terça-feira, 3 de dezembro de 2019

“O irlandês”, de Scorsese, é um filme que já nasce como um clássico

Pesci e De Niro em atuações monstruosas
Um dos diretores fundamentais da história do cinema, Martin Scorsese já realizou diferentes tipos de filmes. Muitos deles muito bons. Mas parece ser no território das histórias sobre a máfia que o cineasta novaiorquino descendente de sicilianos se sente mais à vontade para contar algumas das suas grandes histórias. “O irlandês” (The Irishman, no original) é definitivamente uma delas. Baseado no livro “I heard you paint houses”, de Charles Brandt, o filme já nasce como um clássico não apenas do gênero, como também da história do cinema.

Tudo na produção de “O irlandês” é impecável. A condução da história de Scorsese, a forma como a história é contada, a trilha sonora econômica e precisa, a edição de Thelma Schoonmaker, colaboradora de mais de três décadas de Scorsese, o trabalho impecável de efeitos especiais que fez três atores de quase 80 anos rejuvenescerem para contar a história proposta pelo diretor, e, claro, a atuação do trio de protagonistas; Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Trabalhando juntos pela primeira vez, o trio entrega atuações excelentes. Especialmente Pesci, que, aos 76 anos, voltou da aposentadoria para dar vida ao mafioso Russell Bufalino num dos melhores trabalhos de sua carreira.

O filme é baseado numa história real. Ele acompanha a ascensão de Frank “irlandês” Sheeran (De Niro) de motorista de caminhão a nome fundamental da estrutura da máfia local ao mesmo tempo em que Scorsese procura dar sua interpretação para a misteriosa morte de Jimmy Hoffa (Pacino), o conhecido e poderoso líder do sindicato dos caminhoneiros dos Estados Unidos entre os anos 50 e 70, que desapareceu em 1975, justamente no momento em que tentava reconquistar o controle do sindicato depois de passar quatro anos na cadeia por fraude.

Com 3h30min, “O irlandês” é o filme mais longo de Scorsese, mas vale cada segundo. Não há uma cena que poderia ter sido cortada ou que tenha sido colocada em excesso. Cada cena faz sentido para contar a história do trio de protagonistas ao longo das décadas, o que transforma o filme num épico sobre a máfia comparável à trilogia do “Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola.

A comparação entre os dois diretores contemporâneos é inevitável, dado que o ambiente é o mesmo entre a clássica trilogia de Coppola feita entre 1972 e 1990 e “O irlandês”. A diferença talvez seja na abordagem. “O Poderoso Chefão” mitificou os altos escalões da máfia, numa série de filmes que também tinha como estrelas a dupla Pacino e De Niro. Sem contar, é claro, o talento de Marlon Brando no primeiro filme.

Pacino e De Niro reeditando velha parceria
“O irlandês”, por outro lado, joga luz sobre os soldados da máfia. Scorsese, aliás, sempre gostou de contar suas histórias sob a perspectiva dos escalões mais abaixo da estrutura do crime organizado. Ele faz a mesma coisa em “Os bons companheiros” (1990) e “Cassino” (1995). Em “Os Infiltrados” (2006), filme que lhe rendeu seu único Oscar de diretor até aqui, o olhar já é sobre os agentes duplos da história.

Aqui o narrador da história é Sheeran, desde o momento em que dirigia um caminhão que fornecia carne para Navalha (Bobby Cannavale), passando pelo seu primeiro encontro com Russell, quando começa a “pintar paredes” para a máfia, e chegando o fim da sua vida, quando já debilitado e sem nenhum dos seus velhos companheiros, pois todos já estão mortos, Sheeran definha num asilo lidando com os erros e os arrependimentos do passado.

É pelo olhar de Sheeran que vamos acompanhando o desenrolar das histórias de todos os mafiosos que circundam os Estados Unidos naquelas décadas em que Hoffa era um poderoso dirigente sindical e mantinha relações com a máfia. Acompanhamos a influência silenciosa de Russell sobre toda a organização criminosa americana, a ascensão de novos nomes para a ribalta do crime e a queda de nomes que vão perdendo o interesse ou cumprindo as suas missões ao longo dos anos.

Mesmo vivendo uma vida em que se vê cercado pela violência, sendo ele mesmo responsável por muitos atos violentos naquelas décadas, Sheeran consegue passar incólume enquanto vê outros companheiros ou inimigos tombarem nas disputas e entre as relações de poder da máfia.

O passar dos anos vai criando um Sheeran, que a despeito da lealdade com quem lhe deu abrigo e poder na estrutura da máfia, também sente o amargor das escolhas que foi obrigado a fazer, a dor do afastamento da filha primogênita e a sensação de solidão ao ver que seus velhos companheiros não estão mais ali. Todos tombaram pela violência ou, com sorte, de causas naturais, deixando para Sheeran o vazio de uma vida em que ninguém conhece os seus, digamos, “feitos” e ele mesmo não os pode contar, mesmo tantas décadas tendo se passado.

É uma pena que “O irlandês” tenha se reduzido em muitos lugares à reprodução na Netflix, o serviço de streaming que topou bancar o orçamento de US$ 175 milhões, o mais alto da vasta carreira do diretor. Um filme deste porte e um dos melhores do ano merecia uma sala de cinema. Scorsese realizou uma obra-prima insuperável em sua filmografia que conta com muitos excelentes títulos.

Cotação da Corneta: nota 10.

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