quarta-feira, 28 de abril de 2021

“Falcão e o Soldado Invernal”: discussões importantes e furos

Sam Wilson como novo Capitão América
Segunda série da Marvel a entrar no streaming da Disney, “Falcão e o Soldado Invernal” pode ser analisada por pelo menos dois ângulos. Se observarmos a série sob um ponto de vista acadêmico da discussão de um tema racial e o papel do Capitão América para o caso do personagem de Sam Wilson (Anthony Mackie), e dos traumas de muitas guerras, a questão da culpa e perdão para o caso de Bucky (Sebastian Stan), é possível tirar muitos elementos interessantes.

Por outro lado, analisar apenas o aspecto narratológico da série, seu papel no universo Marvel e a construção da história em si faz a série perder muitos pontos, dado os seus buracos e problemas na jornada ao longo de seis episódios. Tudo culminando com um episódio final óbvio, esquecível, acelerado e pouco inspirado.

Vamos tentar dissecar estes dois aspectos antes de uma conclusão a partir de intercessões. E a partir deste ponto, teremos spoilers da série.

Falando do primeiro ponto. “Falcão e o Soldado Invernal” trouxe como pontos de discussão três questões:

  1. O tema racial a partir do peso de ter um Capitão América negro, uma vez que o herói representa o ideal americano. Ideal este que a história americana mostra que nunca foi a da inclusão de negros na sociedade.

Neste ponto, é muito importante o contraponto e as ideias trocadas entre Sam Wilson e Isaiah Bradley (Carl Lumbly), um antigo supersoldado negro que foi alvo de experiências por parte do governo americano e usado como cobaia por cientistas por ter sido o único sobrevivente com soro numa época em que Steve Rodgers e Bucky ainda não tinham sido encontrados e estavam em algum ponto do planeta congelados.

Neste ponto é muito forte o que Isaiah diz para Wilson ao afirmar: “A América nunca aceitará um Capitão negro e nenhum negro aceitaria vestir as estrelas e as listras”.

Como já sabemos, e tal qual nos quadrinhos, Wilson resolve carregar esse peso a mais nas costas para tentar ser a imagem da coalizão e carregar uma bandeira que não é apenas a do Capitão América, mas a da inclusão e do respeito aos negros naquela sociedade. E a importância de ser um representante positivo para os jovens. Nas palavras de Wilson, ele quer tentar uma “abordagem diferente”, mesmo sabendo que será odiado por muitos negros como ele e considerado alguém que se curvou a um sistema opressor e racista.

Mas ainda assim, dentro do debate da representatividade que a Marvel foi muito cobrada ao longo dos últimos anos e, por isso, forçada a entrar, é bem bonita a cena do sobrinho de Wilson tocando com carinho o escudo e passando os dedos nele enquanto olha orgulhoso para o tio. Nesta cena, temos a representação imagética direta do que a série tanta passar. É o tipo de cena que ajuda, inclui, e insere o Capitão América que Wilson será agora como um novo herói negro. Além de ser uma aposta da Marvel como potencial substituto de Chadwick Boseman, ator que vivia o Pantera Negra e faleceu de câncer no ano passado.

2- O segundo ponto é o estresse pós-traumático de Bucky e sua busca pelo perdão.

Se Wilson tenta ser uma bandeira e levantar as questões do racismo, o arco de Bucky é o do soldado quebrado, sofrendo de culpa e com dívidas a pagar. Não podemos esquecer que ao longo do primeiro arco narrativa do Universo Marvel, que se encerrou com “Vingadores: Ultimato” (2019), o Soldado Invernal foi manipulado por Zemo (Daniel Brühl), viveu a serviço da Hydra e matou dezenas de inocentes.

Na série, Bucky está em tratamento com uma psicóloga, tem que lidar com traumas do passado e sente-se perdido e sem identidade depois dos sacrifícios de Steve e da forma como Wilson abre mão do escudo que receberá das mãos de Steve.

Enquanto tenta ajudar o parceiro, Bucky passa a série toda tentando encontrar seu lugar neste mundo pós-blip, fora do seu tempo normal — afinal, tal qual Steve, Bucky é um homem do início do século XX em pleno século XXI — e sem o seu grande amigo. Tudo isso tentando buscar uma espécie de redenção e paz de espírito.

3- Há ainda um terceiro tema explorado. E eu diria mal e confusamente explorado, que é o dos Apátridas e a discussão de refugiados pós-retorno do blip, a estalada de dedo de Thanos que dizimou metade do Universo.

Aqui temos um grupo chamado de Apátridas liderado por Karli Morgenthau (Erin Kellymann) que acredita que o mundo era melhor durante os cinco anos em que metade do Universo estava desaparecido e cobra a abertura de fronteiras nacionais através do slogan “One world, one people” enquanto os políticos do mundo estão decidindo se usarão o exército para empurrar os refugiados para outros lugares.

Vilã da série, Karli é uma das pessoas que tomou o soro do supersoldado, o que a confere superforça e agilidade como a do Capitão América. E ela tenta usar isso pra convencer o mundo das suas ideias. Mas essa parte da história não é bem contada, as discussões não são minimamente aprofundadas para além do debate um tanto quanto raso de ideias. Me pareceu o ponto mais fraco dos três aspectos aqui citados.

É quando entramos no aspecto narrativo da série. Embora comece bem com um piloto muito bom e excelentes cenas de ação, “Falcão e o Soldado Invernal” vai caindo de produção até o episódio final.

Além do já citado problema da vilã, a série tem pelo menos mais três problemas.

1- O arco do John Walker (Wyatt Russell).

Quem conhece os quadrinhos sabe que John Wallker não ia ficar muito tempo com o manto do Capitão América. Toda a história dele assumindo o uniforme seria para que ele cometesse erros, graves erros, e para que o o uniforme, o escudo e o título fosse, assim, passado para Sam Wilson. O que empobreceu a série por conta da sua obviedade narrativa. Lá pelo episódio 4, especialmente depois da dramática cena de Walker com o escudo ensanguentado, ficou claro que “Falcão e o Soldado Invernal” foi uma série criada única e exclusivamente para fazer de Sam Wilson o Capitão América. Todo o resto seria extremamente secundário. E foi exatamente o que vimos no início do sexto e último episódio.

A Walker restou rapidamente vestir o manto do Capitão América para que ele pudesse entrar em descrédito e se transformar no conhecido personagem do público dos quadrinhos Agente Americano. O que ele fará a partir de agora? É uma resposta que apenas Val de la Fontaine (Julia Louis-Dreyfus), também conhecida como Madame Hydra, poderá responder. E muito provavelmente esta resposta será dada em “Capitão América 4”, futuro filme que foi confirmado ao fim da série.

Por sinal, pequena observação. Isso só confirma o movimento da Marvel de contar pequenas histórias no streaming que se conectarão com grandes histórias no cinema.

Porém, o arco do John Walker deixou a desejar, uma vez que ele foi apenas escada para Sam Wilson assumir o escudo.

2- Outro problema foi a presença de Sharon Carter (Emilly VanCamp).

Essa personagem talvez tenha sido a mais prejudicada da série. Apareceu do nada num episódio passado em Madripoor apenas para atiçar os fãs de quadrinhos, pois esta é a ilha onde o Wolverine passou um bom tempo da sua vida, ajudou um pouco os heróis e depois reapareceu surpreendentemente como Mercador do Poder numa tentativa de plot twist no final que ficou bem ruim e não convenceu ninguém.

Pior do que Walker, Sharon não foi nem escada. Ela foi um personagem jogador para qualquer lado e não foi explicado por que ela se tornou quem é, qual era sua real relação com os Apátridas e nem se deu uma pista mínima do que ela pretende fazer daqui para frente. Sharon foi uma personagem extremamente mal aproveitada na série.

3- E assim chegamos ao episódio final.

No sexto episódio era preciso em cerca de 50 minutos fechar todos os arcos. Mostrar a ascensão de Wilson como Capitão América, a redenção do Soldado Invernal, um eventual desfecho do Zemo — que teve bons momentos na série — Walker transformando-se no Agente Americano e um desfecho para Sharon.

Era muita coisa, mas era possível fazer. Ainda assim, o episódio mostrou-se acelerado demais, panfletário demais e com alguns momentos do roteiro um pouco constrangedores, como aquele momento palestrinha do Wilson com os senadores no meio da rua. Não estamos aqui condenando o tom do discurso, mas a forma como ele é inserido no episódio. Há recursos no roteiro melhores e a própria série mostrou isso no episódio 4 quando quis debater a causa dos Apátridas ou no episódio 5, quando é debatido o racismo e o uso do manto do Capitão América.

Com isso, a redenção pessoal do Soldado Invernal virou quase uma nota de pé de página, enquanto as conclusões de Sharon e Walker pareceram meio jogadas na tela apenas para dar uma satisfação mínima ao consumidor.

É inevitável fazer comparações neste momento. E é uma pena que “Falcão e o Soldado Invernal” não tenha tido o mesmo cuidado narrativo que a série anterior da Marvel, WandaVision”. No fim, esta acabou por ter uma história mais redonda e bem contada enquanto “Falcão e o Soldado Invernal” apresentou uma série de problemas, buracos de roteiro ao longo dos episódios, e entregou um episódio final muito abaixo do esperado.

O que não significa que a série tenha sido ruim. Pelo contrário, os bons momentos dela superam os momentos ruins. Mas a série e a Marvel tinham potencial de entregar um produto mais bem acabado.

Cotação da Corneta: Nota 7.

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