“A transformação que Michael sofreu foi tão extraordinária que os sorrisos desapareceram dos rostos de Clemenza e Tessio. Michael não era alto nem de constituição robusta, mas a sua presença parecia irradiar perigo. Nesse momento, ele era a reencarnação do próprio Don Corleone. Os seus olhos adquiriram um tom castanho pálido e o rosto estava completamente branco. Parecia estar disposto a atirar-se a qualquer momento sobre o irmão mais velho e mais forte. Não havia dúvida de que se ele tivesse uma arma na mão Sonny estaria em perigo. Sonny parou de rir e Michael perguntou-lhe numa voz extremamente fria:
- Pensas que não sou capaz de fazê-lo, meu sacana?” (Pág. 119)
Se “O Poderoso Chefão” é um grande filme, um dos maiores da história do cinema, é também porque teve como base um grande livro escrito por Mário Puzo.
Pode-se dizer que “O Padrinho” (a versão que eu li foi em português europeu, daí o nome diferente do livro cujo nome original é “The Godfather”) é a pedra fundamental da literatura de máfia, ainda que o primeiro texto a tratar do tema seja a peça de teatro “Os mafiosos de Vicaria”, de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca, de 1863. Se o termo “máfia” nunca foi usado nesta peça, foi nela que pela primeira vez se falou numa gangue que tem um chefe, um ritual de iniciação e conceitos como a da omertá, o código de silêncio dos mafiosos.
Embora o livro de Puzo não tenha sido o primeiro a tratar do tema, foi no seu texto publicado em 1969 que se popularizou o termo máfia e se tratou de forma mais direta e detalhada de toda a capilaridade de uma organização criminosa como a máfia siciliana, com influência em todas as esferas de poder de um país.
Seu livro é delicioso e extremamente rico em detalhes ao contar a saga da família Corleone, seus conflitos e disputas de poder com as outras famílias mafiosas de Nova York, ao mesmo tempo em que retrata a ascensão e construção de poder de Don Vito Corleone, um imigrante italiano que chega aos Estados Unidos e enxerga o país como a verdadeira terra das oportunidades para construir o seu império.
Corleone tem três filhos, o impulsivo Sonny, seu sucessor natural, Freddo, o jovem que não foi feito para trabalhar nos negócios da família, e Michael, o mais inteligente de todos. O que rejeitou seguir a vida na sombra do pai, virou um oficial do Exército que lutou na Segunda Guerra Mundial e quer construir uma história com a sua namorada Kay e longe do mundo da máfia, mas que se vê cada vez mais dentro daquele mundo conforme os acontecimentos do livro vão se sucedendo.
O livro mostra com ainda mais riqueza como Don Corleone e Michael são personagens muito complexos e mais parecidos do que se pode imaginar. Vito tem uma calma, uma frieza e parece estar pensando muito a frente dos demais. Por isso é tão respeitado e temido. Michael é frio e calculista, e também tem um certo dom de enxergar o cenário futuro, ainda que não com a mesma habilidade do pai.
Os dois são homens contidos, mas que fazem o que é necessário pela família. Seus ritos de passagem foram semelhantes e mudaram completamente as suas histórias. Pai e filho estão extremamente ligados, por mais que Michael seja o mais distante dos três filhos de Don Corleone.
Ler o livro anos depois de ter visto a trilogia de Francis Ford Coppola enriquece ainda mais estes dois personagens, que de forma muito certeira foram interpretados por Marlon Brando (primeiro filme), Robert De Niro (segundo filme) e Al Pacino, o Michael Corleone em toda a trilogia. A escolha de Pacino então foi certeira na época. Ele ainda não era um ator conhecido, mas não conseguiria imaginar outro ator melhor para este papel.
Fugi um pouco do livro, pois não tem como não associar o texto de Puzo ao filme “O Poderoso Chefão”, que também contou com Puzo como roteirista.
Mais de 50 anos depois do seu lançamento, “O Padrinho” pode ser visto como um clássico inabalável da literatura de máfia. Através da ficção com um fortíssimo fundo de verdade (e a máfia interferiu nas filmagens do filme, como é bem retratado na série “The Offer”), o livro de Puzo abriu caminho para a exploração de um gênero e para livros-reportagens absolutamente fundamentais para entender estas organizações criminosas como os trabalhos de Roberto Saviano em “Gomorra” (2006) e “Zero Zero Zero” (2013).
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