terça-feira, 10 de março de 2020

Assayas joga reflexões em filme que não se conecta

Mercado editorial e traições na mesa
O cinema de reflexão é quase uma instituição francesa. Se há um tipo de filme feito na França que eu aprendi a gostar é justamente o que tenta dar um recorte de uma realidade e refletir sobre ela. Mesmo que muitas vezes se torne um debate filosófico e burguês com adultos de classe média-alta bebendo vinhos e comendo queijos caros enquanto pensam sobre os destinos da humanidade, é interessante ver aqueles personagens que contracenam debatendo a partir das ideias desenvolvidas pelo diretor, que muitas vezes também é o roteirista destes filme. 

“Vidas duplas” é um pouco sobre isso. Mas ao mesmo tempo em que tenta criar uma história em que debate o choque entre tradição e modernidade na indústria literária, Olivier Assayas parece se perder e não criar uma conexão que traga rumos e, principalmente, um caminho para uma conclusão de sua história. Não que histórias em aberto não sejam boas. Pelo contrário. Elas são ótimas. Mas Assayas não deixa “Vidas Duplas” em aberto. Ele joga-a num limbo em que ao fim das duas horas de filme fica-se a conclusão de que se falou demais e não se foi para lugar nenhum. 

Nem os naturais pontos de conflito acusados pelos adultérios que acontecem na tela fazem o filme entrar numa erupção mínima para balançar as estruturas dos personagens. Tudo é muito passivo e sem que nos leve a algum lugar. 

No centro da história estão quatro personagens que, como o título do filme diz, vivem vidas duplas. Léonard (Vincent Macaigne) é um escritor popular que, no entanto, só consegue criar ficções a partir das histórias que de fato viveu. Ele é tão transparente nos seus textos que as pessoas se enxergam claramente nele. Ele é amante de Selena (Juliette Binoche), atriz de uma popular série de TV que está em crise com o seu papel. 

Selena é mulher de Alain (Guillaume Canet), editor de uma empresa conhecida por ter um excelente cartel de escritores, mas que está passando por uma reestruturação para se adequar aos novos tempos de leitores que compram e-books e audiolivros. Alain, por acaso, também tem uma amante, a funcionária responsável pelo departamento digital da editora. 

Léonard, por sua vez, é casado com Valérie (Nora Hamzawi), assessora de um político popular na França que está em campanha para se eleger para algum cargo que não é mencionado no filme. 

Orbitando a história dos quatro, há toda uma reflexão sobre a necessidade de se adaptar aos novos tempos e os rumos da literatura no século XXI, uma era de rápida digitalização em que pessoas leem livros pelo Iphone, blogueiros têm tanto poder de decisão e críticos veem seu prestígio decair. 

Enfim, existe todo um apanhando sobre as mudanças tecnológicas e reflexões acerca da indústria com cada um e outros personagens secundários opinando acerca do tema. 

Tudo parece interessante, mas isso não gera qualquer rumo para as histórias de cada um. Léonard continua tendo livros publicados, mas também passa a ter e-books. A editora de Alain não dá qualquer sinal de crise ou decadência. Pelo contrário. Se adapta bem à nova realidade e vira vanguarda mesmo com a troca de uma funcionária. 

E toda está trama não tem qualquer ligação com a trama paralela dos casos amorosos de Selena, Léonard e Alain. O que nos leva a refletir qual era o objetivo de Assayas ao unir os dois casos. Será que ele só queria falar sobre estas preocupações acerca da literatura e criou personagens que tivessem suas vidas sempre em choque para facilitar o debate? Não parece funcionar muito bem. E mesmo quando um adultério é revelado tudo fica surpreendentemente bem e sem sequelas emocionais. O que, convenhamos, por mais adultos que todos sejam, é inevitável que haja alguma quebra de confiança, choro, vontade de se vingar, enfim... falta "sangue" aos personagens. 

“Vidas duplas” é um filme morno. Suas ideias são sempre tratadas em paralelo aos acontecimentos vividos pelos personagens e nunca entram em choque ou se amalgamam. O que fica no fim é a sensação de que foi um bom papo regado a vinho, sexo e boa comida numa idílica primavera parisiense. 

Cotação da corneta: nota 6,5

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