Yonas, Zain e a jornada dura de "Cafarnaum" |
Um
antigo e famoso carnavalesco chamado Joãosinho Trinta dizia que “o povo gosta
de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Era uma de suas frases mais
marcantes. É muito fácil sentar na privilegiada cadeira de um cinema com ar
condicionado e todas as facilidades que uma vida privilegiada pode dar e
“admirar” com ares de sociólogo a miséria exposta pela diretora libanesa Nadine
Labaki, e sair falando maravilhas sobre “Cafarnaum” (Capharnaüm, no original). É extremamente fácil contemplar
a sofrida saga de Zain (Zain Al Rafeea), posar de intelectual de esquerda de
mesa de bar e dissertar sobre as injustiças sociais e a necessidade de se
buscar uma sociedade mais igualitária e menos cruel.
Estas
são interpretações legítimas, mas vou tentar fugir um pouco delas sob pena de
parecer tão insensível e distante quanto a imagem da advogada de Zain na trama,
vivida pela própria diretora, que fica sem reação diante do discurso da mãe do
menino no tribunal dizendo que ela nunca saberia o que é ter a vida dela. E
jamais aguentaria o que ela aguentou. Esta é uma das muitas cenas muito fortes
deste filme. De fato, tal qual a advogada, por mais que eu pudesse me
sensibilizar com todo o drama, por mais que eu pudesse mostrar empatia, eu
jamais saberia o que é viver e como descrever o que é estar tão à margem de uma
sociedade como Zain e sua família.
“Cafarnaum”
é uma obra-prima com a qual raras vezes nos deparamos diante de nós. É também
um filme sobre como falhamos como seres humanos nos mais variados aspectos. A
exploração da miséria, o trabalho escravo, a violação dos direitos mais
básicos, famílias devastadas pela pobreza e pela falta de perspectiva de uma
situação melhor, a ilegalidade da vida de imigrante, casamentos arranjados em
troca de dinheiro, pais negligentes com seus filhos. “Cafarnaum” é um rosário
de tragédias pessoais exibidos em 125 minutos de filme.
É
quase como se a região permanecesse até hoje sofrendo da negação de Cristo. O
nome do filme remete à cidade bíblica que ficava na margem norte do mar da
Galileia. Perto passava a importante Via Maris (estrada do mar), que ligava o
Egito, à Síria e ao Líbano. Na Bíblia, Cafarnaum é um dos lugares onde Jesus
realizou uma série de milagres, como dois exorcismos, a cura da sogra de Pedro
de uma enfermidade, e a cura de um paralítico, na tão conhecida passagem da
Bíblia, onde Jesus disse ao homem: “Levanta-te e anda”. Mas, segundo consta na
história, o povo da cidade também acabou por não se arrepender dos seus pecados
e se afastou de Jesus, que teria previsto a destruição da cidade. A partir daí,
Cafarnaum, que era um centro de cobranças de impostos e onde também havia um
posto militar romano entrou em declínio tornando-se desabitada no século V
depois de Cristo.
Se
é possível traçar um paralelo entre a Cafarnaum bíblica e o Líbano traçado por
Nadine ela está justamente na miséria moral do ser humano que explora uns aos
outros, mesmo nas camadas mais baixas. O ser humano que não se arrepende dos
seus pecados e segue reproduzindo os comportamentos exploratórios e vis a cada
instante.
No
centro do filme está a história do jovem Zain (vivido monstruosamente pelo
menino Zain Al Rafeea). O jovem de 12 anos forçado a ter a maturidade de um
adulto por conta da negligência dos seus pais, foi preso e condenado a cinco
anos na prisão por ter estaqueado um homem que se casara com a sua irmã, Sahani.
O motivo do crime foi a morte da menina de 11 anos, logo após a sua gravidez.
Mais
velho dos seus muito irmãos, Zain fora obrigado a amadurecer a força para
ajudar no sustento da família. E é por já ter uma consciência quase de adulto
no corpo de uma criança que o jovem resolve processar os pais pelo crime de
lhes ter dado a vida. Zain considera que seus pais foram criminosamente
negligentes com toda a família e não podem mais ter filhos. As provas estavam
na sua irmã morta e nele mesmo, um adolescente preso e que sequer fora
formalmente registrado.
O
filme vai alternando cenas do julgamento com a jornada de Zain nas ruas do
Líbano. A vida difícil, as dificuldades para comer, a falta de esperança após
perder a irmã que tinha menstruado pela primeira vez recentemente para um homem
que só queria abusar dela...
Até
que vem a fuga e Zain se depara com a imigrante etíope Rahil (Yordanos
Shiferaw), que o acolhe. Zain, então, passa a cuidar do seu filho, Yonas
(Boluwatife Treasure Bankole), até o dia em que ela simplesmente não volta.
Ilegal, Rahil é pega pela polícia, deixando Zain sozinho cuidando de
Yonas.
É
um dos momentos mais dramáticos do filme o período em que Zain se vê num papel
de pai. É de partir o coração vê-lo tentar e tentar fazer o mais correto e se
virar como dar para alimentar a criança e cuidar dela. Tudo até o momento em
que não tem mais forças porque a vida entre os que estão à margem simplesmente
não consegue avançar.
Vemos
tudo isso pelos olhos de Zain. Um menino que não encontra heróis de Hollywood
para ajudá-lo. O mais próximo disso é o velho “Homem-Barata”, o “primo do
Homem-Aranha”, que cruza o seu caminho. Zain precisa ser o herói dele mesmo. Tão
jovem, o menino sente-se carregando um fardo enorme da existência quando tudo o
que desejava era ser um homem bom. E o discurso dele ao fim do filme é
absolutamente tocante ao mesmo tempo em que é muito duro.
“Cafarnaum”
merecia mais do que uma mera indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Talvez
seja o melhor de todos os que concorrem ao Oscar. Pelo menos Cannes reconheceu
o seu valor, dando-lhe três prêmios no ano passado. Nadine Labaki realizou um
filme duro e brilhante que merece ser visto por todos.
Cotação
da Corneta: nota 10.
Indicação
ao Oscar: melhor filme estrangeiro.
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