sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Cotação da corneta: 'Boyhood'

As dores do crescimento
Richard Linklater adora uma DR. Se vocês lembram bem, ele fez Ethan Hawke e Julie Delpy discutirem a relação em três filmes separados num espaço de 18 anos: "Antes do Amanhecer” (1995), “Antes do Pôr-do-Sol” (2004) e “Antes da Meia-Noite” (2013). Tudo bem que em Viena, Paris e na Grécia eu discutiria fácil qualquer relação, mas isso não vem ao caso. Eu até desconfio que Linklater não fez mais filmes do gênero porque o dia só tem basicamente três estágios (manhã, tarde e noite) e faltaram ideias para novos títulos.

O tempo passou e dessa vez Linklater resolveu ser mais ambicioso. Colocou toda uma família para discutir a relação por 12 anos! E entre mortos e feridos... bem, veja o filme para saber se salvaram-se todos.

Vocês certamente já leram sobre a história de “Boyhood”. O filme passou no festival do Rio, está bem cotado e é figura fácil aí nas paradas de sucesso e nas redes sociais. Todo mundo está falando de "Boyhood" e a corneta não ia ficar de fora desse debate. A ideia de Linklater era contar a história de uma família por 12 anos, mas dispensando a maquiagem. O envelhecimento seria mostrado em tempo real.

Assim, anualmente o diretor se reunia com seus atores por uma semana ou mais para fazer uns takes descompromissados. Quase um hobby que cada um tinha entre um projeto e outro (e foram muitos como vocês podem ver aqui). “Boyhood” foi neste tempo para Linklater e seus atores como aquele projeto paralelo interessante que os integrantes de bandas de sucesso têm. Uma espécie de Gorillaz do Damon Albarn ou o The Raconteurs do Jack White.

É assim que começamos a acompanhar a história de Mason (Ellar Coltrane), um menino monossilábico de seis anos que pelos próximos 12 passará por tudo o que um jovem passa nessa fase de tanta intensidade, desconfiança e incertezas da vida. Inclusive será o adolescente mala que todos nós já fomos um dia. Mas se você leitor for adolescente, saiba que és uma exceção. Você é incrível.

No início, a vida de Mason era muito difícil. Só para vocês terem uma ideia, Steve Jobs ainda não tinha inventado algumas das maiores invenções da humanidade no século XXI, Mark Zuckerberg ainda não tinha lançado o Facebook, a melhor rede social que existe para falarmos de como está calor lá fora e postarmos fotos de bichinhos fofos, e o COLDPLAY era a banda do momento.

Eles tinham lançado dois anos antes o “Parachutes” (2000) e vocês não têm noção do pesadelo que era ligar a rádio e ouvir "Yellow". Ir ao dentista e na sala de espera ouvir “Yellow”. Abrir a janela, vislumbrar aquele sol bonito e amarelo e lembrar de... “Yellow”! Nem a Gwyneth Paltrow aguentou muito tempo com o Chris Martin. O casamento se encerrou em dez anos, menos tempo do que Linklater levou para filmar “Boyhood”. Como era possível viver nesse mundo com tão poucas possibilidades de entretenimento?


Eram tempos difíceis, mas Mason tinha mais pedras no meio do caminho. Entre elas, uma família para lá de problemática. Através do jovem observamos o seu pai, também chamado Mason (Ethan Hawke, um especialista em DR), tentando crescer. Ele teve dois filhos muito jovem, e ainda é um irresponsável que sonha em ser músico ao invés de ir garantir o leite das crianças num emprego sério. Vemos ainda a sua mãe (Não, não é Julie Delpy e sim Patricia Arquette), uma mulher especializada em maridos com alto teor alcóolico, mas que se dedica com afinco e amor à criação dos seus filhos. É aquela mãe especial que todos amamos. E observamos Linklater praticando nepotismo ao escalar a própria filha, Lorelei, para o papel de Samantha, irmã de Mason. Que mau exemplo, tsc, tsc...

E assim a vida vai passando. Acompanhamos Mason e Samantha crescendo e mudando completamente nesse tempo, passando por conflitos típicos de adolescente (quem nunca?) e a trilha sonora melhorando sensivelmente. Neste ponto é sempre bom ter um pai que gosta de Beatles e que te prepara um Black Álbum só com o best of jamais feito das carreiras-solo de John, Paul, George e Ringo. “Band on The Run”, “Sweet Lord” e outros clássicos são fundamentais para a formação do ser humano.


Com o tempo passando, Mason vai descobrindo um talento para a fotografia, se questionando sobre que lugar tem ou deseja ter no mundo, reflete sobre as idiossincrasias do Facebook e pinta as unhas de roxo, lançando tendências. E, claro, como se não bastasse todos os problemas pelos quais passa, tem o pior aniversário da vida (quem nunca?), quando recebe, aos 16 anos, uma Bíblia, um terno e uma espingarda de presentes. Típico kit do conservador básico do Texas. Por sorte, o pai está por perto e sempre existirão os Beatles.


Já se passaram duas das quase três horas de “Boyhood” e a corneta se questiona: Como pode um filme sobre a vida como ela é ser tão bom? “Boyhood” não tem efeitos especiais, atuações daquelas de Oscar, truques e viradas de roteiro mirabolantes. Poderia ser um documentário sobre a vida de uma família americana se não fosse um roteiro escrito, lapidado por mais de uma década.

“Boyhood” é a vida comum, o dia a dia lavando pratos, limpando a casa, lidando com os problemas, procurando emprego, fazendo escolhas, tomando decisões certas e erradas... situações pelas quais todo mundo passa. E talvez por isso seja tão interessante a participação de Patrícia e das duas crianças.

Vou fazer a minha filosofia de botequim agora. Talvez tudo seja tão naturalmente real porque os jovens provavelmente passaram por problemas e questões semelhantes aos exibidos no filme em todo o período de filmagem. E Patricia sabe como é criar duas crianças. Ela vive isso em casa. Os demais atores "interpretam" mais. E é fantástico perceber a passagem de tempo neles sem qualquer recurso que não seja a própria passagem da vida. Essa foi realmente uma ótima ideia.

O projeto de Linklater era ambicioso porque o tornava refém do tempo. Muita coisa podia acontecer em 12 anos. Mas o diretor confiou na velha canção de Jerry Ragovoy, regravada pelos Stones, que diz que o tempo está ao seu lado e seguiu em frente. E o resultado foi fascinante. “Boyhood” tocou o coração da corneta (ela não é tão má assim, vai). Um filme simples, mas paradoxalmente complicado de realizar que Linklater transformou numa pequena obra-prima. Quem deu Jesse e Celine ao mundo já tinha o total agradecimento da corneta, mas o diretor conseguiu se superar. A nota de “Boyhood” é 8,5.

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