro, e, aos poucos, eu tenho me aprofundado no seu trabalho tão interessante não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma da sua escrita sempre subvertendo pequenas regras da língua ao abolir as letras maiúsculas.

“A máquina de fazer espanhóis” inicialmente me parecia um livro bem triste e que jogava a culpa na sua cara. Especialmente os que já tiveram parentes em asilos. Ou melhor, “casas de idosos” para usar um termo mais politicamente aceitável nessa nossa vida de eufemismos.

Ao descrever a realidade de uma série de idosos, o livro parece navegar entre uma reflexão sobre a finitude da vida e o nosso descarte da sociedade a medida em que envelhecemos.

Acontece que com o avançar da história, o livro vai ficando ainda mais fascinante. O “feliz idade”, maravilhoso nome do asilo que é uma ironia, mas também remete à “felicidade”, que não deixa de ser um eufemismo irônico, é o fim, mas também um recomeço nos estertores da vida daqueles personagens.

No convívio com os outros idosos, há muitas dores, angústias, doenças e a morte está sempre à espreita na medida em que o corpo e a mente começam a falhar. Contudo, há também novas amizades, companheirismo e um senso de comunidade criado entre iguais com algumas coisas em comum.

Se o asilo parece um corredor da morte com diferentes escalas até o fim, também é um espaço de boas e nostálgicas conversas, brincadeiras, arrependimentos, lembranças e um conforto no fim da vida.

Ao escrever este livro, Mãe disse que quis imaginar uma terceira idade para o pai, que morreu muito cedo. Com isso ele escreveu praticamente um arquétipo da vida em um asilo. Todos os padrões estão ali. Tudo em meio a reflexões sociológicas, antropológicas, culturais e políticas.

Valter Hugo Mãe é para mim cada vez mais um dos autores vivos mais interessantes de se acompanhar. Certamente hei de ler mais obras dele num futuro bem próximo.

Nota 9/10.

Review também publicada no meu perfil no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/7372673149

“Atle Moines, ex-político democrata-cristão, ex-presidente da Comissão de Finanças, era agora um ex em tudo o resto também” (pág. 18)

Tenho uma certa dificuldade em compreender o sucesso de Jo Nesbø como escritor. Ele não é exatamente um autor com um refinamento estético ou alguém que tenha inventado ou revolucionado um gênero. Paradoxalmente, porém, eu me vejo bastante interessado em acompanhar a saga do seu detetive Harry Hole, um clássico personagem bad boy incompreendido, alcoólatra e que usa de subterfúgios para resolver seus casos de assassinato.

“Baratas” é o segundo livro da saga de Hole. Depois de resolver um caso complexo na Austrália, Hole agora é mandado para a Tailândia para investigar o assassinato de um embaixador norueguês.

Nesbø usa uma fórmula consagrada para escrever a sua história: crime, investigação, primeiros suspeitos, desvio de rota, suspeito principal, correção de rota, clímax, resolução e explicação do caso. Eu diria até que suas histórias se assemelham a um tipo de literatura conhecida como pulp fiction, ou seja, aquele tipo de entretenimento rápido sem grandes pretensões artísticas.

Uma de suas qualidades é inserir elementos da história e cultura local nas suas narrativas e com notas explicativas. Foi assim em “O Morcego”, com uma série de informações sobre os aborígenes e a própria Austrália e agora em “Baratas”, com diversos dados interessantes sobre a Tailândia.

Em resumo, Nesbø não é genial, mas é agradável. Quem gosta do gênero policial/crime pode gostar dos seus livros. Eu mesmo não vejo a hora de partir para o terceiro livro da saga de Hole. Vai ver o segredo do seu sucesso está na forma como a sua escrita simples e direta associada a uma espécie de cor local conquistam muitos leitores.

Nota 7/10.

Review também publicada no meu perfil no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/7256212012

domingo, 9 de março de 2025

"MIckey 17", a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana

Pattinson é um dos pontos altos do filme
Desde que Bong Joon Ho venceu surpreendentemente o Oscar de melhor filme por “Parasita” (2019) em 2020, criou-se pelo menos para mim uma grande expectativa sobre os futuros projetos do diretor sul-coreano. O prêmio da Academia o deu visibilidade e, certamente, gerou interesse em quem quisesse investir capital financeiro em seus futuros trabalhos.

Adaptar o livro de ficção científica “Mickey 7” do autor pouco conhecido Edward Ashton e lançado em 2022 pareceu uma escolha intrigante para um diretor que vinha de um filme com uma fortíssima crítica social como “Parasita”. Intrigante, mas não estranha, pois o universo de sci-fi que traz um tema social por trás já havia sido explorado por Bong Joon Ho em “Expresso do Amanhã” (2013).

O resultado desta empreitada finalmente chegou aos cinemas com “Mickey 17”. Oitavo longa do diretor, “Mickey 17” é uma dark comedy futurista e uma sátira política sobre a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana não apenas pelo sistema explorador do mercado, mas também pelos líderes que escolhemos para nos guiar para um futuro seja dentro de um recorte de um grupo social, seja como nação. No filme, Bong Joon Ho usa da comédia com tons de absurdo para refletir e criar paralelos até bem óbvios, quase desenhados, com o mundo atual.

O filme gira em torno de dois personagens equidistantes na cadeia alimentar do sistema social. De um lado Mickey Barnes (Robert Pattinson), um homem vivendo no limite e vítima de suas escolhas fracassadas que o fizeram tomar uma decisão drástica. Do outro, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um político fracassado que perdera duas eleições, mas cujo dinheiro e influencia ainda o colocam no topo da pirâmide social, ainda que suas ideias variem entre o equívoco e o crime.

O projeto de colonização do planeta Niflheim une estes dois personagens. Para Marshall, ele é a volta por cima de criar uma sociedade em que ele pode comandar como um ditador bufão autocrata e seus ideais de eugenia. Na ausência de um cargo oficial, Marshall quer fundar o seu próprio mundo em Niflheim junto com seus seguidores ensandecidos usando bonés vermelhos. Qualquer semelhança com os tempos atuais da política estadunidense não é mera coincidência.

Para Mickey Niflheim é a única saída. Marcado para morrer por um agiota de quem deve uma fortuna, Mickey é o trabalhador braçal meio estúpido e sem grandes qualificações que abraça uma oportunidade bizarra para entrar na expedição e fugir da morte. Mal saberia ele, que ele se tornaria um especialista em evitar a morte, mas não de um jeito agradável.

Para partir para Niflheim, Mickey se alista num programa de “Dispensáveis”, um projeto pioneiro criado na Terra, mas dinamitado por questões éticas que Marshall quer retomar no caminho para Niflheim. O programa dos Dispensáveis consiste em criar clones infinitamente de quem faz parte dele para que o corpo desta pessoa possa ser usado em dezenas de estudos ou missões extremamente perigosas. Missões como descobrir os efeitos da radiação no corpo humano ou servir de cobaia para o desenvolvimento de uma vacina contra um vírus mortal. A única regra do programa é que só pode existir um único ser vivo naquele presente momento. Os chamados “Múltiplos”, ou seja, dois clones coabitando o mesmo espaço-tempo são proibidos e punidos com a extinção imediata da pessoa envolvida.

Quando escreveu o livro, Ashton disse que queria contar uma história que refletisse sobre uma espécie de imortalidade que fosse combinada como uma estrutura social exploradora. Por mais que tivesse feito uma série de alterações para o filme, como o próprio autor confirmou, Joon Ho manteve essa essência em “Mickey 17”. No seu filme, a vida de um Dispensável não vale absolutamente nada. Cada um dos Mickeys cumpre a sua missão de forma até resignada, mas detesta a morte e a consequente “reimpressão” que sempre vem com as memórias do clone anterior. Cada Mickey tem a memória das mortes anteriores. Num dado momento, um deles chega a dizer que “toda a nossa a vida é uma punição”.

Mickey é tratado como um experimento, uma figura dispensável, por praticamente todos os que estão na expedição para Niflheim. Além de ser tratado como um objeto vivo, Mickey ainda tem que conviver com as constantes perguntas de seus colegas: “Qual é a sensação de morrer?”. Curiosamente, Bong Joon Ho nunca deixa que esta pergunta seja respondida em todo o filme.

Mickey é a mão de obra mais barata e desprezível de um sistema opressor. A nave colônia para Niflheim é um microcosmo de uma fábrica. A maior parte usa o mesmo tipo de roupa, com a mesma cor e tem tarefas específicas designadas que devem ser cumpridas regiamente para dentro de um sistema rigorosamente controlado. Nesta cadeia, Mickey é o mais dispensável de todos. Tanto que ninguém faz o menor esforço para o salvar mesmo quando ele parece estar ainda vivo em determinadas situações.

Tudo muda, porém, quando uma de suas cópias, o 17, não é morta como se imaginava que ele seria ao se encontrar numa situação limite. Quando volta para o seu quarto, Mickey 17 se vê numa enrascada ao perceber que está deitado na sua cama o Mickey 18, a sua nova cópia. Agora eles são múltiplos e o perigo da extinção é iminente.

Curiosamente, é a existência de um clone-irmão que escancara o que já vínhamos percebendo e Pattinson soube construir com tamanha perspicácia ao longo do filme. A ideia de que cada Mickey pode ter as mesmas memórias, mas cada um deles é um indivíduo único. Apesar dos esforços externos de mostrar que um Mickey é só mais um Mickey e, portanto, irrelevante, cada um tem um traço único, uma característica de personalidade que o anterior não tinha. E isso fica mais cristalino quando 17 e 18 coexistem. O Mickey 17 é um people pleaser que evita conflitos e tenta cuidar da sua vida e das suas tarefas sem aparecer muito. Mickey 18 é agressivo, confiante e não leva desaforo para casa. E cada Mickey de Pattinson tem um detalhe diferente que o torna único e cuja vida não merecia ser tão desprezada e jogada no lixo como o sistema tenta fazer com que acreditemos.

Se Mickey é a metáfora da precarização do trabalho e a efemeridade da vida. Marshall é o símbolo do poder que constrói esta sociedade decadente e caótica. Interpretado de forma provocadora e caricatural por Ruffalo, Marshall é o exemplo cristalino do governante idiota, ignorante, incapaz de coordenar ideias que infelizmente temos visto com extrema frequência em posições de poder pelo mundo. Um dos exemplos cristalinos disso está na forma como Marshall lida com os seres vivos que habitam Niflheim, a ponto de, no momento mais desenhado possível do filme, chamar os seres de extraterrestes apenas para ser corrigido por um membro da tripulação que afirma que extraterrestes em Niflheim são os humanos.

Curioso que o adiamento do lançamento do filme em um ano o fez entrar em cartaz num momento bastante propício para traçar paralelos entre Marshall e Donald Trump. De fato, Ruffalo parece em alguns momentos emular os absurdos do atual presidente estadunidense, no que é muito bem acompanhado por Toni Collette, que faz Ylfa, a esposa de Marshall.

Quando traça estes paralelos com o sistema exploratório capitalista em que vivemos e a política estadunidense, “Mickey 17” vai bem. No entanto, o filme parece se perder um pouco quando tenta debater as questões de colonização e imigração a partir da relação dos humanos com as criaturas que habitavam Niflheim, que Marshall chama de “creepers”.

Todo este subplot se acumula no terço final do filme e se confunde com a resolução dos dramas de Mickey e Marshall e uma tentativa de golpe que surge subitamente num momento capital de “Mickey 17”. No fim, acho que faltou uma sintonia mais fina para concluir a história que vinha sendo bem desenvolvida nos dois terços anteriores do filme.

“Mickey 17” não tem o mesmo peso e a mesma excelência de “Parasita”, mas não deixa de ter reflexões igualmente importantes. É um filme menos sutil e em alguns aspectos mais expositivo do que o anterior de Bong Joon Ho. Contudo, o trabalho do diretor sul-coreano continua sendo um dos mais interessantes de se acompanhar nos últimos tempos.

Nota 7,5/10.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Algumas considerações e o meu ranking de filmes do Oscar-2025

Meus quatro favoritos do Oscar-2025
Bem amigos das redes antissociais. Chegou o grande momento. O momento de falar sobre o Oscar 2025. Esta edição especial. Esta edição em que, como diria o Galvão Bueno, será um grande Haaaaaaaaja Coração! Para todos os brasileiros. Menos para este que vos tecla, pois eu sou frio, calculista e aquariano. Me disseram que aquariano era frio e sem emoções feito um Peaky Blinder e eu resolvi assumir esta persona para manter o meu distanciamento crítico.

Mas enquanto ainda não sabemos se o Brasil vai finalmente ganhar a Copa do Mundo do cinema ou se permanecerá como uma espécie de Holanda da sétima arte (incrível, revolucionária, mas com teias de aranha na sala de troféus), vamos aos comentários implacáveis sobre a edição deste ano do prêmio da Academia.

Falando apenas sobre os indicados a melhor filme, este foi um ano bem interessante. Há filmes muito criativos e de baixo orçamento que foram feitos com o dinheiro de um salgado e um refresco. Há superproduções, há queridinhos da indústria americana (sim, estou falando de você “Wicked”), há filmes que foram do amor ao ódio nas redes antissociais (vixi, “Emilia Perez”, acho que tu não ganhas mais nem eleição para síndico) e há uma diversidade interessante de temas e histórias. Deixaram até o body horror entrar na festa.

No entanto, de acordo com o instituto de pesquisas CornetaStats, a nota média dos indicados a melhor filme caiu 0,65 em relação ao ano passado e ficou em 7,9. Em 2024, tivemos o melhor ano da série histórica com uma nota média de 8,55. No entanto, 7,9 não deixa de ser uma boa nota média.

Mas vamos aos comentários mais detalhados por categoria e, claro, o ranking dos filmes indicados ao Oscar. Consegui ver quase todos os indicados deste ano. Só fiquei devendo o documentário “Porcelain War”, que não consegui ver nem pelos meios legais nem pelos meios pouco republicanos. Nem parece que o filme existe.

FILME — Nosso apoio incondicional vai para…. “Ainda estou aqui”. O que é péssimo para o filme brasileiro, pois em geral o trabalho que eu mais gosto não é premiado. O filme do Walter Salles é definitivamente o melhor entre os indicados. E lamento até hoje que o diretor brasileiro não tenha ganhado uma indicação como realizador também. No entanto, ficaria bem feliz se “Anora” ganhasse. É um filme incrível. Tanto “Ainda estou aqui” quanto “Anora” estiveram no meu top-5 de melhores filmes de 2024. Acho que “O Brutalista” também seria uma boa escolha, mas eu duvido que o povo da Academia tenha visto o filme inteiro na velocidade normal (OBS: aproveitando o ensejo, é errado ver filme ou série em velocidade 1,5x ou maior ou pulando cenas). Também ia curtir se “Duna: parte 2” ganhasse, mas qual a chance real de o filme de Dennis Villeneuve sair campeão este ano? Parece improvável. Embora em maior ou menor nível eu goste dos outros seis indicados, acho que eles não merecem levar para casa o principal careca dourado da noite. Não que isso vá mudar a minha vida. Na segunda-feira eu terei que ir trabalhar normalmente do mesmo jeito.

ATOR — Aqui eu fico entre o Adrien Brody e Colman Domingo. Acho tão bom o trabalho de Brody em “O Brutalista”. Já o Domingo consegue ter tantas camadas em “Sing Sing”, que, aliás, merecia estar na categoria principal. Também gosto do Sebastian Stan em “O Aprendiz”, mas nem na ficção o Donald Trump merece ganhar qualquer coisa. Se tivesse que votar somente em um, acho que escolho Brody.

ATRIZ — Minha favorita é a Fernanda Torres por “Ainda estou aqui” (OBS: eu vou ter que repetir isso constantemente, mas eu não sou pachequista. Ela é minha favorita porque a acho a melhor). Também seria bem legal se a Mikey Madison ganhasse por “Anora”. Gosto da Demi Moore em “A substância”, mas a vejo abaixo, inclusive, da Cynthia Erivo em “Wicked”. Já a Karla Sofia Gascón é um dos pontos fracos de “Emilia Perez” e, portanto, acho que não seria um prêmio justo.

DIRETOR — Aqui o meu favoritaço é o Sean Baker, de “Anora”. Em segundo lugar, mas bem atrás, o Brady Corbet por “O Brutalista”.

ATRIZ COADJUVANTE — Não vejo um trabalho que se sobressaia muito entre as cinco indicadas. Se eu tivesse que votar em uma, seria na que mais me surpreendeu, a Ariana Grande, em “Wicked”. E se tivesse que descartar uma, talvez seja a Isabela Rossellini, mas só mesmo por ser muito pouco tempo de tela, embora ela tenha uma cena fundamental em “Conclave”. Não acharia de todo ruim se ganhasse a Zoe Saldaña (“Emilia Perez”) ou a Felicity Jones (“O Brutalista”).

ATOR COADJUVANTE — Aqui eu tenho três favoritos: Kieran Culkin, Yura Borisov e Jeremy Strong. Curioso que tanto Culkin quanto Strong parecem estar fazendo variantes de seus personagens em “Succession” em “A verdadeira dor” e “O Aprendiz”, respectivamente. Gosto mundo de ambos e meu favoritaço é o Culkin. Mas ficaria bem feliz se o Borisov vencesse por “Anora”.

ROTEIRO ADAPTADO — Gosto de todos, mas acho que “Sing Sing” merece alguns prêmios para compensar a injustiça de não estar na categoria principal. No entanto, também ficaria satisfeito se “Um completo desconhecido” ou “Nickel Boys” vencessem.

ROTEIRO ORIGINAL — Também gosto de todos, mas se tem um que, para mim, é MESMO original no sentido de algo nunca ou, vá lá, raramente visto, é “A substância”. Gosto da forma como o filme aborda os problemas que as mulheres vivem na indústria do cinema a partir do seu roteiro. Minha medalha de prata vai para “Anora” e o bronze para “A verdadeira dor”.

FILME INTERNACIONAL — Se “Ainda estou aqui” é o meu favorito para filme, naturalmente é o meu favorito aqui. Mas se tudo der errado, que o prêmio vá para “A semente do fruto sagrado”, pois é outro filmaço da lista.

ANIMAÇÃO — Mais uma vez eu terei que lamentar que a melhor animação não irá ganhar. O hype está em torno de “Flow” e “O robô selvagem”, que são animações bonitas, mas a melhor mesmo é “Memórias de um caracol”.

DOCUMENTÁRIO — Dos quatro que vi, meu favorito é o desesperador “No Other Land”, mas tanto “Black Box Diaries” quanto “Soundtrack to a coup d´etat” mereciam o prêmio.

FOTOGRAFIA — Fico entre “Nosferatu” e “Duna: Parte 2”. Se for para votar em um, vamos de “Nosferatu”.

MONTAGEM — Aqui meus favoritos são “Conclave” e “Wicked”, com vantagem para o primeiro.

TRILHA SONORA — “Wicked” parece uma escolha meio óbvia aqui, mas eu realmente acho que a trilha sonora do “Conclave” funciona muito bem e dá toda uma personalidade ao filme.

FIGURINO — Vamos esquecer que “Gladiador 2” está aqui. Vamos esquece que este filme sequer existiu. Os quatro restantes são todos trabalhos muito bons. Só que para além da exuberância de “Wicked” e do rigor de “Nosferatu”, eu ficaria com o figurino de “Um completo desconhecido”.

DIREÇÃO DE ARTE — Cinco candidatos e uma escolha muito difícil. Vou ficar com “Wicked” nesta disputa com “Nosferatu”, “Conclave” e “Duna: parte 2” pelo lugar no meu coração.

CANÇÃO ORIGINAL — Nenhuma canção é muito marcante para mim. Ficarei cm “Like a Bird”, de “Sing Sing”.

EFEITOS VISUAIS — Vou ficar com “Duna: parte 2” porque este filme merece ser premiado. Mas “Wicked” seria o meu segundo favorito.

MAQUIAGEM E CABELO — Mais uma vez me vejo no dilema entre luz (“Wicked”) e sombra (“Nosferatu”). Ficarei com o filme de Robert Eggers, especialmente pelo visual do seu Nosferatu. “A substância” é o meu medalha de bronze.

SOM — Mais um prêmio em que escolho “Duna: parte 2” como o meu favorito.

Dito isso, assim ficaram distribuídos os meus carecas dourados:

3 carecas — “Ainda estou aqui”

2 carecas — “Wicked”, “Sing Sing”, “Conclave”, “Nosferatu” e “Duna: parte 2”

1 careca — “O Brutalista”, “Anora”, “A verdadeira dor”, “A substância”, “Memórias de um caracol”, “No Other land” e “Um completo desconhecido”.

Para finalizar, vamos ao ranking do Oscar:

1- “Ainda estou aqui”

2- “Anora”

3- “Sing Sing”

4- “A semente do fruto sagrado”

(Os filmes acima estão classificados para a Libertadores)

5- “Duna: parte 2”

6- “O Brutalista”

7- “Nickel Boys”

8- “Setembro 5”

9- “Um completo desconhecido”

10- “No Other Land”

11- “Trilha sonora para um golpe de estado”

12- “A verdadeira dor”

(Os filmes acima estão classificados para a Copa Sul-Americana)

13- “Allien: Romulus”

14- “Conclave”

15- O Aprendiz”

16- “Emilia Perez”

17- “Um homem diferente”

18- “A substância”

19- “Memórias de um caracol”

20- “Wicked”

21- “Better Man: A história de Robbie Williams”

22- “Black Box Diaries”

23- “Elton John — Never too late”

24- “Nosferatu”

25- “Planeta dos macacos: O Reinado”

26- “Divertida Mente 2”

27- “Flow”

28- “Maria Callas”

29- “O robô selvagem”

30- “Sugarcane”

(Os filmes abaixo foram rebaixados para a Série B)

31- “Batalhão 6888”

32- Wallace & Gromit: Avengança”

33- “Gladiador 2”

34- “A garota da agulha”

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Sete filmes e duas séries de fevereiro

Sing Sing merecia mais indicações no Oscar
Os filmes e as séries mais interessantes que eu vi em fevereiro:

Sing Sing (Sing Sing — EUA) — Filme bem emocionante sobre a recuperação de detentos de um presídio através da arte. Mais uma interpretação muito boa de Colman Domingo em um filme que merecia estar concorrendo na categoria principal do Oscar.

Setembro 5 (September 5 — ALE, EUA) — Há muito tempo que eu não via um filme bom sobre jornalismo (Não gente, “Spotlight” não é bom). Mostra a tensão, as chances de errar, o estresse de uma cobertura ao vivo de algo de grande magnitude e que até então não tinha qualquer precedente, o sequestro de atletas da delegação de Israel durante a Olimpíada de Munique em 1972.

No Other Land (No Other Land — PLE, NOR) — Documentário pesado sobre a destruição dos vilarejos de Masafer Yatta, na Cisjordânia, por parte do governo de Israel a partir do olhar de um ativista palestino e um jornalista israelense que se unem para documentar os abusos das autoridades de Israel. É de embrulhar o estômago.

Um completo desconhecido (A complete unknown — EUA) — Acho que o que me faz gostar mais do filme de James Mangold é a música de Bob Dylan enquadrada em imagens encenadas do que o filme em si. Mas como não amar este Bob Dylan que começa a sair do folk para fazer a revolução particular da sua música a plugar a sua guitarra?

O reformatório Nickel (Nickel Boys — EUA) — O que eu mais gosto do filme de RaMell Ross é a forma como ele é filmado. Mas sua história também é bem interessante e inspirada num terrível caso real.

Trilha sonora para um golpe de Estado (Soundtrack to a Coup d´Etat — BEL, FRA, NL) — Documentário bem interessante que mistura a Guerra Fria e o jazz para contar os bastidores do assassinato do líder congolês Patrice Lumumba que levou os músicos Abbey Lincolsn e Max Roach a invadirem a reunião do Conselho de Segurança da ONU para fazer um protesto.

Better Man: A história de Robbie Williams (Better Man — ING, EUA, CH, FRA, AUS) — Cinebiografia do ex-cantor do Take That que foi até certo ponto foi uma boa surpresa para mim. Ainda que em alguns momentos caia numa mesmice, o filme tem algumas boas ideias que me deixaram interessado até o fim.

Heróis desonestos do SAS (SAS Rogue Heroes — ING — BBC) — Esta série conta a história do insano batalhão inglês que operava atrás das linhas inimigas durante a Segunda Guerra Mundial. Batalhão este foi fundamental para que os nazistas não conquistassem a África e na tomada da Itália do governo fascista. Tem cada história tão louca que é difícil acreditar que foi real até o momento em que a série alterna imagens fictícias com gravações reais.

Seu amigão da vizinhança Homem-Aranha (Your Friendly Neighborhood Spider-Man — EUA, JAP — Disney Plus) — Essa animação devia ser o modelo do futuro da Marvel. Tem conexão com o Universo, mas tem vida própria. Os heróis coabitam o mundo, mas está cada um vivendo a sua vida, eventualmente se esbarrando, mas tudo dentro da sua realidade. E é uma história raiz do Homem-Aranha. Bela surpresa.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Capitão América e o sonho da Marvel de construir um admirável futuro novo

Desgaste natural do modelo, problemas na justiça com o ator que era a grande aposta de vilão da nova saga, saída de cena de atores que construíram personagens carismáticos e que conquistaram o público, aposta num modelo de multiverso que se revelou equivocada, uma pandemia… São inúmeros os problemas que fizeram o trem da Marvel Studios descarrilar. Depois de um ano de 2024 em que se pode considerar que a Marvel praticamente fez uma pausa para reorganizar a casa, havia uma expectativa baixa, mas alguma expectativa de que o novo filme do Capitão América seria um recomeço com algum frescor do Universo Cinematográfico do estúdio.

De fato, “Capitão América: Admirável Mundo Novo” (Captain America: Brave New World, no original) tem uma cara de fase 1 da Marvel. Aquela em que os heróis começaram a ser apresentados, lidaram com ameaças locais graves, mas em que também o terreno começava a ser preparado para o grande desafio futuro que viria pela frente. Contudo, há alguns problemas nisso tudo.

O primeiro é que não estamos mais na fase 1 e já se passaram 17 anos desde o primeiro filme do estúdio. Ou seja, o que o filme dirigido pelo até então pouco conhecido Julius Onah tenta fazer, no caso, emular uma subcamada de nostalgia daquele começo de saga em 2008 já não causa o mesmo impacto, pois aquilo não é mais novidade para fãs antigos, fãs de quadrinhos e fãs (se é que houve algum) chegados durante a pandemia. O segundo é que este já é o 35º filme da Marvel. O desgaste é evidente. A falta de criatividade é notória. E a Marvel tem um enorme peso de um longo passado de pontas soltas a resolver. Pelo menos neste filme ela tira um grande elefante da sala, a questão envolvendo o celestial no Oceano Índico do qual pouco se falou desde “Eternos” (2021). E resolve uma ponta que ninguém mais lembrava: por onde andava o Líder (Tim Blake Nelson) desde a sua aparição em “O Incrível Hulk” (2008).

Todavia, o maior problema de “Admirável Mundo Novo” é a falta de coragem de um roteiro e de um filme que passou por diversas refilmagens. O filme pega emprestado o nome de um clássico da literatura escrito por Aldous Huxley e lançado em 1932. No livro “Admirável Mundo Novo”, Huxley descreve uma sociedade distópica sobre a desumanização dos seres humanos em que de um lado existe uma civilização ultraestruturada e refém do progresso científico e do outro um grupo considerado “selvagem”, que simplesmente segue a ordem natural da sociedade antes que a ciência e a tecnologia tomassem conta da organização social.

O enredo tinha tudo para espelhar e refletir não a história de Huxley, mas trazer elementos do livro, mesmo ideias genéricas para debater o novo mundo em que os Estados Unidos são presididos pelo General Ross (Harrison Ford, que assume o personagem em substituição ao falecido William Hurt), a tecnologia é extremamente avançada, temos super-humanos por todos os lados e a humanidade ainda sofre com os efeitos da morte e posterior retorno à vida de metade do planeta.

Nada disso acontece. O admirável mundo novo do título se resume a uma frase de efeito de um programa jornalístico para dizer que agora o planeta não tem apenas o vibranium de Wakanda, mas descobriu que o celestial do Oceano Índico produziu adamantium. Sim, AQUELE adamantium que os fãs de X-Men conhecem muito bem.

Se o roteiro bastante expositivo e desinteressante não reflete nada, resta a história rasa do filme em si. Ela se resume basicamente a um projeto de vingança do Líder que Sam Wilson (Anthony Mackie) tentará resolver para impedir uma crise internacional e a injusta condenação de seu amigo Isaiah Bradley (Carl Lumbly) ao corredor da morte. Mesmo os dilemas de Sam são fugazes. Não há espaço para uma reflexão quando ele mais uma vez coloca em jogo o merecimento de usar o escudo de Steve Rodgers e assumir um manto que parece pesado demais para ele, um homem comum que não tem o soro do supersoldado correndo nas suas veias. Este dilema é mais uma vez resolvido de forma en passant após uma sessão de terapia com o seu colega Bucky Barnes (Sebastian Stan).

Se a trama do filme é pueril, pelo menos tem o mérito de colocar a Marvel com os pés de volta no chão. Saindo de tramas cósmicas e brigas com seres quase celestiais para os graves problemas do dia a dia do planeta.

Algumas cenas de luta do filme também são bem divertidas, mas é pouco. Muito pouco para um filme que almejava ser um recomeço da Marvel. O futuro do Universo ainda está longe de ser admirável. Vamos ver se o Quarteto Fantástico conseguirá resgatar a Marvel da irrelevância.

Nota 6,5/10.