Não estava fácil a vida naquele fim
de tarde no Hell de Janeiro. Algo dera um enorme nó no trânsito e os ânimos
ficaram exaltados com a imobilidade na velha cidade supostamente maravilhosa.
Rumores diziam que um acidente no
bairro do Coisa-Ruim era o responsável pelo caos na South Zone. Ninguém
confirmava. Nem negava.
Em meio ao caos estático, o intrépido
Troncal 10, NOTA 10, singrava as ruas do bairro de PutFire. Ali, em um ponto
qualquer, entrou um passageiro bufando como uma panela de pressão velha.
- Hoje está tudo PA-RA-DO - afirmava
o cidadão fazendo pausas dramáticas e enfáticas, tal qual um Gil Gomes
contemporâneo, aquele antigo repórter do "Aqui Agora".
Trajando uma camisa polo cinza,
óculos escuros, o suor escorrendo pelo rosto e a pança saliente revelando o
gosto pela sagrada cervejinha de cada dia, o homem bufava e seguia a sua
sociologia particular versada em frases que caberiam num tweet.
- DE-MEN-TE. É a causa do
engarrafamento. O DE-MEN-TE da fila DU-PLAAAAA - repetia o nosso Gil Gomes.
O homem era monossilábico e
autossuficiente. Não precisava de ninguém para debater. Falava alto para o
Brasil ouvir. Mas nunca em nome de Deus ou da família.
- Bairro-chave do
EN-GAR-RA-FA-MEN-TOOOO. Bairro-chave do EN-GAR-RA-FA-MEN-TOOOO. O DE-MEN-TE da
fila DU-PLAAA.
Os brados começaram a chamar a
atenção dos passageiros do ônibus. A jovem de olhos verdes logo o fitou e
trocou olhares com o rapaz ao lado. "Que louco", ela deve ter
pensado.
Mas o homem não ligava para nada. Nem
as impressões olfativas escapavam do seu julgamento.
- Que fedor. Lixo e PA-LÁ-CI-OOOOO.
Qual o valor... da MAIS VALIAAAA?
O intrépido Troncal 10, NOTA 10, era
um dos ônibus mais xexelentos do Hell de Janeiro. Dentro dele, humanos e
baratas conviviam em harmonia involuntária. Sujo, desconfortável e caindo aos
pedaços, o Troncal 10, NOTA 10, poderia desmontar a qualquer momento. Enquanto
isso não acontecia, ele recebia todo tipo de passageiro.
Era o caso do homem com pinta de policial
aposentado que não parava de fazer julgamentos aleatórios.
- TE-LE-FÉ-RI-COOOO. Mais vale do que
mil casas - dizia, patinando no S. - TE-LE-FÉ-RI-COOOO. Qual o valor... do
voto? Qual o valor... da MAIS VALIAAAA?
O show, porém, estava acabando. Pfff,
pffff, bufava o homem quando levantou sob olhares curiosos. Deu o sinal e
saltou quase em frente a Lady Martha Community.
- Hospedagem na FA-VE-LAAAAA.
Foi o seu último pronunciamento antes
de seguir o seu destino.
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