segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Lana Wachowski faz de Matrix um manifesto sobre a nostalgia

Matrix ainda tem muito o que dizer
Dezoito anos depois do fim da primeira trilogia de “Matrix” e 22 anos depois da estreia do filme que revolucionou muita coisa entre linguagem e tecnologia dentro do cinema, Lana Wachowski está de volta e mostra que ainda tem muito a dizer sobre o mundo em que vivemos. Dessa vez sem a parceira da trilogia original, a irmã Lilly, Lana usa a retomada ao universo sci-fi criado por ela para produzir uma espécie de manifesto sobre o mundo moderno.

“Matrix Resurrections fala sobre as epidemias que vivemos na cultura e na sociedade. O poder da nostalgia, o retorno ao passado, o reaproveitamento cíclico do que supostamente dá certo. Está tudo lá na nova e atualizada versão da Matrix. A vida em looping, a falta de reflexão, seres humanos pregados em telas apenas fazendo o que estão programados para fazer. O filme e parte de suas ideias pode ser resumido em uma frase que Morpheus (Yahia Abdul-Mateen II) diz se dirigindo a Neo (Keanu Reeves): “Nada conforta mais a ansiedade do que um pouco de nostalgia”.

É uma frase poderosa. Lana sabe que vivemos a era da nostalgia. O desejo de voltar a uma vida não poderosa, mas sim confortável. Algo que a cultura pop tão bem identificou e do qual o cinema vem se alimentando para lucrar. O que mais se vê nas últimas décadas é a reprodução desta nostalgia com o retorno de franquias de cinema, retorno de personagens, retorno de histórias consagradas. Piscadelas em filmes para um público que viveu aquela história e sente o coração confortado quando é chamado a reconhecer o que se convencionou chamar de easter eggs.

E o próprio “Matrix Resurrections” não se vê longe disso. Lana, no entanto, vê o seu passado construído entre o final do século passado e o início do século XXI como uma ironia sobre o tempo presente. Todas as imagens usadas da primeira trilogia, em especial do filme de 1999 são para traçar a teia de ironia que ela usa nos conectar ao passado. No filme, nós somos as pessoas nesta Matrix 2.0 criada pelo Analista (Neil Patrick Harris). Nós vivemos confortáveis nas zonas de nostalgia que ela nos joga enquanto alimentamos a indústria com a nossa força (financeira, consumidora, de trabalho) tal qual os humanos presos e vivendo na irrealidade da Matrix, essa força aparentemente indestrutível que rege os destinos do mundo. Nós servimos à Matrix da indústria que nos devolve com pílulas azuis de nostalgia quando as próprias pílulas não tem lá grande importância. No novo Matrix, elas mais parecem placebos que funcionam de forma psicológica do que propriamente são uma libertação. Ou mesmo criam conexões com o já vivido, retomando a teoria inicial da nostalgia.

Lana usa o próprio filme como metalinguagem para desenvolver sua teoria nostálgica. São deliciosas as referências que ela faz à trilogia original, com direito a piada interna com a tecnologia do bullet time, e referências ao próprio estúdio Warner Bros., quando afirma que o estúdio queria fazer uma sequência da trilogia original do game que Neo criou em sua nova versão depois de ter retornado a Matrix. É neste momento que Smith, um dos personagens mais interessantes do filme vivido pelo excelente ator Jonathan Groff se vira para Neo e diz: “As histórias nunca acabam. Estamos sempre contando as mesmas histórias com nomes e rostos diferentes”.

Mais a frente isso vai se complementar de forma perfeita quando Neo percebe que a história da sua vida foi pasteurizada dentro da própria Matrix, transformada em “algo trivial”, como afirma Bugs.

No novo Matrix, Lana desconstrói o cânone da sua trilogia e rearruma o equilíbrio de forças. Outra frase poderosa do filme é quando Bugs (Jessica Henwick) se dirige a Morpheus para dizer que “a escolha é uma ilusão. Você já sabe o que tem que fazer”. A diretora sabia perfeitamente. Tanto que usou o quarto filme de sua história para fazer uma espécie de manifesto anti-nostalgia em um filme cercado de pílulas de nostalgia. Ao longo de “Matrix Resurrections” vemos rápidas imagens dos filmes anteriores, cenários remontados logo na abertura e no meio da história, retorno de personagens em momentos distintos e a própria história parece uma cópia do primeiro Matrix. Com adaptações aqui e ali para mostrar que você está vendo algo novo com carinha de repetido.

Para além de um belo manifesto, Matrix tenta trazer de volta seus principais personagens, Neo e Trinity (Carrie-Anne Moss) e buscar uma nova origem para eles depois dos acontecimentos em “Reload” e “Revolutions” (ambos de 2003). Aqui temos uma nova história de origem, perguntas que ficaram no trailer sendo respondidas e um desfecho que deixa em aberto para um futuro.

Ao contrário do primeiro filme, Suas cenas de ação não são das mais inspiradas. Há alguns bons momentos, mas nada marcante como o que vimos no Matrix original. Além de uma repetição de ações de Neo que tornam o trecho final do filme um pouco mais pobre.

Mas a ação e mesmo uma fetishização de armas nunca foi o foco do mundo de Matrix. Tanto a ação quanto os combates são vetores intermediários para as ideias que as irmãs Wachowski tinham para seus filmes. E isso se mantém com este trabalho de Lana. Não é por acaso que “Matrix Resurrections” tem incomodado e dividido opiniões. O quanto será que nos vimos presos na espiral de nostalgia da Matrix?

Cotação da Corneta: nota 8.

Nenhum comentário: