O Drago é grande mesmo |
“Creed”, o filme de Ryan Coogler
lançado em 2015, de certa forma renovou a franquia de Rocky Balboa ao apresentar
um novo protagonista e dar prosseguimento à vida do lutador interpretado por
Sylvester Stallone, agora no papel de treinador e mentor de Adonis Creed
(Michael B. Jordan), filho do ex-campeão e amigo de Rocky, Apollo.
Tão elogiado, o filme chegou a
ter uma surpreendente, mas merecida indicação ao Oscar para Stallone pelo seu
papel de um Rocky ainda tentando reencontrar seu papel no mundo e sentindo-se cada
vez mais só anos após a morte de sua eterna amada Adrian, interpretado pela
atriz Talia Shire em todos os filmes da franquia até a morte da personagem.
O sucesso de público e crítica do
primeiro filme provocou um natural desejo por uma continuação. Não mais com
Coogler como diretor, que depois passaria a se dedicar ao elogiado “Pantera
Negra” e sua continuação, ainda sem data de lançamento prevista, mas com Steven
Caple Jr. “Creed II” é apenas o seu segundo longa-metragem como diretor e é uma
cópia quase fiel de “Rock IV”.
Talvez não seja por acaso que o
roteiro de Stallone e Juel Taylor fosse revisitar a história mais “nacionalista”
de Rocky para contar a história da continuação da vida de Adonis Creed, agora
um campeão mundial em busca de novos desafios e enfrentando mudanças na vida
pessoal - a possibilidade de trocar a Filadélfia por Los Angeles, o
casamento com a cantora Bianca (Tessa Thompson). O objetivo parece ser atrelar
ainda mais a trajetória de Adonis a de Rocky, mostrar ele enfrentando os mesmos
desafios e apelar à memória afetiva dos fãs da franquia. Eles viram o confronto
de Apollo e Rocky com Ivan Drago (Dolph Lundgren), agora querem ver os filhos
se enfrentando. E, convenhamos, na história do esporte, este tipo de
narrativa é bastante comum.
Por outro lado, justamente por
esse apelo a um mundo que não mais existe nas configurações de 1985, ano do
lançamento do quarto filme do pugilista vivido por Stallone, “Creed II” já nasceu
um pouco datado. Quando “Rock IV” foi produzido, o mundo vivia os anos finais
da Guerra Fria, ainda havia muro de Berlim e a natural polarização entre
Estados Unidos e União Soviética. Incontáveis foram os filmes em que os russos
eram os vilões e os americanos salvavam o mundo nas mais de quatro décadas de
cinema durante aquele período. “Rocky IV” foi só mais um. Naquele filme, Rocky
Balboa via o seu amigo Apollo ser assassinado no ringue por Drago e busca uma
revanche contra Drago na Rússia, casa do inimigo, para vingar a pátria americana.
Tudo com direito a trilha sonora heroica, treinamento heterodoxo e uma clara
visão de hostilidade por parte dos soviéticos. Só o Stallone, aliás, encarnou
dois heróis de sucesso desta época da Guerra Fria. Além de Rocky, o próprio
Rambo, cujo quinto filme tem previsão de lançamento para este ano.
Naquela época de “Rocky IV” havia
um contexto geopolítico, que por mais que fosse maniqueísta, ajudava a criar
uma polarização, embora tacanha, de Ocidente x Oriente, EUA x URSS. O contexto
hoje é um pouco diferente. Heróis e vilões, se fosse possível ver a política
desta forma, estão mais amalgamados do que outrora. Até porque o volume de
informação circulada, bem como de fontes, é bem maior, o que impede uma
narrativa dominante. Se, por vezes, ficou mais fácil manipular a história – e a
indústria de fake News está ai para provar isso – é também mais difícil ser o
dono da história e da sua narrativa. E se a Rússia de Putin ainda merece toda a
desconfiança, os Estados Unidos de Trump não ficam muito atrás.
Portanto, levar esse contexto
para a história de Creed é empobrecer esta leitura contemporânea, mais
diversificada e que se propõe mais moderna para a franquia Rocky Balboa.
Lembremos que quando o primeiro Rocky surgiu em 1976, os grandes nomes do boxe
eram todos negros. Joe Frazier, Muhammadi Ali, George Foreman, Leon Spinks, Ken
Norton e Larry Holmes, todos campeões mundiais dos pesos pesados entre as
décadas de 70 e 80 eram negros. Nesse cenário, Rocky era um lutador de sucesso
branco - seu apelido era “o garanhão italiano” - num mundo em que os negros
davam as cartas tanto dentro quanto fora do ringue. Afinal, Don King era o
grande nome organizador de lutas do esporte.
Na franquia de Rocky, o lugar do
negro era, no máximo, o de coadjuvante. Creed surge para corrigir essa trajetória
e reafirmar o protagonismo negro nesse esporte ao mesmo tempo em que o cinema e,
especialmente, o Oscar eram alvos de críticas pela falta de negros concorrendo
aos prêmios. É curioso que uma das últimas falas de Stallone no filme seja
virar para Creed e dizer: “Este é o seu momento”. É claro que era o personagem
em sua humildade, e Rocky sempre foi pintado como um personagem humilde e
iletrado das periferias da Filadélfia, dizendo que Adonis tinha que brilhar
como o protagonista máximo daquela história, mas, numa interpretação livre,
podemos também dizer que era o momento dessa virada, enquanto Rocky agora é um
coadjuvante. Pois esse é também o papel do treinador.
Da mesma forma, o papel da mulher
na franquia de Rocky, que também era de coadjuvante, é absolutamente diferente
em Creed. Adrian era uma mulher simples que vivia para o marido e sem grandes
ambições a não ser ter uma vida como esposa de Rocky. A Bianca de Creed é uma
mulher independente e com uma carreira ascendente como cantora. Ela está longe
do papel de mulher que sofre na frente da TV vendo o marido apanhar. Ela entra
junto com ele, conduz o marido até o ringue com atitude e desafiando os
rivais.
Além disso, Bianca tem uma
deficiência auditiva agora herdada pela filha do casal, que traz a inclusão das
pessoas com deficiência dentro da nova proposta da franquia e promete render
novas histórias em torno desse tema.
Por tudo isso que revisitar
“Rocky IV”, e olhar mais para o passado que para o presente e futuro, que “Creed
II” deixa a desejar como proposta de cinema para além do mero entretenimento. E como entretenimento ele não deixa de ser muito bom, pois emula tudo o que o
filme de 1985 tinha. A derrota dramática para Drago no início, o treinamento
nada ortodoxo de Creed no deserto lembrando o treinamento na neve de Rocky, a
ida à Rússia para a luta final, a hostilidade do público russo, a trilha sonora
característica...Tudo é igual ao filme de 85. É ainda há o elemento de
“reescrever a história”, visto que o pai de Adonis morreu no ringue para Ivan
Drago.
A questão é que “Creed” apontava
para outros caminhos. E o filme de 2015 é daqueles que poderiam figurar em
listas dos melhores sobre boxe. E neste ponto, esta ainda jovem franquia se desviou
um pouco do que parecia estar se desenhando.
Talvez o objetivo fosse apenas
soltar as faíscas da memória afetiva dos filmes de Rocky. E o quarto é um dos
mais emblemáticos. Porém, “Creed II” merecia mais do que ser uma mera cópia de
um filme de mais de 30 anos atrás. É um filme que diverte e entretém, mas nada
além disso.
Cotação da Corneta: nota 7.
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