Jack, o assassino, e Verge, o espectador |
Lars
von Trier acha que não há história que não mereça ser contada. Partindo dessa
premissa, o diretor dinamarquês, um dos expoentes do movimento Dogma, caminha
pelos lugares mais obscuros da alma em busca do que há de mais podre na
humanidade. “A casa que Jack construiu” ("The house that Jack built”, no original), pode
ser visto como um resumo de tudo o que é o que tem sido o seu cinema nas
últimas décadas. Também são 2h35min de um filme que só reafirmaria a visão de
seus críticos sobre o seu comportamento doentiamente misógino e seus flertes
com o extremismo. E lembremos que Von Trier já declarou “compreender Hitler”, o
que o fez ser expulso de Cannes quando do lançamento de "Melancolia" (2011).
“A casa que Jack construiu”, pode, portanto, ser visto por, no mínimo, dois prismas. Comecemos
pelo primeiro.
O novo
filme de Von Trier pode ser encarado como um exercício sobre a maldade sem
consequências. Na história, Matt Dillon é Jack, um engenheiro com ambições de
ser arquiteto que sonha em construir uma casa tão perfeita que parece sempre
impossível de construí-la. Mas Jack também é um serial killer, que em 12 anos
matou mais de 60 pessoas sem nunca sequer ter sido pego pela polícia.
Ao longo
do filme, Jack vai desenvolvendo uma teoria numa conversa com uma entidade
chamada Verge (Bruno Ganz) sobre o quão artística é a sua vida de crimes.
Defende que a arte vem da dor e da maldade enquanto Verge entende a arte como
fruto do amor. Esse diálogo de oposições vai mapeando todo o filme a cada ato cada vez mais hediondo de Jack, sempre acompanhado pelo olhar atento, porém, plácido, de
Verge, personagem que só no fim entendemos qual é o papel. E é curioso que este
personagem tenha sido feito pelo mesmo ator que interpretou Hitler em “A queda”
(2004). Difícil crer que foi uma escolha casual.
A cada
assassinato de Jack, Von Trier vai ilustrando como a maldade é banal e como o
desespero de cada um é tão solitário e não encontra eco e nenhuma
solidariedade. Ele é o Senhor Sofisticação e desenvolve crimes perfeitos contanto com
a inoperância da população ao redor e a lentidão das autoridades.
Ao mesmo
tempo, Von Trier desenvolve a tese de que o serial killer é um indivíduo que
nasce com a maldade nele e sempre deixa pistas a cada crime. Pois ele quer ser
encontrado, descoberto. Existe uma vaidade nessa briga de gato e rato, pois o
assassino em algum momento quer ser descoberto para ter a sua “obra de arte”
finalmente divulgada e ganhando público e notoriedade.
Ao mesmo
tempo, o diretor expõe que nós, enquanto espectadores, adoramos estas histórias
e adulamos assassinos. É quando o diretor expõe as imagens de ditadores e
assassinos em massa como Hitler, Mussolini e Stalin.
O filme,
porém, acaba escorrendo no fim por uma longa vertente bíblica que pareceu
destoar um pouco da proposta inicial. Tivesse se mantido na sutileza das
conversas entre Jack e Verge com um desfecho menos longo, ele teria algo melhor
a oferecer.
Mas é
impossível enxergar “A casa que Jack construiu” sobre outro prisma. A da misoginia de Von
Trier. No filme, Jack conta que assassinou todos os tipos de pessoas, mas é a
história de seis mulheres que ele resolve contar para Verge, aquelas que lhe
dão um certo prazer. Uma delas, ele considera a sua grande obra de arte, quando
trata uma mãe e seus dois filhos pequenos como caça e os solta num descampado
apenas para brincar de tiro ao alvo com eles. Mas é a mulher que ele resolve
torturar psicologicamente antes de oferecer a ela um fim trágico.
Von Trier
é um conhecido torturador de mulheres e parece não ter nenhum problema em expor
isso. Numa passagem do filme, quando Jack está prestes a matar Simple (Riley Keough),
nome que por si só é uma enorme agressão e reducionismo à mulher que ele dizia
até gostar, o diretor chega a expor um subtexto no roteiro falando da injustiça que é sempre culpar os
homens de tudo, enquanto as mulheres são sempre vítimas. Em tempos
de #MeToo, denúncias de assédio e um necessário chamado ao protagonismo
feminino, Von Trier vem nos dizer que está pouco se lixando para isso. Para que isso se não expor uma necessidade de ser polêmico apenas pela polêmica em algo que nada acrescenta ao filme?
Simple é
agredida verbalmente, humilhada e tem a mais terrível e sádica das mortes. E que reverbera durante o filme, pois Jack transforma um dos seus seios numa
carteira.
Mas como
eu dizia, Von Trier é um conhecido torturador de mulheres no cinema. Nicole
Kidman é humilhada para além do limite em “Dogville” (2003), provocando um enorme
incômodo. Chalotte Gainsbourg é igualmente levada para além de todos os limites
em “Anticristo” (2009) e nos dois volumes de “Ninfomaniaca” (2013). Björk é igualmente
humilhada em “Dançando no Escuro” (2000). A cantora islandesa, inclusive, teve
problemas de relacionamento com o diretor. E em “A casa que Jack construiu”, Von Trier
expõe suas mulheres ao máximo de dor e horror. Não apenas com Simple ou uma das mulheres sem nome,
mas também com a primeira vitima (Uma Thurman), assassinada com um golpe de macaco enquanto o diretor faz questão de expor o enorme buraco na cabeça da personagem
causado pela peça do carro.
Alguns
poderiam dizer, e não deixa de ser um argumento válido, que tudo não passa da
arte de Von Trier. Que as atrizes continuam topando trabalhar com ele e, no
caso de Charlotte, fazem até mais de um filme. Mas quando se trata de deixar de
ser algo pontual para virar uma marca, e uma incômoda marca, pois não é um
traço de estilo, mas um discurso de ódio imputado em seus trabalhos, torna-se
um problema.
Assim, “A casa que Jack construiu” não acrescenta nada de muito novo à cinebiografia de Von Trier,
que segue soltando suas faíscas do estilo-Dogma de filmar, e fazendo suas
histórias seguirem o mesmo looping narrativo de trabalhos anteriores. De
interessante mesmo só o trabalho de Dilon no papel principal. Se há uma
centelha de valor no filme, está no olhar sádico-enfadonho que ele estabeleceu
para o seu Jack e no proveito que ele teve das ironias do texto para usar no
seu personagem. Mas ainda assim, “A casa que Jack construiu” está longe dos melhores
trabalhos de Von Trier.
Cotação da Corneta:
nota 6,5.
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