Christian Bale monstruoso no papel de um monstro |
Há
quatro anos, Adam McKay fez um dos filmes mais divertidos e didáticos sobre a economia
e a explosão da grande bolha imobiliária americana com “A grande aposta” (Thebig short, no original). Com uma linguagem ágil e fincada na cultura pop, o
diretor explicava de forma simples como alguns quebraram e outros lucraram
muito naquela crise das hipotecas americanas. Em resumo, havia ali um bando de
falcões que souberam agarrar uma oportunidade e foram a caça. “Vice” segue o
mesmo modelo de linguagem, narrativa e premissa. A única diferença é que não tem
o mesmo humor de “A grande aposta”. Talvez haja uma leve ironia aqui, outra
ali, mas era realmente impossível retratar a vida daquele que deve ter sido o
mais ativo vice-presidente da história americana com humor.
“Vice” é
a história de um homem que não era ninguém e que se transformou no poderoso
vice-presidente do governo de George W. Bush (2001-2009). O filme é impiedoso
com Dick Cheney (um Christian Bale num estado em que não há adjetivos para
elogia-lo). Na primeira parte, retrata Cheney como um fracassado, alcoólatra e
aluno medíocre. No restante do filme, Cheney é um oportunista que soube montar
no cavalo selado da história e conduzir-se aos mais altos escalões do governo
americano com um pensamento extremamente conservador, sem medir quaisquer consequências
e atropelando quem ele quiser para estar na crista do poder. E definitivamente
este retrato não poderia deixar de ser diferente.
Cheney
foi durante muito tempo quase um fantasma, mas o filme compactua com e confirma
a hipótese de que ele era o braço de ferro da administração Bush (Sam
Rockwell). Coube a ele, com uma série de manobras e contando com a participação
ativa de correligionários em várias instâncias do poder, esticar ao máximo a
legislação americana para iniciar guerras infundadas no Afeganistão e no
Iraque. Tudo com a anuência de um presidente fraco e quase servil aos desejos
de Cheney e a quem fez todas as vontades para tê-lo ao lado na chapa quando
concorreu pela presidência com o democrata Al Gore.
Narrado
por um soldado americano, o que foi uma boa sacada do filme, “Vice” mostra como
uma pessoa medíocre e que tinha tudo para se transformar num ser humano
irrelevante, acabou agarrando uma oportunidade de fazer um estágio no Congresso
americano e se colou às pessoas certas no poder. A primeira delas, Donald
Rumsfeld (Steve Carrell), ex-chefe de gabinete de Gerald Ford e que também
ocupara cargos no governo Nixon e viria a ser o secretário de Defesa do governo
Bush.
O filme
passa a impressão de que Cheney, na verdade, era um líder invisível para o
público de toda uma geração de republicanos e a voz dos conservadores
americanos contra os “avanços” implementados pelos democratas que, por ventura,
ocuparam a Casa Branca. No caso, desde que Cheney surgiu no cenário político, os
únicos democratas eleitos presidentes foram Jimmy Carter e Bil Clinton, que
comandaram a Casa Branca por 12 anos. Já os presidentes republicanos foram
quatro - Gerald Ford, Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush - comandando
a Casa Branca por um total de 23 anos. Barack Obama representou de vez o fim da
geração Cheney, hoje com 78 anos. Mas até lá muito estrago foi feito.
De fato,
o auge do poder de Cheney foi quando ele ocupou a vice-presidência. Cargo que,
como mostra o filme, ele só aceitou depois de estudar em como transformá-lo de
algo em que considerava insignificante a poderoso e sem qualquer tipo de
fiscalização. Ao mesmo tempo, que exigiu ao então candidato Bush o direito de
cuidar de uma série de áreas estratégicas para o governo americano, como a
energia e as forças armadas.
Cheney
viu a oportunidade de, como brinca o filme, transformar-se num Galactus, o
devorador de mundos das histórias em quadrinhos da Marvel. É assim o fez. Com a
convicção de que estava fazendo o certo, e o melhor da atuação de Bale é a
demonstração desta convicção de forma tão real e cristalina, Cheney transformou
o mundo em um lugar pior iniciando uma guerra no Afeganistão contra a Al-Qaeda
para caçar Osama Bin Laden. Mas a então chamada Guerra ao Terror do governo
Bush não era suficiente para ganhar o apoio da população americana. Era preciso
um alvo palatável para o povo. Um país com fronteiras e um líder.
Foi assim
que Cheney uniu o útil ao agradável, o desejo de retirar Saddam Hussein do
poder, e iniciou uma guerra no Iraque com informações falsas e manipulação de
notícias que convenceram até a imprensa e os principais líderes do mundo. Em
troca, o que Cheney ganhou foi a responsabilidade direta pela criação de uma
das maiores organizações terroristas do mundo: o Estado Islâmico.
“Vice” é
implacável, didático e conta com um elenco de atores que só abrilhantam ainda
mais o filme. Bale está um monstro no papel principal, mas Amy Adams não fica
atrás ao fazer a esposa de Cheney, Lynne. E ainda há Steve Carrell e Sam
Rockwell muito bem, além de atores em papéis menores que souberam incorporar
bem a ideia do cinema de Mckay de contar histórias baseado em conexões com a
cultura pop e linguagem ágil e leve, por mais que em vários momentos do filme
dê um embrulho no estômago.
De fato,
Mckay seria um bom professor de história se não fizesse cinema. E a cena auto irônica
no pós-crédito é a cereja no bolo. Além de mostrar como aquele período ajudou a
inaugurar uma cultura de fake news que impera hoje em dia e que ajudou a eleger
nomes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil.
Cotação da Corneta:
nota 8.
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