domingo, 21 de agosto de 2011

A reflexão existencialista de Malick

A família O'Brien
De uma cidadezinha do Texas, uma família é o ponto de partida para as reflexões de um diretor  sobre a origem da vida, a formação da civilização e tudo o que ela gera de mitos e concepções religiosas. Ela é o microcosmo que representa a natureza e a graça divina na qual o homem se equilibra e contesta suas próprias convicções se jogando numa realidade niilista e devastadora que marca profundamente o ser humano e o faz à poeira voltar. Reflexão existencial, contestação religiosa, muitos caminhos tomam o diretor Terrence Malick na sua obra que usa como mote o conceito de árvore da vida, que aparece na ciência, na religião, na filosofia e na mitologia, entre tantas outras áreas.

“A árvore da vida” é a obra-prima e minha reconciliação com o diretor sobre o qual cuspi abelhas africanas quando me vi diante de “Além da linha vermelha” (1998). Se o filme que usa a batalha do Monte Austin, durante a Segunda Guerra Mundial, para refletir sobre a moral humana e a necessidade da guerra era uma suprema chatice de curar qualquer um que sofra de insônia, apesar de suas sete indicações ao Oscar, a película que faturou a Palma de Ouro de Cannes neste ano me paralisou diante da tela e me conquistou desde os seus primeiros minutos com a câmera de Malick escolhendo planos incomuns com ângulos num campo de girassóis, no movimento do mar ou na explosão de um vulcão, foco em detalhes que vão de uma expressão a um galho de árvore e o brilho do sol sempre a iluminar um determinado ponto que será focado dentro da abordagem a que o diretor se propõe.

Sim, o filme é absolutamente hermético. Sim, ele é de difícil entendimento e um desafio a quem está acostumado com o padrão diálogos/cenas de ação/diálogos/cenas de sexo e por aí vai. Não tem nada disso em “A árvore da vida”. Em suas quase 2h20m, muito do tempo é gasto em reflexões, pensamentos “jogados em voz alta” ou simplesmente imagens que talvez não façam sentido num primeiro momento, mas que casam perfeitamente (acredite!) com o que o diretor se propõe a fazer. Há um longo período só de abstrações na tela que parecem testar o espectador e saber até onde ele pode ir na viagem de Malick da origem do universo até os anos 50 do século passado no Texas.

O filme começa com uma citação do livro de Jó, que diz: “Onde você estava quando eu fundava a Terra... enquanto as estrelas da manhã cantaram juntas e todos os filhos de deus rejubilavam?” Uma imagem disforme é a deixa para sermos introduzidos aos O’Brien, vividos por Brad Pitt e Jessica Chastain, ambos excelentes passando a infelicidade e a frustração de uma vida muito longe daquela que eles sonhavam, mas aturam numa casinha tipicamente americana de um subúrbio tipicamente americano.

O casal tem três filhos criados com disciplina militar pelo pai, um ex-integrante da Marinha, e amor pela mãe, dona de casa. Jessica olha para o céu, observa as folhas das árvores, o cenário bucólico e pensa que a vida é feita de natureza e de graça e que é preciso viver entre uma e outra para atingir a felicidade. Uma felicidade que ela desde sempre aparenta não ter.

A natureza para Malick é tudo aquilo que existe de belo, mas ao mesmo tempo agressivo. É paixão, mas é fúria, é sublime, mas é devastador. É uma dualidade extrema que na sua versão humana é representada por Pitt, um pai que ama os seus filhos, mas não deixa de, ao seu modo, prepará-los para uma vida dura e cruel, pois a sua visão de mundo é pessimista. Pitt é um ser humano frustrado. Sonhava em ser um músico famoso, mas só lhe resta um piano sem plateia. Tem facilidade em criar coisas. Detém 27 patentes, mas seus inventos são rejeitados mundo afora de tão inúteis como inútil é ele para a fábrica que fechará. Seu destino o envergonha e atinge o seu orgulho e sua moral dentro da família.

Jessica é a encarnação da graça divina. É amor acima de tudo e até dela mesma. Sua existência é melancólica, seus prazeres se resumem a sentir a grama do jardim tocar os seus pés e a água a banhá-la limpando mais do que o corpo, mas a sua alma num dos poucos momentos em que ela parece sentir paz. Sua dor é eterna em um casamento infeliz, mas ela nunca deixa faltar aos filhos o beijo e o carinho para que eles tenham o exemplo de que só o amor constrói uma vida sólida.

Cinquenta anos se passam e nos deparamos com Jack (Sean Penn), o filho mais velho, o problemático, o que desafia o pai sendo fruto desse conflito entre os progenitores. Jack tem um olhar declinante, vazio e busca um sentido para a vida em meio a turbulência dos mercados financeiros e aos prédios com seus vidros espelhados que nada refletem. A morte de um dos irmãos quando ele tinha 19 anos (provavelmente em alguma guerra), é uma marca profunda. Havia uma união inquebrantável entre eles. E no seu interior, ele vê o pai e a mãe sempre em conflito como as forças da natureza por vezes entram em choque.
Sean Penn como o Jack adulto e atormentado

A água que escorre da pia não é com a mesma naturalidade com que a que a família O’Brien se banhava no quintal em brincadeiras que ilustravam os raros momentos de felicidade em meio a tensão diária. A casa simples foi transformada num luxuoso, insipiente e vazio apartamento em que ele sequer troca olhares com a mulher que estava na sua cama. O mundo é diferente, embora a ganância seja a mesma. Lá atrás, era o que fazia o pai invejar os donos de grandes propriedades. Hoje é o que derruba os mercados. A natureza não é mais a mesma. A árvore que o jovem Jack (Hunter McCracken) subia ou equilibrava o seu balanço, hoje é, metaforicamente, a sobrevivente solitária de uma selva de pedras de uma metrópole americana.

Me arrisco a escrever que, em Malick, é essa árvore que contém a história da vida. É ela que faz a interconexão dos fatos, que une a explosão solar, os dinossauros que vivem e morrem na Terra, a família O’Brien e, por fim, Jack. Conceitualmente falando, a árvore da vida é uma tentativa de explicar que toda a vida no planeta está interconectada e que uma ação, gera reações e uma cadeia evolutiva que passa das raízes as folhas. Repare no cenário em que dois dinossauros, um maior e outro pequeno se encontram. Repare na forma como o maior segura com a pata a cabeça do menor caído indefeso num riacho e o observa fixamente. Agora compare na forma como Pitt segura seu filho mais velho pelo pescoço, ele tem aquele mesmo olhar firme, às vezes terno, às vezes cruel. É como se a vida no mundo fosse um eterno retorno. E isso é Nietzsche tentando me fazer entender Malick.

A árvore da vida conecta todas as formas de criação. Seu mito é listado desde o Egito Antigo e no Cristianismo ela representa também o amor de Deus. Na Bíblia, a citação no livro das Revelações diz que “o anjo me mostrou o rio da água da vida, claro como cristal, que sai do trono de Deus e do cordeiro no meio da rua principal da cidade. Em cada lado do rio estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês. E as folhas da árvore são para a cura das nações”.

Mas o conceito também aparece na ciência e no “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, que vê nas suas ramificações e interconexões uma forma de as espécies evoluírem porque ela “em algum grau pequeno conecta por suas afinidades dois grandes ramos da vida, e que aparentemente foi salvo da competição fatal por ter uma estação habitada protegida”.

Ao contrário de uma suposta imortalidade que uma fictícia árvore da vida poderia nos oferecer como em “A fonte da vida” (2006), de Darren Aronofsky, aqui Malick concebe a mortalidade como instrumento natural para a sequência dos acontecimentos. E fica claro também o quanto ele questiona esse poder divino que tanto se atribui questionando os motivos pela morte de alguém bom e inocente como um dos irmãos O’Brien. A mãe questiona, Jack questiona e pede ainda a eliminação do próprio pai, com quem no início de sua adolescência entra muitas vezes em conflito, mas acabará percebendo que ele o ama da sua forma bem particular. E o momento é do tiro iconoclasta de Malick sobre esse poder superior.

Não há conclusões em “A árvore da vida”, com seu enredo que tem passagens que lembram “2001, uma odisséia no espaço” (1968), de Stanley Kubrick. É uma reflexão existencialista e talvez aqui Malick tente dizer que está um tanto pessimista quanto à humanidade. Ou talvez eu tenha viajado demais.

Seja como for, “A árvore da vida” é uma obra-prima do diretor. Polêmica, difícil, complexa, desafiadora a quem vai ao cinema, mas fantasticamente bem concebida pelo recluso Malick, um cineasta que, agora sim, começo a achar interessante.

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