As dores do crescimento |
Richard
Linklater adora uma DR. Se vocês lembram bem, ele fez Ethan Hawke e Julie Delpy
discutirem a relação em três filmes separados num espaço de 18 anos:
"Antes do Amanhecer” (1995), “Antes do Pôr-do-Sol” (2004) e “Antes da
Meia-Noite” (2013). Tudo bem que em Viena, Paris e na Grécia eu discutiria
fácil qualquer relação, mas isso não vem ao caso. Eu até desconfio que
Linklater não fez mais filmes do gênero porque o dia só tem basicamente três
estágios (manhã, tarde e noite) e faltaram ideias para novos títulos.
O
tempo passou e dessa vez Linklater resolveu ser mais ambicioso. Colocou toda
uma família para discutir a relação por 12 anos! E entre mortos e feridos...
bem, veja o filme para saber se salvaram-se todos.
Vocês
certamente já leram sobre a história de “Boyhood”. O filme passou no festival
do Rio, está bem cotado e é figura fácil aí nas paradas de sucesso e nas redes
sociais. Todo mundo está falando de "Boyhood" e a corneta não ia
ficar de fora desse debate. A ideia de Linklater era contar a história de uma
família por 12 anos, mas dispensando a maquiagem. O envelhecimento seria mostrado
em tempo real.
Assim,
anualmente o diretor se reunia com seus atores por uma semana ou mais para
fazer uns takes descompromissados. Quase um hobby que cada um tinha entre um
projeto e outro (e foram muitos como vocês podem ver aqui). “Boyhood” foi neste
tempo para Linklater e seus atores como aquele projeto paralelo interessante
que os integrantes de bandas de sucesso têm. Uma espécie de Gorillaz do Damon
Albarn ou o The Raconteurs do Jack White.
É
assim que começamos a acompanhar a história de Mason (Ellar Coltrane), um
menino monossilábico de seis anos que pelos próximos 12 passará por tudo o que
um jovem passa nessa fase de tanta intensidade, desconfiança e incertezas da
vida. Inclusive será o adolescente mala que todos nós já fomos um dia. Mas se
você leitor for adolescente, saiba que és uma exceção. Você é incrível.
No
início, a vida de Mason era muito difícil. Só para vocês terem uma ideia, Steve
Jobs ainda não tinha inventado algumas das maiores invenções da humanidade no
século XXI, Mark Zuckerberg ainda não tinha lançado o Facebook, a melhor rede
social que existe para falarmos de como está calor lá fora e postarmos fotos de
bichinhos fofos, e o COLDPLAY era a banda do momento.
Eles
tinham lançado dois anos antes o “Parachutes” (2000) e vocês não têm noção do
pesadelo que era ligar a rádio e ouvir "Yellow". Ir ao dentista e na
sala de espera ouvir “Yellow”. Abrir a janela, vislumbrar aquele sol bonito e
amarelo e lembrar de... “Yellow”! Nem a Gwyneth Paltrow aguentou muito tempo
com o Chris Martin. O casamento se encerrou em dez anos, menos tempo do que
Linklater levou para filmar “Boyhood”. Como era possível viver nesse mundo com
tão poucas possibilidades de entretenimento?
Eram
tempos difíceis, mas Mason tinha mais pedras no meio do caminho. Entre elas,
uma família para lá de problemática. Através do jovem observamos o seu pai,
também chamado Mason (Ethan Hawke, um especialista em DR), tentando crescer.
Ele teve dois filhos muito jovem, e ainda é um irresponsável que sonha em ser
músico ao invés de ir garantir o leite das crianças num emprego sério. Vemos
ainda a sua mãe (Não, não é Julie Delpy e sim Patricia Arquette), uma mulher
especializada em maridos com alto teor alcóolico, mas que se dedica com afinco
e amor à criação dos seus filhos. É aquela mãe especial que todos amamos. E
observamos Linklater praticando nepotismo ao escalar a própria filha, Lorelei,
para o papel de Samantha, irmã de Mason. Que mau exemplo, tsc, tsc...
E
assim a vida vai passando. Acompanhamos Mason e Samantha crescendo e mudando
completamente nesse tempo, passando por conflitos típicos de adolescente (quem
nunca?) e a trilha sonora melhorando sensivelmente. Neste ponto é sempre bom
ter um pai que gosta de Beatles e que te prepara um Black Álbum só com o best
of jamais feito das carreiras-solo de John, Paul, George e Ringo. “Band on The
Run”, “Sweet Lord” e outros clássicos são fundamentais para a formação do ser
humano.
Com
o tempo passando, Mason vai descobrindo um talento para a fotografia, se
questionando sobre que lugar tem ou deseja ter no mundo, reflete sobre as
idiossincrasias do Facebook e pinta as unhas de roxo, lançando tendências. E,
claro, como se não bastasse todos os problemas pelos quais passa, tem o pior
aniversário da vida (quem nunca?), quando recebe, aos 16 anos, uma Bíblia, um
terno e uma espingarda de presentes. Típico kit do conservador básico do Texas.
Por sorte, o pai está por perto e sempre existirão os Beatles.
Já
se passaram duas das quase três horas de “Boyhood” e a corneta se questiona:
Como pode um filme sobre a vida como ela é ser tão bom? “Boyhood” não tem
efeitos especiais, atuações daquelas de Oscar, truques e viradas de roteiro mirabolantes.
Poderia ser um documentário sobre a vida de uma família americana se não fosse
um roteiro escrito, lapidado por mais de uma década.
“Boyhood”
é a vida comum, o dia a dia lavando pratos, limpando a casa, lidando com os
problemas, procurando emprego, fazendo escolhas, tomando decisões certas e
erradas... situações pelas quais todo mundo passa. E talvez por isso seja tão
interessante a participação de Patrícia e das duas crianças.
Vou
fazer a minha filosofia de botequim agora. Talvez tudo seja tão naturalmente
real porque os jovens provavelmente passaram por problemas e questões
semelhantes aos exibidos no filme em todo o período de filmagem. E Patricia
sabe como é criar duas crianças. Ela vive isso em casa. Os demais atores
"interpretam" mais. E é fantástico perceber a passagem de tempo neles
sem qualquer recurso que não seja a própria passagem da vida. Essa foi
realmente uma ótima ideia.
O projeto de
Linklater era ambicioso porque o tornava refém do tempo. Muita coisa podia
acontecer em 12 anos. Mas o diretor confiou na velha canção de Jerry Ragovoy,
regravada pelos Stones, que diz que o tempo está ao seu lado e seguiu em
frente. E o resultado foi fascinante. “Boyhood” tocou o coração da corneta (ela
não é tão má assim, vai). Um filme simples, mas paradoxalmente complicado de
realizar que Linklater transformou numa pequena obra-prima. Quem deu Jesse e
Celine ao mundo já tinha o total agradecimento da corneta, mas o diretor
conseguiu se superar. A nota de “Boyhood” é 8,5.
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