segunda-feira, 31 de março de 2025

Seis filmes e quatro séries de março

Os filmes e as séries mais interessantes que eu vi em março:

Vitória (Vitória — BRA — 2025) — A realidade nua e crua do Rio de Janeiro, Fernanda Montenegro maravilhosa lembrando a minha avó, a sua avó, a minha mãe, a sua mãe, emulando todas as mães e avós do Rio sem que ela conhecesse boa parte delas. Uma história real com o resumo de tudo o que o Rio tem de bom e de terrível até hoje. As cenas de tiroteio causam gatilho (crítica completa aqui).

Código Preto (Black Bag — EUA — 2025) — Um delicioso filme à moda Scooby-doo em que o Michael Fassbender faz o papel de Velma. Adorei. Há muito tempo não me divertia tanto com um filme do Steven Soderbergh. Tudo o que a Cate Blanchett toca é ouro. Especialmente porque eu decidi ignorer que ela fez “Borderlands”.

Mickey 17 (Mickey 17 — COR, EUA — 2025) — Primeiro filme de Bong Joon Ho após “Parasita”. Tem seus altos e baixos, mas o debate sobre a precarização do trabalho e o desprezo pela vida, e o trio Robert Pattinson, Mark Ruffalo e Toni Collette valem o filme (crítica completa aqui).

A história de Souleymane (L´Histoire de Souleymane — FRA — 2024) — A via-crúcis do imigrante no mundo em que vivemos. Três dias de incertezas, medos e vivendo no limite, o que é a realidade de muitos imigrantes pelo mundo. Um filme importante por mostrar uma realidade crua de opressão, abusos e falta de esperança em meio a um sonho de buscar uma vida melhor longe do seu país e da sua cultura.

Parthenope: Os amores de Nápoles (Parthenope — ITA, FRA — 2024) — Um bonito filme em que o amor é uma forma de sobrevivência e onde Paolo Sorrentino mais uma vez fala sobre o seu amor por Nápoles a partir da jornada de sua protagonista.

Acompanhante Perfeita (Companion — EUA — 2025) — O trailer excessivamente revelador deste filme quase matou a experiência dele, mas a sua história é tão legal que funciona mesmo que iniciemos o filme sabendo de uma informação fundamental para a narrativa.

Ruptura (Severance — EUA — 2022- — Apple TV) — O maior problema da segunda temporada de “Ruptura” é a comparação com a excepcional primeira temporada. Contudo, esta season 2 tem muitos momentos ótimos. Lamento que tenha ficando tempo demais na Lumon, quando o mais interessante estava justamente no debate sobre os direitos dos internos e em como eles são tratados pela Lumon e pelos próprios externos. A cena dos dois Marks discutindo é puro ouro. E o episódio final é fantástico. E fica a pergunta no ar: “Ficar com o seu interno é traição?”

Mil Golpes (A Thousand Blows — ING — Hulu — 2024-) — Antes DAQUELA série sobre a qual o algorítmo das redes antissociais tem me empurrado insistentemente goela abaixo (Calma! Eu vou ver no tempo certo!), Stephen Graham e Erin Doherty estrelaram esta série do mesmo criador de “Peaky Blinders”. “Mil Golpes” conta a história de uma gangue de mulheres e da transformação do boxe de briga de rua em esporte na Londres do século XIX. É bem legal.

Reacher (Reacher — EUA — 2022 — Prime Video) — Adoro “Reacher”. É uma grande presepada atrás da outra. Ele está sempre certo, bate em todos os poderosos e leva uma vida minimalista pelos Estados Unidos. A terceira temporada é a mais fraca de todas, mas ainda assim é sempre uma diversão ver suas mentiradas. O Jack Reacher só podia ser mais aberto com os sabores de sorvete. Sorvete de lavanda pode ser legal!

A travessia (A travessia — RTP — POR — 2025) — Série portuguesa bem legal sobre a pioneira travessia do Atlântico de avião feita por pelo aviador, oficial da Marinha portuguesa e nome de rua no Rio de Janeiro Sacadura Cabral e pelo geógrafo, navegador, historiador, oficial da Marinha portuguesa e igualmente nome de rua no Rio de Janeiro Gago Coutinho. Eles deram o pontapé inicial para que hoje possamos pegar um voo diário para atravessar o Oceano em poucas horas. Para uma série barata, inclusive, os efeitos especiais estão bem ok.

domingo, 16 de março de 2025

“Vitória”: A luta de uma idosa contra a criminalidade e a impunidade no Rio

Lembro muito bem quando o jornal Extra publicou uma série de reportagens que contava a rotina do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na época, eu era um jornalista ainda iniciando a carreira, que trabalhava num jornal da minha cidade e achei impressionante a coragem que Dona Vitória teve movida por uma indignação pelo que ela via acontecer pela janela do seu apartamento em Copacabana. Conhecendo a realidade do Rio de Janeiro, eu não teria a mesma coragem.

Vale a pena demais ler as reportagens do jornalista Fábio Gusmão e que bom que o Extra as republicou recentemente. Leia aqui a série “Janela Indiscreta” do Extra.

Vinte anos depois das reportagens, chega aos cinemas “Vitória”, filme inspirado na história daquela senhora. Estrelado por Fernanda Montenegro e dirigido por Andrucha Waddington, que pegou o projeto depois do falecimento do diretor Breno Silveira, o filme infelizmente é um recorte muito real da vida no Rio de Janeiro.

Sob a interpretação magistral de Montenegro, Waddington soube captar tão bem a vida amalgamada que coexiste na cidade que é uma das vitrines do Brasil para o mundo. O Rio tem a beleza, as relações cordiais, as trocas de pequenos favores por dinheiro, as pessoas que se ajudam gratuitamente, a simpatia dos seus habitantes, mas também tem a corrupção, a má educação, o desrespeito, a relação simbiótica do poder com a ilegalidade. A crueldade do crime, a impunidade, o medo de não se estar seguro nem dentro de casa.

Qualquer um que já tenha vivido próximo a uma comunidade tão fortemente comandada pelo tráfico quase tem gatilhos de transtorno de estresse pós-traumático com as cenas do tiroteio que mostram Vitória deitada no chão, ou dormindo dentro do banheiro com medo de uma bala perdida. Para não falar de quem realmente tem que viver na linha de frente dentro das comunidades sob o jugo do tráfico.

O maior mérito do filme é dar essa textura tão viva a uma vida no Rio que nas últimas duas décadas teve pequenos picos de melhora em meio ao oceano sem fim de problemas. A própria Ladeira dos Tabajaras continua sofrendo de problemas semelhantes aos denunciados por Vitória há 20 anos, como mostra uma reportagem do Extra publicado neste mês de março.

Outro ponto forte do filme é aliar o drama social com uma reflexão sobre a solidão na velhice. Dona Vitória é sozinha e, por isso, valoriza tanto as interações que têm com Bibiana (Linn da Quebrada) ou o menino Marcinho (Thawan Lucas), que vive na favela perto do seu prédio, mas a ajuda com as compras e em pequenos favores no dia a dia. E por isso, ela faz de tudo para tentar protegê-lo quando Marcinho começa a ser cooptado pelo tráfico.

A solidão é inevitável na velhice, mas isso não faz de Vitória uma mulher triste e amargurada. Pelo contrário, mesmo antes de se indignar com o que acontece na frente da sua janela, Waddington mostra uma mulher ativa, que vive a sua vida com as limitações naturais do corpo. Uma mulher que tem a sua rotina, caminha na praia, tem os seus momentos de diversão e que tenta ajudar ao próximo e ser justa na medida do possível. Seus embates com o síndico e os moradores do condomínio em que vive são os momentos que demonstram muito bem que a sua indignação e senso de justiça vão para todos os lados. Do mais alto escalão da polícia às pessoas com quem convive diariamente.

“Vitória” toma algumas liberdades em comparação com a história original publicada na reportagem de Fábio Gusmão. O principal deles é o personagem Marcinho, mas seu acréscimo é um ganho para a história, pois mostra uma realidade bastante conhecida de quem mora no Rio. A transformação de um menino bom em soldado do tráfico pela falta de oportunidades e pela pobreza da família.

Por outro lado, muitas passagens que parecem irreais realmente aconteceram. Como o fato de Vitória afrontar o tráfico. Num dado momento, os traficantes realmente sabiam que ela estava filmando, mas aparentemente tinham tanta segurança de que nada aconteceria com eles que simplesmente pouparam a vida dela por acharem que ela era apenas uma velha maluca. Também é real a bala que atingiu a casa dela, uma realidade infelizmente bem comum de quem vive perto de zonas de conflito. Também é real a resistência em sair do apartamento em Copacabana conquistado com tanto suor. No fim, a reportagem só foi publicada porque Vitória aceitou deixar Copacabana e entrar para programa de proteção à testemunha.

A identidade de Vitória só foi revelada em 2023, quando ela faleceu em Salvador, na Bahia, onde foi morar quando entrou para o programa de proteção a testemunha. Joana da Paz desejava ter a sua história contada em um filme e sonhava até com Fernanda Montenegro no papel dela. Embora não tivesse tido a chance de ver o filme pronto, seu desejo foi atendido. E mais do que isso, ganhou um ótimo filme que ajudará a eternizar ainda mais o seu ato de coragem.

Nota 8,5/10.

sábado, 15 de março de 2025

Book review: “A máquina de fazer espanhóis” e “Baratas”

“éramos sempre noventa e três pessoas no feliz idade. sempre noventa e três velhos ali metidos. e não havia alteração disso. a cada fuga, alguém entrava de novo a compor o número preciso de utentes, como um universo perfeito, completo, que se alimenta dos restos de tempo que as pessoas têm”. (Pág. 273)

“A máquina de fazer espanhóis” é o terceiro livro que eu leio de Valter Hugo Mãe. “Descobri” esse escritor através de uma entrevista a um programa de TV do Brasil, o “Roda Viva”. Na ocasião, ele estava lançando o excelente “As doenças do Brasil” e eu me identifiquei muito com diversos pontos abordados por ele nessa entrevista.

O “Roda Viva” foi o estopim para eu abrir o caminho para a sua literatura justamente com “As doenças do Brasil”, que Mãe considerou na entrevista o seu melhor livro, e, aos poucos, eu tenho me aprofundado no seu trabalho tão interessante não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma da sua escrita sempre subvertendo pequenas regras da língua ao abolir as letras maiúsculas.

“A máquina de fazer espanhóis” inicialmente me parecia um livro bem triste e que jogava a culpa na sua cara. Especialmente os que já tiveram parentes em asilos. Ou melhor, “casas de idosos” para usar um termo mais politicamente aceitável nessa nossa vida de eufemismos.

Ao descrever a realidade de uma série de idosos, o livro parece navegar entre uma reflexão sobre a finitude da vida e o nosso descarte da sociedade a medida em que envelhecemos.

Acontece que com o avançar da história, o livro vai ficando ainda mais fascinante. O “feliz idade”, maravilhoso nome do asilo que é uma ironia, mas também remete à “felicidade”, que não deixa de ser um eufemismo irônico, é o fim, mas também um recomeço nos estertores da vida daqueles personagens.

No convívio com os outros idosos, há muitas dores, angústias, doenças e a morte está sempre à espreita na medida em que o corpo e a mente começam a falhar. Contudo, há também novas amizades, companheirismo e um senso de comunidade criado entre iguais com algumas coisas em comum.

Se o asilo parece um corredor da morte com diferentes escalas até o fim, também é um espaço de boas e nostálgicas conversas, brincadeiras, arrependimentos, lembranças e um conforto no fim da vida.

Ao escrever este livro, Mãe disse que quis imaginar uma terceira idade para o pai, que morreu muito cedo. Com isso ele escreveu praticamente um arquétipo da vida em um asilo. Todos os padrões estão ali. Tudo em meio a reflexões sociológicas, antropológicas, culturais e políticas.

Valter Hugo Mãe é para mim cada vez mais um dos autores vivos mais interessantes de se acompanhar. Certamente hei de ler mais obras dele num futuro bem próximo.

Nota 9/10.

Review também publicada no meu perfil no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/7372673149

“Atle Moines, ex-político democrata-cristão, ex-presidente da Comissão de Finanças, era agora um ex em tudo o resto também” (pág. 18)

Tenho uma certa dificuldade em compreender o sucesso de Jo Nesbø como escritor. Ele não é exatamente um autor com um refinamento estético ou alguém que tenha inventado ou revolucionado um gênero. Paradoxalmente, porém, eu me vejo bastante interessado em acompanhar a saga do seu detetive Harry Hole, um clássico personagem bad boy incompreendido, alcoólatra e que usa de subterfúgios para resolver seus casos de assassinato.

“Baratas” é o segundo livro da saga de Hole. Depois de resolver um caso complexo na Austrália, Hole agora é mandado para a Tailândia para investigar o assassinato de um embaixador norueguês.

Nesbø usa uma fórmula consagrada para escrever a sua história: crime, investigação, primeiros suspeitos, desvio de rota, suspeito principal, correção de rota, clímax, resolução e explicação do caso. Eu diria até que suas histórias se assemelham a um tipo de literatura conhecida como pulp fiction, ou seja, aquele tipo de entretenimento rápido sem grandes pretensões artísticas.

Uma de suas qualidades é inserir elementos da história e cultura local nas suas narrativas e com notas explicativas. Foi assim em “O Morcego”, com uma série de informações sobre os aborígenes e a própria Austrália e agora em “Baratas”, com diversos dados interessantes sobre a Tailândia.

Em resumo, Nesbø não é genial, mas é agradável. Quem gosta do gênero policial/crime pode gostar dos seus livros. Eu mesmo não vejo a hora de partir para o terceiro livro da saga de Hole. Vai ver o segredo do seu sucesso está na forma como a sua escrita simples e direta associada a uma espécie de cor local conquistam muitos leitores.

Nota 7/10.

Review também publicada no meu perfil no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/7256212012

domingo, 9 de março de 2025

"MIckey 17", a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana

Pattinson é um dos pontos altos do filme
Desde que Bong Joon Ho venceu surpreendentemente o Oscar de melhor filme por “Parasita” (2019) em 2020, criou-se pelo menos para mim uma grande expectativa sobre os futuros projetos do diretor sul-coreano. O prêmio da Academia o deu visibilidade e, certamente, gerou interesse em quem quisesse investir capital financeiro em seus futuros trabalhos.

Adaptar o livro de ficção científica “Mickey 7” do autor pouco conhecido Edward Ashton e lançado em 2022 pareceu uma escolha intrigante para um diretor que vinha de um filme com uma fortíssima crítica social como “Parasita”. Intrigante, mas não estranha, pois o universo de sci-fi que traz um tema social por trás já havia sido explorado por Bong Joon Ho em “Expresso do Amanhã” (2013).

O resultado desta empreitada finalmente chegou aos cinemas com “Mickey 17”. Oitavo longa do diretor, “Mickey 17” é uma dark comedy futurista e uma sátira política sobre a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana não apenas pelo sistema explorador do mercado, mas também pelos líderes que escolhemos para nos guiar para um futuro seja dentro de um recorte de um grupo social, seja como nação. No filme, Bong Joon Ho usa da comédia com tons de absurdo para refletir e criar paralelos até bem óbvios, quase desenhados, com o mundo atual.

O filme gira em torno de dois personagens equidistantes na cadeia alimentar do sistema social. De um lado Mickey Barnes (Robert Pattinson), um homem vivendo no limite e vítima de suas escolhas fracassadas que o fizeram tomar uma decisão drástica. Do outro, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um político fracassado que perdera duas eleições, mas cujo dinheiro e influencia ainda o colocam no topo da pirâmide social, ainda que suas ideias variem entre o equívoco e o crime.

O projeto de colonização do planeta Niflheim une estes dois personagens. Para Marshall, ele é a volta por cima de criar uma sociedade em que ele pode comandar como um ditador bufão autocrata e seus ideais de eugenia. Na ausência de um cargo oficial, Marshall quer fundar o seu próprio mundo em Niflheim junto com seus seguidores ensandecidos usando bonés vermelhos. Qualquer semelhança com os tempos atuais da política estadunidense não é mera coincidência.

Para Mickey Niflheim é a única saída. Marcado para morrer por um agiota de quem deve uma fortuna, Mickey é o trabalhador braçal meio estúpido e sem grandes qualificações que abraça uma oportunidade bizarra para entrar na expedição e fugir da morte. Mal saberia ele, que ele se tornaria um especialista em evitar a morte, mas não de um jeito agradável.

Para partir para Niflheim, Mickey se alista num programa de “Dispensáveis”, um projeto pioneiro criado na Terra, mas dinamitado por questões éticas que Marshall quer retomar no caminho para Niflheim. O programa dos Dispensáveis consiste em criar clones infinitamente de quem faz parte dele para que o corpo desta pessoa possa ser usado em dezenas de estudos ou missões extremamente perigosas. Missões como descobrir os efeitos da radiação no corpo humano ou servir de cobaia para o desenvolvimento de uma vacina contra um vírus mortal. A única regra do programa é que só pode existir um único ser vivo naquele presente momento. Os chamados “Múltiplos”, ou seja, dois clones coabitando o mesmo espaço-tempo são proibidos e punidos com a extinção imediata da pessoa envolvida.

Quando escreveu o livro, Ashton disse que queria contar uma história que refletisse sobre uma espécie de imortalidade que fosse combinada como uma estrutura social exploradora. Por mais que tivesse feito uma série de alterações para o filme, como o próprio autor confirmou, Joon Ho manteve essa essência em “Mickey 17”. No seu filme, a vida de um Dispensável não vale absolutamente nada. Cada um dos Mickeys cumpre a sua missão de forma até resignada, mas detesta a morte e a consequente “reimpressão” que sempre vem com as memórias do clone anterior. Cada Mickey tem a memória das mortes anteriores. Num dado momento, um deles chega a dizer que “toda a nossa a vida é uma punição”.

Mickey é tratado como um experimento, uma figura dispensável, por praticamente todos os que estão na expedição para Niflheim. Além de ser tratado como um objeto vivo, Mickey ainda tem que conviver com as constantes perguntas de seus colegas: “Qual é a sensação de morrer?”. Curiosamente, Bong Joon Ho nunca deixa que esta pergunta seja respondida em todo o filme.

Mickey é a mão de obra mais barata e desprezível de um sistema opressor. A nave colônia para Niflheim é um microcosmo de uma fábrica. A maior parte usa o mesmo tipo de roupa, com a mesma cor e tem tarefas específicas designadas que devem ser cumpridas regiamente para dentro de um sistema rigorosamente controlado. Nesta cadeia, Mickey é o mais dispensável de todos. Tanto que ninguém faz o menor esforço para o salvar mesmo quando ele parece estar ainda vivo em determinadas situações.

Tudo muda, porém, quando uma de suas cópias, o 17, não é morta como se imaginava que ele seria ao se encontrar numa situação limite. Quando volta para o seu quarto, Mickey 17 se vê numa enrascada ao perceber que está deitado na sua cama o Mickey 18, a sua nova cópia. Agora eles são múltiplos e o perigo da extinção é iminente.

Curiosamente, é a existência de um clone-irmão que escancara o que já vínhamos percebendo e Pattinson soube construir com tamanha perspicácia ao longo do filme. A ideia de que cada Mickey pode ter as mesmas memórias, mas cada um deles é um indivíduo único. Apesar dos esforços externos de mostrar que um Mickey é só mais um Mickey e, portanto, irrelevante, cada um tem um traço único, uma característica de personalidade que o anterior não tinha. E isso fica mais cristalino quando 17 e 18 coexistem. O Mickey 17 é um people pleaser que evita conflitos e tenta cuidar da sua vida e das suas tarefas sem aparecer muito. Mickey 18 é agressivo, confiante e não leva desaforo para casa. E cada Mickey de Pattinson tem um detalhe diferente que o torna único e cuja vida não merecia ser tão desprezada e jogada no lixo como o sistema tenta fazer com que acreditemos.

Se Mickey é a metáfora da precarização do trabalho e a efemeridade da vida. Marshall é o símbolo do poder que constrói esta sociedade decadente e caótica. Interpretado de forma provocadora e caricatural por Ruffalo, Marshall é o exemplo cristalino do governante idiota, ignorante, incapaz de coordenar ideias que infelizmente temos visto com extrema frequência em posições de poder pelo mundo. Um dos exemplos cristalinos disso está na forma como Marshall lida com os seres vivos que habitam Niflheim, a ponto de, no momento mais desenhado possível do filme, chamar os seres de extraterrestes apenas para ser corrigido por um membro da tripulação que afirma que extraterrestes em Niflheim são os humanos.

Curioso que o adiamento do lançamento do filme em um ano o fez entrar em cartaz num momento bastante propício para traçar paralelos entre Marshall e Donald Trump. De fato, Ruffalo parece em alguns momentos emular os absurdos do atual presidente estadunidense, no que é muito bem acompanhado por Toni Collette, que faz Ylfa, a esposa de Marshall.

Quando traça estes paralelos com o sistema exploratório capitalista em que vivemos e a política estadunidense, “Mickey 17” vai bem. No entanto, o filme parece se perder um pouco quando tenta debater as questões de colonização e imigração a partir da relação dos humanos com as criaturas que habitavam Niflheim, que Marshall chama de “creepers”.

Todo este subplot se acumula no terço final do filme e se confunde com a resolução dos dramas de Mickey e Marshall e uma tentativa de golpe que surge subitamente num momento capital de “Mickey 17”. No fim, acho que faltou uma sintonia mais fina para concluir a história que vinha sendo bem desenvolvida nos dois terços anteriores do filme.

“Mickey 17” não tem o mesmo peso e a mesma excelência de “Parasita”, mas não deixa de ter reflexões igualmente importantes. É um filme menos sutil e em alguns aspectos mais expositivo do que o anterior de Bong Joon Ho. Contudo, o trabalho do diretor sul-coreano continua sendo um dos mais interessantes de se acompanhar nos últimos tempos.

Nota 7,5/10.