segunda-feira, 6 de março de 2023

“A Baleia”: o brilho de Fraser num filme de Aronofsky que não sai do lugar comum

A fé tem sido uma reflexão constante na recente filmografia de Darren Aronofsky. Desde o fraco “Noé” (2014), passando por “Mãe!” (2017) e chegando até ao seu mais recente trabalho, “A Baleia”, Aronofsky vem se dedicando a questionar os fundamentos do divino, as contradições da religião e a ideia de redenção até certo ponto também tocada em “A Fonte da Vida” (2006). Se seus dois trabalhos anteriores eram mais diretos em retratar passagens bíblicas, especialmente a forma mordaz e provocadora de “Mãe!”, que tanta controvérsia causou quando do seu lançamento, “A Baleia” busca menos o choque pelo que se vê e mais em desenterrar as contradições do discurso religioso.

Calcado na magistral interpretação de Brendan Fraser, “A Baleia” porém, não vai muito fundo em algumas de suas propostas. Se Fraser merece todos os elogios e prêmios pelo seu trabalho de fato acima da média dentro da sua carreira de altos e baixos, Aronofsky fez um dos filmes menos interessantes de sua rica filmografia formada por ótimos trabalhos como “Pi” (1998), “Réquiem para um sonho” (2000), o já citado “Fonte da vida” (2006), “O Lutador” (2008) e “Cisne Negro” (2010).

Passado quase que integralmente num único cenário, “A Baleia” conta a história de um professor de inglês recluso que vive com obesidade mórbida e, no que parece ser a reta final de sua vida, tenta se reconectar com a sua filha. A ideia de busca de uma redenção quase bíblica está em toda a história de seu protagonista, que deseja que ao menos uma coisa em sua vida, vista por ele como sacrificante, tenha dado certo antes de ele partir.

Charlie (Brendan Fraser) é orbitado por Liz (Hong Chau), a enfermeira que cuida dele e insiste que ele vá para um hospital, pelo jovem religioso Thomas (Ty Simpkins) e pela sua filha, Ellie (Sadie Sink). É curioso aqui traçar um certo paralelo com a tríade católica do pai, filho e espírito santo. Liz faz o papel da cuidadora, que busca o bem de Charlie e acha que a presença de Thomas e Ellie não é boa para ele. Thomas, por sua vez, quer cuidar da redenção espiritual do professor – e mais à frente vamos descobrir também da sua necessidade de redenção particular -, enquanto Ellie vive entre a raiva do pai ausente e o desejo profundo, mas só estabelecido nas nuances da interpretação de Sink, de viver e recuperar os momentos com o pai perdidos na poeira do tempo.

Tudo o que os conecta é um texto diversas vezes repetido ao longo do filme. Uma redação sobre “Moby Dick”, livro publicado por Herman Melville em 1851. Essa redação que tanto acalma Charlie em seus momentos de dor é como um placebo . É a sua Ave Maria, o seu Pai Nosso literário que o mantém vivo e esperançoso naquela que se encaminha para ser a sua última semana de vida.

Aos poucos vamos entendendo a importância daquele texto para Charlie e Ellie e da própria busca por uma luz redentora numa análise que não tem nada de sagrada, mas é rica em autenticidade. E talvez está seja a crítica mais severa e interessante de Aronofsky no filme. Enquanto a fé repete jargões como as falas robóticas de Thomas, a pureza real e o poder, digamos, divino está na autenticidade das palavras ricas em sinceridade.

Apesar dos severos problemas de saúde e a vida sofrida pela perda do namorado, Charlie ainda encontra no fundo da alma espaço para encontrar a bondade nas pequenas coisas da vida. Um otimismo que tanto irrita a sua ex-mulher, mas que faz falta na vida dela, tão focada nos dramas e tristezas da realidade.

O tema de “A Baleia” gira em torno de redenção. E é curioso como para chegar a esta redenção, seu protagonista precisa passar por toda uma via-crucis de dor e angústia. E também trilhar o caminho da abnegação, uma vez que o sacrifício é quase uma fetichização dentro do catolicismo. Não por acaso, em quase todo o filme chove torrencialmente. É curioso como a chuva, especialmente o barulho da chuva, é a trilha sonora para a confusão, caos e tristeza do seu protagonista. E quando surgem a luz e o sol é onde Charlie encontra a paz de espírito, uma pureza divina e única.

O filme, porém, se perde um pouco nos diálogos e nos conflitos entre fé e ceticismo que não saem do lugar comum. Thomas é o católico fervoroso que acredita ter um propósito divino e deseja salvar a alma de Charlie. Todavia, a salvação para Thomas passa pela negação do que Charlie tinha de mais puro: o amor por Alan, o namorado falecido. Liz, Ellie e o próprio Charlie são os contrapontos do discurso de Thomas em diferentes momentos do filme. Não sei se a peça de Samuel D. Hunter, também roteirista do filme, aprofunda mais este tema, mas o roteiro do filme parece navegar em águas por demais rasas em boa parte do seu tempo. O que contrasta com o peso dramático que Fraser impõe ao filme. Peso este muito bem acompanhado pela jovem Sink, que já havia aparecido muito bem na recente temporada de “Stranger Things” e aqui também apresenta um trabalho muito consistente como uma jovem raivosa que foi abandonada pelo pai e convive com uma mãe alcoólatra.

Falta em “A Baleia” um aprofundamento de suas ideias, uma sacada de roteiro que o tirasse da zona de conforto do drama convencional.

É claro que Fraser está excelente e segura todo o interesse que o filme traz. Ele teve toda a inspiração que de alguma forma faltou em Aronofsky ao lapidar a peça de Hunter. Perto de seus outros trabalhos e de sua rica filmografia, “A Baleia” encalhou no meio do caminho. Ainda que mesmo assim seja um filme acima da média.

Nota 7,5.



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