Lembro muito bem quando o jornal Extra publicou uma série de reportagens que contava a rotina do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na época, eu era um jornalista ainda iniciando a carreira, que trabalhava num jornal da minha cidade e achei impressionante a coragem que Dona Vitória teve movida por uma indignação pelo que ela via acontecer pela janela do seu apartamento em Copacabana. Conhecendo a realidade do Rio de Janeiro, eu não teria a mesma coragem.
Vale a pena demais ler as reportagens do jornalista Fábio Gusmão e que bom que o Extra as republicou recentemente. Leia aqui a série “Janela Indiscreta” do Extra.
Vinte anos depois das reportagens, chega aos cinemas “Vitória”, filme inspirado na história daquela senhora. Estrelado por Fernanda Montenegro e dirigido por Andrucha Waddington, que pegou o projeto depois do falecimento do diretor Breno Silveira, o filme infelizmente é um recorte muito real da vida no Rio de Janeiro.
Sob a interpretação magistral de Montenegro, Waddington soube captar tão bem a vida amalgamada que coexiste na cidade que é uma das vitrines do Brasil para o mundo. O Rio tem a beleza, as relações cordiais, as trocas de pequenos favores por dinheiro, as pessoas que se ajudam gratuitamente, a simpatia dos seus habitantes, mas também tem a corrupção, a má educação, o desrespeito, a relação simbiótica do poder com a ilegalidade. A crueldade do crime, a impunidade, o medo de não se estar seguro nem dentro de casa.
Qualquer um que já tenha vivido próximo a uma comunidade tão fortemente comandada pelo tráfico quase tem gatilhos de transtorno de estresse pós-traumático com as cenas do tiroteio que mostram Vitória deitada no chão, ou dormindo dentro do banheiro com medo de uma bala perdida. Para não falar de quem realmente tem que viver na linha de frente dentro das comunidades sob o jugo do tráfico.
O maior mérito do filme é dar essa textura tão viva a uma vida no Rio que nas últimas duas décadas teve pequenos picos de melhora em meio ao oceano sem fim de problemas. A própria Ladeira dos Tabajaras continua sofrendo de problemas semelhantes aos denunciados por Vitória há 20 anos, como mostra uma reportagem do Extra publicado neste mês de março.
Outro ponto forte do filme é aliar o drama social com uma reflexão sobre a solidão na velhice. Dona Vitória é sozinha e, por isso, valoriza tanto as interações que têm com Bibiana (Linn da Quebrada) ou o menino Marcinho (Thawan Lucas), que vive na favela perto do seu prédio, mas a ajuda com as compras e em pequenos favores no dia a dia. E por isso, ela faz de tudo para tentar protegê-lo quando Marcinho começa a ser cooptado pelo tráfico.
A solidão é inevitável na velhice, mas isso não faz de Vitória uma mulher triste e amargurada. Pelo contrário, mesmo antes de se indignar com o que acontece na frente da sua janela, Waddington mostra uma mulher ativa, que vive a sua vida com as limitações naturais do corpo. Uma mulher que tem a sua rotina, caminha na praia, tem os seus momentos de diversão e que tenta ajudar ao próximo e ser justa na medida do possível. Seus embates com o síndico e os moradores do condomínio em que vive são os momentos que demonstram muito bem que a sua indignação e senso de justiça vão para todos os lados. Do mais alto escalão da polícia às pessoas com quem convive diariamente.
“Vitória” toma algumas liberdades em comparação com a história original publicada na reportagem de Fábio Gusmão. O principal deles é o personagem Marcinho, mas seu acréscimo é um ganho para a história, pois mostra uma realidade bastante conhecida de quem mora no Rio. A transformação de um menino bom em soldado do tráfico pela falta de oportunidades e pela pobreza da família.
Por outro lado, muitas passagens que parecem irreais realmente aconteceram. Como o fato de Vitória afrontar o tráfico. Num dado momento, os traficantes realmente sabiam que ela estava filmando, mas aparentemente tinham tanta segurança de que nada aconteceria com eles que simplesmente pouparam a vida dela por acharem que ela era apenas uma velha maluca. Também é real a bala que atingiu a casa dela, uma realidade infelizmente bem comum de quem vive perto de zonas de conflito. Também é real a resistência em sair do apartamento em Copacabana conquistado com tanto suor. No fim, a reportagem só foi publicada porque Vitória aceitou deixar Copacabana e entrar para programa de proteção à testemunha.
A identidade de Vitória só foi revelada em 2023, quando ela faleceu em Salvador, na Bahia, onde foi morar quando entrou para o programa de proteção a testemunha. Joana da Paz desejava ter a sua história contada em um filme e sonhava até com Fernanda Montenegro no papel dela. Embora não tivesse tido a chance de ver o filme pronto, seu desejo foi atendido. E mais do que isso, ganhou um ótimo filme que ajudará a eternizar ainda mais o seu ato de coragem.
Nota 8,5/10.