quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Em Lisboa com Madonna e a turnê 'Madame X'

Madonna no terceiro ato/Reprodução Instagram
Madonna nunca foi daquelas artistas que se sentam na usina de hits e fazem um show repetitivo para os fãs. Pelo contrário, a cantora sempre se impôs desafios em quase 40 anos de uma carreira camaleônica tanto no visual quanto nas experiências em sua sonoridade. E é a artista que se impõe desafios que vemos na turnê do seu novo álbum, “Madame X” (2019).

Iniciando por Lisboa uma pequena turnê europeia que ainda passará por Londres e Paris, Madonna trouxe à cidade que foi por algum tempo a sua casa porque um de seus filhos joga na base do Benfica (“Nunca pensei que iria me tornar uma soccer mon”), um pouco das influências do que a capital portuguesa lhe ofereceu aliada à força do seu novo disco e alguns clássicos de sua carreira.

Para isso, ela apostou em algo que raramente se vê um artista pop que atinge uma certa grandeza fazer. Um show intimista num lugar pequeno (em Lisboa, o Coliseu) e com características muito particulares. A frente do palco, cadeiras para os fãs ficarem sentados, o que praticamente não aconteceu. Nos bolsos e bolsas, celulares lacrados com bolsinhas impossíveis de abrir e que só são retiradas pelos seguranças ao fim do espetáculo. O objetivo de Madonna é fazer o público viver a experiência sem perder tempo filmando e fotografando. Numa era de superexposição e popularidade medida por likes, a cantora prefere ver a satisfação nos olhos de quem a observa e não nos números das redes sociais. E não deixa de brincar com isso.

- Eu também olho para vocês e fico pensando: por que não estão tirando fotos minhas? Talvez eu também estivesse ficando viciada – disse ela ao explicar a importância deste contato olho no olho com os fãs.

De fato, a proximidade do palco e o espaço infinitamente menor do que os estádios que ela se apresentou em todas as suas últimas turnês, trouxe uma inédita sensação de intimidade rara com um artista do porte de Madonna. Isso a deixou bem à vontade também para interagir e provocar os fãs, contar histórias da vida lisboeta, fazer piadas e até bater um papo rápido com duas pessoas que tiveram a chance de terem ainda mais proximidade com ela.

Madonna circulou no meio da plateia, sentou em uma das cadeiras para descansar e reclamou constantemente da lesão muscular que lhe causa muitas dores nos membros inferiores e já a fez cancelar sete shows da turnê. Dois deles em Lisboa.

- Madame X está lesionada – disse a cantora, que nunca perdeu o bom-humor ao dizer que o melhor momento do show é quando ela senta.

Mas pode-se dizer que com um espetáculo tão diferente, os fãs ficaram satisfeitos? Depende do que cada um esperava. Se ele for ao concerto de “Madame X” para ver Madonna enfileirando seus sucessos, haverá um certo sentimento de frustração. Principalmente porque o set list é todo baseado no novo álbum (são 11 canções de um disco de 13 faixas) com algumas músicas pinçadas da carreira da cantora para colorirem um pouco mais e servirem ao que o espetáculo propõe. 

Se, por outro lado, o fã da cantora comprar a ideia de um show com muitos elementos teatrais dividido em quatro atos, um prólogo e um epílogo onde Madonna levanta suas conhecidas bandeiras e faz com que as músicas estejam a serviço da ideia de contar uma história encadeada, aí a experiência pode ser mais agradável. 

As ideias de Madame X

Madonna propõe duas ideias diferentes em “Madame X”. Uma delas é um grande manifesto político que passa por críticas ao governo Donald Trump, algo mais forte em “American life”, a quem ela também aproveita para provocar dizendo que o presidente americano têm um pênis pequeno, e pela defesa da liberdade de todos e da força das mulheres e dos gays na sociedade. E não é por acaso que ela vai embora estendendo uma grande bandeira do movimento LGBT+ em “I Rise”. Aqui é a Madonna que se propõe incomodar como está na poesia de James Baldwin citada antes do show: “Artists are here too disturb the peace”.

Durante o show, Madonna ainda revisita seus elementos e brinca com isso. “Vocês conhecem meus clichês”. O sagrado e o profano estão sempre ali presentes, seja com bailarinas vestidas de freiras ou outros rituais encenados no palco. As provocações ganham o seu ponto alto na interpretação de “Like a prayer”, quando o palco exibe cruzes, mas também as backing vocals se postam na escadaria que forma um X com Madonna cantando ao centro. 

A segunda ideia proposta pela cantora é uma viagem por sua experiência portuguesa. Especialmente no terceiro ato. Madonna deixa clara a importância que a música portuguesa e as experiências que viveu morando em Lisboa foram importantes para a construção do álbum “Madame X” e para trazerem um frescor à sua música. E também foram fundamentais para ela sair em turnê.

- Engordei tanto comendo bacalhau que tive que sair em turnê – disse.

Sentada por causa de lesão/Reprodução/Instagram
É neste ponto que o cenário vira uma casa com diversos elementos portugueses (azulejos, escadarias, janelas bem típicas) e ela chama Dino D’Santiago e o guitarrista Gaspar Varela para tocarem com ela. 

Uma particularidade acerca disso, porém, mantém-se misteriosa. O quanto funcionaria este show para outras plateias na parte mais portuguesa do espetáculo. Será que não haveria uma recepção mais fria quando a turnê passar por países menos afeitos ao fado e com culturas tão diferentes? É algo a se analisar. A menos que está parte do show ganhe outras cores e mais mobilidade num set list que em Portugal não teve variações. 

É neste ato que Madonna emenda dois fados intercalados entre suas músicas. “Fado pechincha”, de Isabel de Oliveira, e “Sodade”, de Cesária Évora. A cantora se esforça para interpretar bem em português e tem a simpatia do público, que não faz grandes exigências e entende tudo como uma homenagem. Mas a reação de outras plateias que não estão acostumadas com a música portuguesa pode ser bem mais fria e dispersar um show que exige atenção e tem muitas pausas em suas três horas e meia.
Show este que começa com Madonna fora do palco. O prólogo do espetáculo dura meia hora em que quatro músicos interpretam oito canções apenas de forma instrumental. Entre elas, sucessos com “Secret”, “Who´s that girl”, “Like a virgin” e “Don´t tell me”. O destaque desta parte é a trompetista Jessica Pina, que embala os sucessos da cantora sempre interagindo com os fãs. Fãs estes que se empolgaram muito com “Like a virgin”.

O ponto negativo aqui é a longa espera na transição para o primeiro ato, quando Madonna finalmente dá as caras cantando “God Control”, do álbum “Madame X”. Aqui ela desafia os poderes estabelecidos, a idade e as leis da física durante “Human Nature” e emenda com uma bonita versão à capela de “Express Yourself”.

Neste primeiro ato temos as primeiras expressões interessantes do palco que, embora pequeno, é muito funcional e cheio de entradas e saídas para trazer mobilidade aos bailarinos e à cantora. O palco também é dividido em camadas para que possa ter seu cenário modificado sem que o show sofra grandes interrupções. 

É ainda possível ver com destaque um telão que se amalgama por vezes com Madonna e os bailarinos criando um efeito bem bonito de profundidade e também de fusão que terá o seu ponto alto mais à frente quando a cantora vier a cantar “Frozen”. 

No segundo ato, o destaque é “Vogue”, um dos seus grandes sucessos e cantada numa performance em que no palco surgem várias bailarinas fantasiadas de Madonna. É aqui que também é cantada a já comentada “American Life”.

Daqui vamos para o terceiro ato, quando Madonna deixa o lado político um pouco de lado
para fazer sua homenagem à cultura dos países de língua portuguesa. Traz ao palco as mulheres do batuque para cantar “Batuka”, emenda fados, canta “Crazy”, que tem um refrão em português e dá uma pinçada em “La Isla bonita” que serve de transição para um momento mais latino do show que viria com “Medellin” e recolocaria o espetáculo na rota para o ato final. 

É aqui que percebemos que as canções novas funcionam melhor ao vivo do que no disco e servem bem a proposta do show que se encaminha para o fim com o quarto ato. Aqui
temos uma das interpretações de mais impacto do show. “Frozen”, do álbum “Ray of Light” (1998), uma das mais belas canções de Madonna e interpretada com a cantora se amalgamando com as imagens do telão num efeito muito bonito enquanto a tela mostra a sua filha, Lourdes Maria, se exercitando e fazendo yoga. É um efeito muito bonito e é o momento em que a voz de Madonna soa muito bonita. Aliás, um ponto fundamental deste show é que ao contrário de outras turnês, Madonna canta o tempo todo. Não há playback. 

O espetáculo termina com a já citada “Like a prayer” e o epílogo de “I Rise”, quando Madonna se despede andando no meio da plateia e punho em riste no seu protesto final.

“Madame X” não é um show de prazer fácil. É preciso comprar a sua ideia. E é um espetáculo que se fosse possível seria bom ver pelo menos duas vezes dada a quantidade de detalhes para se prestar atenção no palco. Mas é um show de muito vigor e de uma Madonna que gosta de enfrentar e se impor desafios. Uma Madonna que se recusa a cair na mesmice para oferecer ao seu público um novo olhar sobre a sua obra.


Cotação da corneta: nota 8,5.

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