domingo, 31 de agosto de 2025

Os filmes e as séries de agosto

Os filmes e as séries mais interessantes de agosto:

Ladrões (Caught Stealing — EUA) — Nunca imaginei que eu veria um filme de Darren Aronofsky, diretor de “Pi” (1998), “Réquiem para um sonho” (2000), “Cisne Negro” (2010) e “Mãe!” (2017), no melhor estilo do cinema de Guy Ritchie do final dos anos 1990. É pura diversão. E fica a lição: cuidado com falsos amigos.

On Falling (ING, POR) — Escrito e dirigido por Laura Carreira é um filme fundamental ao mostrar a precarização do trabalho, a duríssima vida do imigrante e a uberização das nossas vidas.

Elskling (NOR) — Primeiro longa da diretora Lilja Ingolfsdottir, .o filme fala sobre como Um os traumas de infância atrapalham as nossas relações e, se não tratamos estes traumas, a conta sempre vem no convívio com seu parceiro. Em alguns momentos, ele me lembrou “A pior pessoa do mundo”, outro filme norueguês que eu adoro. Helen Guren está incrível como a protagonista.

F1: O Filme (F1: The Movie — EUA ) — Embora seja um filme que pareça mais publicidade do que cinema, Joseph Kosinski conseguiu pelo menos trazer para as cenas de corrida as mesmas tomadas emocionantes que vemos em “Top Gun: Maverick” (2022).

Ernest Cole: Achados e Perdidos (Ernest Cole: Lost and Found — FRA, EUA) — Excelente documentário de Raoul Peck, que documenta muito bem a solidão do exílio e o duro regime do Apartheid sul-africano a partir da vida e obra do fotógrafo Ernest Cole. Nota 8.

Filhos (Vogter — DIN, SUE. FRA) — Entre a vingança e a ética, fica apenas o dilema que corroi a alma da protagonista. Fazer o certo por vezes é o mais duro, enquanto o desvio do caminho pode trazer graves consequências. Adoro a Sidse Babbitt Knudsen.

Sirât (FRA, ESP)  Parecia ser apenas um filme sobre a busca de uma jovem desaparecida, mas conforme ele foi passando, me fez pensar sobre muitas coisas. E quão trágico e efêmera pode ser a vida a partir de pequenas escolhas.

O Urso (The Bear — EUA — FX) — Belíssima quarta temporada. Parece que finalmente o Carmy e seus colegas estão resolvendo seus problemas.

The Gilded Age (EUA — HBO) — Adoro a versão americana de “Downton Abbey”, principalmente porque ela mostra um momento de transformação, a ascensão do trabalhador comum sem pedigree, o novo dinheiro do capitalismo se impondo diante dos velhos ricos, que vão perdendo prestígio e tendo que dividir o seu espaço na sociedade. Só gostaria que houvesse mais espaço para o baixo clero, os empregados, terem suas próprias histórias. É pouco em comparação com “Downton Abbey”.

Indomável (Untamed — EUA — Netflix) — Um policial traumatizado, um assassinato misterioso e toda uma trama intrincada descobrir a verdade. Tudo com imagens bem bonitas de um parque nacional dos Estados Unidos. É formulaico, mas bem legal. Só não faz sentido ter segunda temporada.

Olhos de Wakanda (Eyes of Wakanda — EUA — Disney Plus) — A animação mostra um grupo de guerreiros de Wakanda que ao longo da história humana recuperam objetos roubados do país. A premissa é boa, mas podia ser melhor. Por outro lado, é legal ver essa expansão do universo de Wakanda.

Book Review: “Atos Humanos”, de Han Kang

“Todos os dias observo a cicatriz que tenho na mão. Este sítio onde outrora o osso esteve exposto, onde uma secreção esbranquiçada escorra de uma ferida putrefata. Sempre que vejo uma vulgar esferográfica Monami, fico com a respiração presa na garganta. Espero que o tempo me arraste como água enlameada. Espero que a morte chegue e me limpe, me liberte da memória dessas outras mortes esquálidas que assombram os meus dias e as minhas noites.

Luto sozinho, dia após dia. Luto contra o inferno a que sobrevivi. Luto contra a realidade da minha própria humanidade. Luto contra a ideia de que a morte é a única maneira de escapar a essa realidade” (Pág. 146)

Quando Han Kang foi laureada com o Nobel de Literatura em 2024, a Academia Sueca destacou a “intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana” da autora.

Até então eu não conhecia a escritora sul-coreana. Mas a premiação acabou por me chamar a atenção para o seu trabalho descrito por quem o conhece e estuda como uma escrita experimental e pela sua capacidade de explorar a fragilidade humana em contexto de dor, conflitos emocionais e físicos e traumas históricos.

A promessa era de uma leitura interessante. Entretanto, depois de três livros, posso dizer que infelizmente Han Kang não é para mim.

Acho interessantes os temas que ela aborda, mas acho que a pegada experimental da escrita me afasta um pouco de sua arte. Pensando em retrospectiva, talvez tenha sido isto que tenha me feito achar “O livro branco” (2016) um pouco indecifrável aos meus olhos. Na ocasião, cogitei que o meu afastamento fosse causado por uma diferença na língua entre o coreano original e a tradução para o português. Hoje, porém, penso que embora este fator ainda tenha importância, o estilo também é algo que me afasta do livro.

Perto de “O livro branco”, “Atos Humanos” (2014) é mais linear. Tal qual “A Vegetariana” (2007), o meu favorito dos três que li.

Se em “A Vegetariana” há um elemento de horror em como a sua protagonista vai além do limite pelas suas ideias, em “Atos Humanos” o horror está no Estado, que promoveu um massacre na região de Gwangju após os protestos iniciados por estudantes e abraçados pela população contra o fechamento de universidades e a falta de liberdade de expressão em 1980.

A partir da busca do protagonista pelo cadáver do melhor amigo, vamos acompanhando as histórias daqueles que cruzam o seu caminho antes e depois da fatídica noite em que seu amigo foi assassinado.

Infelizmente, a prosa de Han Kang não me prende. É um livro que por vezes eu me vi até um pouco perdido e desinteressado.

Por outro lado, “Atos Humanos” tem alguns méritos. Entre eles, os seguintes:

1- Registrar a história para mostrar ao mundo que ela não deve se repetir.

2- Em meio ao soft power sul-coreano de K-pop e K-drama, mostrar um outro lado bem sombrio da Coreia. Lembrando que tem apenas 45 anos que tais eventos terríveis aconteceram. Do ponto de vista histórico, isso é uma vírgula no tempo.

3- Expor a crueldade do ser humano, que frequentemente flerta com a barbárie.

A segunda metade do livro é bem interessante na exposição destes três pontos.

Queria ter gostado mais de Han Kang, mas acho que depois de três livros nossa relação termina aqui. Três obras é uma boa medida para determinar se devo continuar ou não investindo tempo num autor. E para mim a escritora sul-coreana não funcionou. Posso mudar de ideia no futuro. Mas hoje o sentimento é de ponto final. 

domingo, 24 de agosto de 2025

“F1” fica entre a publicidade e o cinema

Duelo entre o jovem e o experiente: um clichê de roteiro
Com o sucesso da série da Netflix “Drive to Survive” e o novo boom de popularidade da Fórmula-1 , não ia demorar muito para que a entidade que controla o esporte investisse no cinema para trazer ainda mais visibilidade para o esporte. “F1: O Filme” é uma aposta até certo ponto certeira nesta direção.

Dirigido por Joseph Kosinski, de “Top Gun: Maverick” (2022), o filme tem uma receita de bolo simples: uma equipe em apuros e precisando vencer corridas para se manter no grid, um choque de gerações entre um piloto veterano (Sonny Hayes, vivido por Brad Pitt) e uma jovem promessa (Joshua Pearce, vivido por Damson Idris), um drama básico aqui e ali é os necessários momentos de redenção.

“F1” é redondinho. Diria até que é redondinho até demais. O filme muitas vezes navega numa linha tênue entre a publicidade e o cinema.

Como é uma produção “oficial”, ela procura não ferir suscetibilidades. Os pilotos reais da F1 são citados com respeito, ganham espaço, suas glórias são exibidas enquanto a fictícia equipe Apex luta por sua sobrevivência.

A própria existência da Apex em meio às equipes reais é uma forma de o filme não tomar lados, não fazer com que uma equipe real do grid tenha mais destaque do que outra num filme que pareceu com os espaços de cada escuderia milimetricamente calibrados de acordo com sua importância no grid e na história.

Tudo soa meio artificial no filme. Mesmo as idas e vindas da relação de Hayes e Pearce não têm muito drama. São apenas dois galos que precisam aprender a conviver de no galinheiro e até que eles não têm muito atrito real. Apenas divergências fruto de desinformação e disse me disse.

Também é difícil de engolir a quantidade de absurdos que acontecem no filme para fins de dramaticidade. Na F-1 real, acho que Hayes teria sido banido por conduta antidesportiva ou alguma coisa do gênero. Dizem que a inspiração do seu estilo arrojado foi Ayrton Senna. De fato, Senna era um adversário duro na pista e que muitas vezes estocava a corda dos limites. Mas Hayes é um personagem que só na ficção mesmo.

Por outro lado, o filme é divertido demais. Kosinski conseguiu levar para a pista as cenas eletrizantes que produziu no ar em “Top Gun”, fazendo com que sintamos a urgência e a necessidade de vitória da Apex na pista.

Ainda assim, “Drive to Survive” consegue ser ainda mais impressionante com as cenas reais das temporadas da F-1.

Mas não dá para negar que “F-1: O Filme” é muito bem feito. Eu não consegui tirar o olho da tela até o fim. E isso é mérito de um roteiro muito bom, ainda que previsível demais, da direção eletrizante de Kosinski e do trabalho dos atores.

Nota 7,5/10.

Book Review: “A morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstói

“Com a consciência disso, e ainda com a dor física, e ainda com aquele medo, tinha de se deitar na cama e, muitas vezes, não dormir a maior parte da noite. E de manhã era preciso levantar-se, vestir-se, ir ao tribunal, falar, escrever, e quando não era necessário ir lá, ficar em casa as mesmas vinte e quatro horas do dia, cada uma das quais era um martírio. E tinha de viver assim, à beira da morte, completamente sozinho, sem uma única alma que o compreendesse e tivesse pena dele”. (Pag 50)

Vladimir Nabokov considerava “A morte de Ivan Ilitch” uma das obras máximas da literatura russa. É difícil contra-argumentar um Nabokov e outras tantas figuras importantes que veem nesta pequena novela de Liev Tolstói como uma das obras mais importantes da literatura russa e talvez a mais relevante de Tolstói.

É óbvio que “A morte de Ivan Ilitch” tem inúmeras qualidades. Escrito logo após a conversão religiosa do autor entre 1879 e 1880, o livro conta a história de um juiz da alta corte que sofre com uma doença terminal.

A agonia e o sofrimento físico de Ivan Ilitch soam como uma espécie de pagamento pelos pecados de uma vida hipócrita e superficial, uma vida de mentiras e com um casamento celebrado por dinheiro, e não pelo amor.

A ideia de que vivemos uma vida vazia sobre a qual só nos damos conta no leito de morte perpassa todo o livro, que no fim narra a história de um homem medíocre que precisa passar por um sofrimento que é quase pedagógico.

O livro narra a vida, mas também o dor e a amargura de Ivan Illitch, que só encontra uma réstia de alívio na relação cordial com o empregado Guérrassim.

É curioso como Tolstói nesta fase convertida ao Cristianismo faz com que seu personagem sofra uma via-crúcis. Como Ivan Ilitch foi avaro em vida, a sua morte precisa ser dolorosa e agônica. E solitária. Embora tenha família, Ivan Ilitch se isola e quase deseja acabar com a tortura que sofre e que, consequentemente, impõe a todos.

Neste ponto, Tolstói se aproxima de Fiódor Dostoiévski no tratamento dado a seus protagonistas que não são tementes a Deus. Todos sofrem. Precisam sofrer para expiar seus pecados.

Se há uma semelhança entre Ivan Ilitch e personagens como Raskólnikov, de “Crime e Castigo” (1866) e Ivan Karamazov, de “Os Irmãos Karamazov” (1880) eles se afastam no fim de suas jornadas. Enquanto os personagens de Dostoiévski encontram algum alívio e até redenção quando aceitam o sofrimento espiritual e se voltam para Cristo, Ivan Ilitch resiste até o fim ao mergulho na fé. Por isso, a sua morte é tão seca, vazia e direta.

Não tenho repertório para julgar se “A morte de Ivan Ilitch” é de fato uma das obras máximas da literatura russa. No meu duelo imaginário com Nabokov, só posso esperar a derrota.

Por outro lado, de um ponto de vista estritamente pessoal, gosto mais de “Anna Karenina” (1878). Penso ser uma obra mais interessante de se ler. O que, obviamente, não faz com que “A morte de Ivan Ilitch” seja um livro ruim. Apenas prefiro Dostoiévski quando o assunto é sofrer por falta de fé.

sábado, 16 de agosto de 2025

“Elskling” e o preço da falta de terapia

Helga Guren é o grande destaque do filme
Primeiro longa-metragem da diretora Lilja Ingolfadottir“Elskling” é uma pedrada que em alguns momentos lembra um outro excelente filme norueguês: “A pior pessoa do mundo” (2021). Talvez “Elskling” seja até um pouco mais amargo, mas na essência eles guardam alguma semelhança. Especialmente na busca de suas protagonistas em investigar seus problemas, dramas e dilemas internos.

Aqui, vemos Maria (a espetacular Helga Guren), lidando com um segundo casamento que entra num ponto de desgaste após sete anos. Com quatro filhos para criar e um marido que embora a ame está muito ausente pela natureza do seu trabalho, ela se vê sufocada a ponto de explodir de raiva constantemente.

Por um momento, o filme parece que vai fazer o inventário de um relacionamento que começou tão lindamente como o início do filme mostra, mas que vai acabar terrivelmente como em muitos divórcios. Algo como “História de um casamento” (2019).

No entanto, Ingolfsdottir está mais interessada em ir mais a fundo do que o filme americano e expor a gênese dos nossos problemas. E a solução (spoiler: é terapia).

“Elsklimg” levanta a ideia de que se não cuidamos de nossos traumas de infância, eles serão monstros que baterão na nossa porta em nossos relacionamentos futuros. E isso fica muito claro nas atitudes, medos e inseguranças de sua protagonista.

E se não conseguimos perceber as sutilezas que Guren consegue entregar tão bem, o filme desenha para nós ao mostrar a relação de Maria com a sua filha mais velha e com mãe, num dos pontos de virada do filme que nos faz compreender tão bem como aquela alma está quebrada e precisando de ajuda.

“Elskling” mostra como os traumas ajudam a impor barreiras mas nossas relações e criam dificuldades para que as pessoas consigam se conectar. Nem Maria, nem Sigmund (Oddgeir Thune) são culpados por serem quem são. Foi o ambiente que os fez assim. A dificuldade está em romper as barreiras para que eles possam se reconectar.

De certa forma, “Elskling” é um filme anti-Disney. Se o estúdio americano gosta de vender a ideia mitológica de alguém que é feito para uma outra pessoa e vai cuidar de você e o casal será feliz para sempre, “Elskling” prefere mostrar a vida como ela é: somos almas quebradas, com criações imperfeitas, e precisamos lidar com nossos traumas para fazer esta relação dar certo. Ou seguimos em frente até encontrarmos alguém que esteja disposto a travar esta árdua batalha conosco.

“On Falling” e a solidão de ser imigrante

Joana Santos soube interpretar as dores do imigrante
Assistir a “On Falling” na condição de imigrante é saber identificar todos os signos retratados pela diretora Laura Carreira.

Da vida em comunidade dividindo casas com estranhos à sensação de não pertencimento a lugar nenhum, passando pelo olhar solitário de sua protagonista, Carreira conseguiu resumir muito bem a sensação que muitos imigrantes passam.

Seu filme é uma jornada dura de uma imigrante portuguesa que vive na Escócia em busca de uma vida melhor, mas se vê trabalhando em subempregos, com uma tremenda dificuldade financeira e até passando fome e frio.

É curioso que o nome da protagonista seja Aurora, cujo significado é o amanhecer, o raiar do dia, quando a Aurora de “On Falling” parece estar sempre eclipsada pela vida medíocre de casa-trabalho-casa a que somos forçados a nos impor especialmente pelas dificuldades financeiras.

E como a atriz Joana Santos consegue com poucas palavras e alguns gestos nos contar tanto sobre esta Aurora, uma personagem que está no limite do desmoronamento físico e psicológico. A cena da entrevista de emprego de Aurora é de partir a alma, por revelar os sonhos em contraste com a realidade desumana.

“On Falling” nos mostra como estamos caminhando muito mal como sociedade. Os sinais estão muito claros. Na Escócia ou em Portugal. No Brasil ou na Irlanda. Onde quer que se vá, o cenário do mercado de trabalho é desanimador. Os imigrantes são a mão de obra frágil e barata que podem ser aproveitadas por qualquer empresa sem muitos escrúpulos. E as soluções estão longe de ver o raiar do dia.

Book Review: "O Padrinho", de Mário Puzo

“A transformação que Michael sofreu foi tão extraordinária que os sorrisos desapareceram dos rostos de Clemenza e Tessio. Michael não era alto nem de constituição robusta, mas a sua presença parecia irradiar perigo. Nesse momento, ele era a reencarnação do próprio Don Corleone. Os seus olhos adquiriram um tom castanho pálido e o rosto estava completamente branco. Parecia estar disposto a atirar-se a qualquer momento sobre o irmão mais velho e mais forte. Não havia dúvida de que se ele tivesse uma arma na mão Sonny estaria em perigo. Sonny parou de rir e Michael perguntou-lhe numa voz extremamente fria:

- Pensas que não sou capaz de fazê-lo, meu sacana?” (Pág. 119)

Se “O Poderoso Chefão” é um grande filme, um dos maiores da história do cinema, é também porque teve como base um grande livro escrito por Mário Puzo.

Pode-se dizer que “O Padrinho” (a versão que eu li foi em português europeu, daí o nome diferente do livro cujo nome original é “The Godfather”) é a pedra fundamental da literatura de máfia, ainda que o primeiro texto a tratar do tema seja a peça de teatro “Os mafiosos de Vicaria”, de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca, de 1863. Se o termo “máfia” nunca foi usado nesta peça, foi nela que pela primeira vez se falou numa gangue que tem um chefe, um ritual de iniciação e conceitos como a da omertá, o código de silêncio dos mafiosos.

Embora o livro de Puzo não tenha sido o primeiro a tratar do tema, foi no seu texto publicado em 1969 que se popularizou o termo máfia e se tratou de forma mais direta e detalhada de toda a capilaridade de uma organização criminosa como a máfia siciliana, com influência em todas as esferas de poder de um país.

Seu livro é delicioso e extremamente rico em detalhes ao contar a saga da família Corleone, seus conflitos e disputas de poder com as outras famílias mafiosas de Nova York, ao mesmo tempo em que retrata a ascensão e construção de poder de Don Vito Corleone, um imigrante italiano que chega aos Estados Unidos e enxerga o país como a verdadeira terra das oportunidades para construir o seu império.

Corleone tem três filhos, o impulsivo Sonny, seu sucessor natural, Freddo, o jovem que não foi feito para trabalhar nos negócios da família, e Michael, o mais inteligente de todos. O que rejeitou seguir a vida na sombra do pai, virou um oficial do Exército que lutou na Segunda Guerra Mundial e quer construir uma história com a sua namorada Kay e longe do mundo da máfia, mas que se vê cada vez mais dentro daquele mundo conforme os acontecimentos do livro vão se sucedendo.

O livro mostra com ainda mais riqueza como Don Corleone e Michael são personagens muito complexos e mais parecidos do que se pode imaginar. Vito tem uma calma, uma frieza e parece estar pensando muito a frente dos demais. Por isso é tão respeitado e temido. Michael é frio e calculista, e também tem um certo dom de enxergar o cenário futuro, ainda que não com a mesma habilidade do pai.

Os dois são homens contidos, mas que fazem o que é necessário pela família. Seus ritos de passagem foram semelhantes e mudaram completamente as suas histórias. Pai e filho estão extremamente ligados, por mais que Michael seja o mais distante dos três filhos de Don Corleone.

Ler o livro anos depois de ter visto a trilogia de Francis Ford Coppola enriquece ainda mais estes dois personagens, que de forma muito certeira foram interpretados por Marlon Brando (primeiro filme), Robert De Niro (segundo filme) e Al Pacino, o Michael Corleone em toda a trilogia. A escolha de Pacino então foi certeira na época. Ele ainda não era um ator conhecido, mas não conseguiria imaginar outro ator melhor para este papel.

Fugi um pouco do livro, pois não tem como não associar o texto de Puzo ao filme “O Poderoso Chefão”, que também contou com Puzo como roteirista.

Mais de 50 anos depois do seu lançamento, “O Padrinho” pode ser visto como um clássico inabalável da literatura de máfia. Através da ficção com um fortíssimo fundo de verdade (e a máfia interferiu nas filmagens do filme, como é bem retratado na série “The Offer”), o livro de Puzo abriu caminho para a exploração de um gênero e para livros-reportagens absolutamente fundamentais para entender estas organizações criminosas como os trabalhos de Roberto Saviano em “Gomorra” (2006) e “Zero Zero Zero” (2013).

domingo, 3 de agosto de 2025

“Sirât” e a fragilidade do ser humano

Logo na início de “Sirât”, o diretor Oliver Laxe exibe uma mensagem que explica o título do filme. Sirât vem a ser uma expressão que vem da tradição islâmica e significa uma ponte. Ponte esta descrita como fina como um fio de cabelo e mais afiada do que uma espada.

Basicamente, ela seria uma metáfora para a dificuldade em seguir o caminho certo e o nível de precisão necessária para alcançar o seu destino.

Eu devia ter prestado mais atenção a este detalhe no início, pois ele me deixaria mais preparado para tudo o que veria nas duas horas seguintes.

Filme que conta a história de um pai e um filho que saem por raves que acontecem no deserto do Marrocos em busca da filha/irmã desaparecida, “Sirât” é um filme que nos leva a refletir sobre a fragilidade do ser humano e como determinadas escolhas nos direcionam para os mais diferentes destinos.

É também um filme que questiona e coloca em perspectiva a sensação de segurança que eventualmente podemos ter.

Estou pisando um pouco em ovos para escrever aqui, pois este é um raro filme em que falar sobre eventos que acontecem na tela podem prejudicar a experiência.

Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes neste ano, “Sirât” nos faz pensar. Demorei um pouco a compreender a sua vibe, embora tenha gostado de cara das cenas tão cruas e cheias de textura das raves e também das imagens bem bonitas do deserto. Um deserto que evoca beleza e horror, em que perigo está sempre à espreita aguardando uma decisão equivocada. O deserto é como a morte com quem os homens jogam xadrez, se eu puder evocar uma imagem de “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman (1957).

O uso do som também é uma das ferramentas mais relevantes no filme. E quase um personagem na história.

Ainda estou digerindo o filme, mas quanto mais penso, mais gosto do filme.

Nota 7,5/10.

O relacionamento como equação matemática em “Amores Materialistas”

Pedro Pascal é o destaque do filme
Se “Amores Materialistas” fosse escrito e dirigido por qualquer outro diretor, corria um grande risco de virar uma comédia romântica medíocre igual a muitas que vemos por aí no cinema. Mas Celine Song filma com tanta beleza e elegância, que eleva este filme a um outro patamar cinematográfico.

Segundo filme da diretora sul-coreana e sucessor do excelente “Vidas Passadas”, “Amores Materialistas” conta a história de Lucy (Dakota Johnson), uma matchmaker que trabalha para uma empresa que organiza encontros entre pessoas para formarem casais baseados nos gostos e, especialmente, nas exigências de cada um.

Enquanto atravessa entre a crise e o sucesso no seu trabalho, Lucy se vê entre dois homens, o ricaço Harry (Pedro Pascal) e o garçom e ator amador, e também seu ex-namorado John (Chris Evans).

Lendo esse enredo, o filme soa tão pobre quanto o personagem de Evans, mas Song aproveita os clichês das filmes românticos para refletir sobre uma série de situações bem comuns no dia de hoje.

“Amores Materialistas” fala sobre como o ser humano virou um número descartável, como o amor está sendo visto mais como uma equação matemática que envolve mais uma performance a partir de um conjunto de posses do que como encontrar alguém que melhor combine com você.

O filme também fala sobre como o ser humano não passa de mercadoria no jogo do amor determinado pelos algoritmos (ou boxes) da empresa de Lucy, que não deixa de ser como os aplicativos de encontros de hoje em dia.

O filme emana uma frieza matemática que parece se encaixar perfeitamente com o jeito como Dakota Johnson atua. No entanto, quando ela precisa ter uma virada emocional, “Amores Materialistas” não se sustenta, pois ela não convence quando precisa ter um tom diferente da mulher fria que (supostamente) sabe fazer perfeitamente a matemática do amor. Chris Evans também não vai muito além com o seu galã romântico pobre apaixonado por uma mulher que é out of his league.

Do trio principal, o melhor é Pascal. Ator que está aparecendo em muitas produções populares recentemente, Pascal parece não ter medo de ficar com a imagem saturada. E acaba sendo difícil se cansar dele, uma vez que o ator sabe fazer seus personagens crescerem sempre com interpretações no tom certo. O seu Harry nos engana no início até mostrar que têm mais em comum com Lucy do que imaginávamos.

“Amores Materialistas” só não consegue fugir do desfecho padrão das romances. E da lição no final de que o amor nem sempre é uma equação exata.

Nota 7,5/10.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Os filmes e as séries de julho

Os filmes e as séries mais interessantes que vi em julho:

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos (The Fantastic Four: First Steps — ING, EUA, CAN, NZL — 2025) — Diretor de “WandaVision”, Matt Shakman usou está experiência para fazer um “Quarteto Fantástico” num cenário futurista como estática dos anos 1960 e inspiração nos “Jetsons”. A química dos quatro protagonistas é a força de um filme que tem coração. Finalmente o Quarteto ganhou uma boa adaptação no cinema.

Superman (Superman — EUA, CAN, AUS, NZL — 2025) — A trama do imigrante que faz a vida nos Estados Unidos e é odiado e invejado por um bilionário é um dos pontos altos desta nova versão do Superman. James Gunn acertou em cheio, embora tenha feito um filme que tem muita informação e muita subtrama para apenas pouco mais de duas horas. Mas o Superman de Gunn é o herói necessário para a era Donald Trump.

Amores Materialistas (Materialists — EUA, FIN — 2025) — Celine Song filma tão bem e com tanta elegância que eleva a qualidade deste filme que nas mãos de outro diretor poderia ser apenas uma comédia romântica vazia. Gosto como ela reflete sobre o frio mercado do amor, mas só gosto mesmo do trabalho de Pedro Pascal.

Apocalipse nos Trópicos (Apocalypse in the Tropics — EUA, BRA, ING — 2024) — Filme que investiga a influência da igreja evangélica na política e sociedade brasileira, isto não é um documentário, mas um filme de terror. Infelizmente o filme não traz muitas respostas para as causas de o Brasil ter virado refém de um fundamentalismo religioso. Ele apenas documenta o horror, o que também é importante.

Bird (Bird — ING, EUA, FRA, ALE — 2024) — Por uns momentos pensei que o filme resvalaria num certo pornô da miséria, mas no fim ele se revelou um coming of age áspero, difícil de digerir, mas que tem alguma sensibilidade.

Três amigas (Trois Amies — FRA — 2024) — Francês adora refletir sobre relacionamentos e adultério. Este é um filme bem legal sobre as desventuras amorosas e como o dito amor é um trabalho árduo de construção cheio de contratempos, reviravoltas e uma boa dose de sorte.

“O Estúdio” (The Studio — EUA — Apple TV) — Eu queria agradecer a Sal Saperstein por esta série existir. “O Estúdio” é fenomenal. Agrada a quem gosta da indústria do cinema, mas também a quem gosta de uma boa comédia com um roteiro muito bom e muita criatividade. Seth Rogen deve ser um cara muito querido por seus pares para fazer com que eles tenham participado desta série em situações potencialmente constrangedoras. Aguardo a segunda temporada, pois nós gostamos de “MOVIES! Movies! Movies!”

“Terra da Máfia” (Mobland — ING, EUA — Paramoumt/MTV) — Série de gângsters ingleses absolutamente fantástica. Uma das melhores atuações da carreira do Pierce Brosnan, com uma Helen Mirren maravilhosamente perturbada. E ainda tem Tom Hardy se virando nos 30 com cara de desgosto pela vida para proteger a família em meio à guerra de gangues.

“Poker Face” (Poker Face — EUA — Peacock) — Charlie Cale (Natasha Lyonne) parece ainda mais enrascada na segunda temporada do que na primeira. A série criada por Rian Johnson foi uma das boas surpresas de 2023 e manteve um bom nível na segunda temporada com novos desafios para Charlie e histórias mirabolantes enquanto ela viaja pelos Estados Unidos.

domingo, 27 de julho de 2025

“Quarteto Fantástico” não é perfeito, mas tem coração

Finalmente um filme bom do Quarteto
Depois de tantas décadas sendo maltratado por diferentes versões de gosto duvidoso no cinema, pôde-se dizer que finalmente o Quarteto Fantástico ganhou uma adaptação digna do grupo no cinema.

São muitos os acertos do filme. A começar pela estética anos 1960 futurista que emula demais os quadrinhos e tem uma clara inspiração no desenho animado dos Jetsons.

Outro ponto positivo está no elenco. A química do quarteto Pedro Pascal (Reed Richards), Vanessa Kirby (Sue Storm), Ebon Moss-Bachrach (Ben Grimm) e Joseph Quinn (Johnny Storm) funciona muito bem. Especialmente os três primeiros, que conseguem dar nuances em suas atuações onde o roteiro por vezes soa pueril e básico.

Pascal sabe transmitir uma insegurança e falhas ao mesmo tempo em que demonstra ser o cientista mais brilhante daquele universo. Kirby foi muito feliz ao aproveitar muito bem o quanto o roteiro valoriza e faz justiça a Sue Storm como líder, ponto de equilíbrio, força mental e uma heroína extremamente poderosa do Universo Marvel.

Já Moss-Bachrach, que ainda tem o desafio de muitas vezes ser apenas a voz do Coisa, consegue transmitir perfeitamente as inseguranças de Ben e seus medos com a sua aparência e sua dificuldade de se encaixar num mundo cheio de pessoas de aparência normal enquanto ele é todo feito de pedra. Isso parece que será algo ainda mais explorado no futuro, principalmente pelo que vemos de sua relação com Rachel Rozman, personagem de Natasha Lyonne.

O elo mais fraco dos quatro é o Tocha Humana de Quinn, ainda que ele também tenha muitos bons momentos, especialmente nas cenas de ação. No entanto, é o personagem que mostra menos complexidade do quarteto.

Outro ponto positivo está na história. A melhor coisa que a Marvel podia fazer neste momento era o simples. Uma história com começo, meio e fim e uma linha bem básica: o Quarteto é o super grupo de heróis da Terra que precisa fazer o possível para impedir que o vilão Galactus (Ralph Ineson) destrua o seu mundo e roube o filho de Richards e Storm, que aparentemente é muito poderoso.

É um roteiro direto, sem grandes conexões com toda a história do Universo Marvel em um filme que pode ser visto como uma aventura única, sem precisar olhar para outras produções da Marvel.

É claro que não é a história mais criativa do mundo e as diálogos por vezes são até bem simples e pouco criativos, mas é um feijão com arroz bem gostoso.

Além do mais, por mais que possa ter algumas falhas, “Quarteto Fantástico: Primeiros Passos” é um filme bonito e que tem coração. O diretor Matt Shakman, o mesmo de “WandaVision” (2021), uma das melhores produções da Marvel pós-“Vingadores: Ultimato” (2019). Shakman parece ser um diretor que consegue ler bem os personagens da Marvel e transformar em produções que se não são brilhantes, são bastante satisfatórias e prazerosas de assistir.

Em “Quarteto Fantástico”, Shakman meio que repete o exercício que fez em “WandaVision”, especialmente nos episódios que falavam das séries de TV do passado. E dá muito certo. Ainda mais aliado à ótima direção de arte do filme e o CGI, que parece muito bem feito. Pelo menos aos olhos de um leigo no assunto como eu.

Em resumo, “Quarteto Fantástico: Primeiros Passos” é um ótimo filme da Marvel como não se vê há algum tempo. Se será o primeiro passo para a retomada do estúdio, só o futuro dirá.

Nota 8,5/10.