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Costner ambiciona um épico como os do passado |
“Horizon: uma saga americana — Capítulo 1” é um grande filme. Esta provavelmente teria sido a minha conclusão se o filme tivesse sido lançado em 7 de julho de 1962 e eu fosse um jornalista escrevendo para a Gazeta da Cidade, porque não havia internet nem espaços online para expressar qualquer opinião. Tendo sido lançado mais de 50 anos depois, tenho a sensação de que o trabalho de Kevin Costner já nasceu bastante datado.
A ideia de Costner, que volta a dirigir um filme duas décadas depois de “Pacto de Justiça” (2003), era criar um épico americano como os grandes épicos do passado. “Horizon” tem um que de “E o vento levou…” (1939) e almeja contar uma saga como a que vemos em “Assim caminha a humanidade” (1956). Olhando por esse prisma, Costner enaltece uma inocência que soa muito artificial e falsa no mundo de 2024. Todo aquele jogo de cena de corações palpitantes entre Frances (Sienna Miller) e Trent Gephart (Sam Worthington), essa paixão inocente e cheia de dedos que emerge em meio a tragédia vivida por Frances não encontra muito eco no cinema do século XXI.
Ao criar este mise-en-scène, Costner parece sentir falta destes diálogos quase puros do cinema do século passado. O problema é que a modernidade, entre outras coisas, nos tornou cínicos e práticos. Num mundo em que o Tinder e aplicativos semelhantes são lei e nos exibimos feito carne no açougue em busca da atenção e desejo do outro, a pureza que Costner tenta evocar no filme é quase caricata.
A problemática indígena
“Horizon” almeja contar em quatro partes a saga da colonização do Oeste dos Estados Unidos durante o século XIX. Uma história marcada por massacres, conflitos e sangue como boa parte da história humana.
E aqui temos o maior problema do filme. Parece que Costner tem uma nostalgia de como os indígenas eram retratados nos velhos faroestes de John Wayne e reproduz o mesmo em seu filme. Na visão do diretor, os indígenas são violentos, impulsivos, cruéis matadores de mulheres e crianças que se colocam como um entreposto para o natural avanço da civilização. Não há em “Horizon” uma única linha que dê voz aos indígenas, que estão vendo as suas terras serem arbitrariamente tomadas pelos brancos colonizadores. Para dizer o mínimo, isso é desonesto. Outros poderiam usar palavras menos polidas e não estariam de todo errados.
Em “Horizon” voltamos no tempo ao identificar os indígenas como vilões, ainda que seja a invasão dos brancos que afasta a caça dos povos que já ali estavam. Isso, no entanto, não interessa para Costner. A luta em “Horizon” é a da resistência do homem branco para vencer e conquistar aquela terra inóspita. E os indígenas são apenas o obstáculo.
É uma pena que “Horizon” opte por uma narrativa tão canhestra, pois o filme tem virtudes. A começar pela beleza. Quem gosta de faroeste se fartará com as paisagens de tirar o fôlego, com os signos que acompanham o gênero, com a narrativa lenta e descentralizado do seu filme, que não tem exatamente um protagonista, mas uma série de personagens tentando construir a sua história entre erros e acertos em meio às inóspitas terras do Oeste. É como se o filme fosse quase um “Guerra e Paz” da conquista do Oeste americano.
No entanto, a sua primeira parte mostrou também os velhos preconceitos de um cinema que não cabe mais no século XXI. Vamos ver se a segunda parte corrige um pouco o rumo dessa narrativa que ecoa a um passado do qual sabemos que existe, mas não devemos nos orgulhar.
Os mesmos truques de Axel Foley
Assim como “Horizon” evoca a um cinema do passado que não existe mais, “Um tira da pesada 4”, evoca a um cinema dos anos 80 que também não parece encontrar eco nos nossos cínicos tempos. Aparentemente, o diretor Mark Molloy e a Netflix não tinham nenhum interesse em renovar o público da franquia ao reativá-la.
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Axel Foley, o malandro de Detroit |
“Um tira da pesada 4” se passa em 2024 e mostra um Axel Foley vivendo as mesmas aventuras que vimos nos anos 1980 e 1990. Foley está mais velho, tem uma filha adulta com quem precisa se reconciliar (um clássico das franquias restauradas quem tentam voltar à ativa), mas ao mesmo tempo ele precisa resolver um caso escabroso em Beverly Hills que, claro, envolve corrupção policial.Para dar conta disso, Foley usa os mesmos truques do passado. Se faz passar por personagens inventados por ele, inventa histórias, usa o seu carisma e simpatia e, assim, vai decifrando o enigma da investigação que ajudará a sua filha e os seus velhos amigos de Hollywood.
É delicioso ver Eddie Murphy fazendo as mesmas presepadas dos anos 1980. Eu dei muitas gargalhadas ao longo do filme, mas, lembremos, os tempos atuais são outros, o tenho dúvidas se as falsas narrativas criadas por Foley convencem as novas gerações na era da múltipla informação em que descobrimos a vida inteira de uma pessoa com alguns cliques.
É preciso exercitar muito a suspensão de descrença para acreditar que Foley é bem-sucedido como policial encrenqueiro graças a seu carisma e criatividade. Funciona demais para o público que cresceu com Foley e tem uma nostalgia desse cinema simples e sem muitas preocupações com frases batidas como “desenvolvimento de personagem” e “não consigo me conectar com o personagem”.
Mas será que Foley conseguiu atingir as camadas mais jovens? Sendo um filme da Netflix, é difícil saber pela falta de parâmetros como a bilheteria. Seja como for, “Um tira da pesada 4” é divertido demais ainda que repita ipsis litteris o estilo de 40 anos atrás.
O que me leva a questão: até onde a nostalgia pode ser boa? Entre Costner e Molloy, penso que repetir os erros do passado é um limite minimamente aceitável. “Horizon” é bonito, mas indigente com os povos indígenas e isso é inaceitável. “Um tira da pesada 4” é demasiado inocente, mas gostoso e divertido demais a ponto de podermos ignorar o cinismo do nosso mundo por pelo menos duas horas.