sexta-feira, 29 de março de 2019

O pesadelo somos nós

Que medo da Lupita
Há toda uma ascensão recente de filmes de terror que busca uma reflexão para além dos sustos e truques que aterrorizam o espectador. Na essência, eles permanecem classificados como horror, mas são bastante diferentes da fórmula tradicional do gênero. É a partir daí que surgem filmes como “Hereditário” (2018) e “Um lugar silencioso” (2018). 

Jordan Peele é responsável por dois bons trabalhos dentro do gênero. “Corra!” (2017) utilizava do horror para tratar do racismo em uma abordagem que usava a ciência e a perda da identidade a serviço de uma história perversa. 

“Nós” (“Us”, no original), seu mais recente filme, utiliza elementos semelhantes da ciência a partir de uma pergunta: e se todos nós tivéssemos um duplo perverso que saísse das sombras para tomar a força o nosso lugar? Um duplo que vivesse nos subterrâneos a mesma vida em que vivemos, mas de uma forma terrível e dolorosa, sem poder decidir o próprio destino. E se este duplo resolvesse se rebelar? Sair das trevas para assumir um lugar em que ele vê ser também de direito dele. É possível aceitar esse ato de vingança após toda uma vida de dor?

É a partir daí que a família de Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) vive o maior pesadelo de sua vida. Quando o casal e seus dois filhos vão passar férias em uma casa na praia, ela se vê diante de um pesadelo do passado. Foi ali, naquela região, que Adelaide se perdeu dos seus pais e viveu uma experiência macabra que a marcou definitivamente. 

Não é possível avançar muito na análise sem entrar em pormenores da história e, portanto, revelar passagens importantes do filme. Mas podemos resumir que a narrativa criada por Peele tem uma potência diferente a partir de pistas simples jogadas na tela. A citacao à passagem bíblica do livro de Jeremias, que trata da chegada inevitável da maldade para todas as pessoas, é o primeiro sinal de alerta. 

Mas o quão aterrador é confrontar-se com o lado mais animalesco de si mesmo é uma mensagem que permeia o filme. Os vilões, os monstros, somos nós mesmos. Sem os freios da vida em sociedade. Peele faz com que nos confrontemos com nossos piores pesadelos materializados. E poucas coisas são tão apavorantes quanto isso. 

Se “Corra!” teve um final um pouco apressado e com alguns problemas, “Nós” acabou sendo algo previsível, cujos acontecimentos caminhavam para aquele momento desde, pelo menos, a metade do filme. Mas ainda assim, quão apavorante é este final, e quantas reflexões nos trazem a partir dele. 

“Nós” é um passo além na filmografia de horror de Peele. É um filme com camadas que vão se descortinando a cada momento e além. E dá medo. Mas é um medo que, para além da violência, vem da reflexão filosófica e psicológica do que a história nos mostra. Nesse ponto, Peele acertou em cheio. 

Cotação da Corneta: nota 7,5

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