Madonna no terceiro ato/Reprodução Instagram |
Madonna nunca
foi daquelas artistas que se sentam na usina de hits e fazem um show repetitivo
para os fãs. Pelo contrário, a cantora sempre se impôs desafios em quase 40
anos de uma carreira camaleônica tanto no visual quanto nas experiências em sua
sonoridade. E é a artista que se impõe desafios que vemos na turnê do seu novo
álbum, “Madame X” (2019).
Iniciando por
Lisboa uma pequena turnê europeia que ainda passará por Londres e Paris, Madonna
trouxe à cidade que foi por algum tempo a sua casa porque um de seus filhos
joga na base do Benfica (“Nunca pensei que iria me tornar uma soccer mon”), um
pouco das influências do que a capital portuguesa lhe ofereceu aliada à força
do seu novo disco e alguns clássicos de sua carreira.
Para isso, ela
apostou em algo que raramente se vê um artista pop que atinge uma certa grandeza
fazer. Um show intimista num lugar pequeno (em Lisboa, o Coliseu) e com
características muito particulares. A frente do palco, cadeiras para os fãs ficarem
sentados, o que praticamente não aconteceu. Nos bolsos e bolsas, celulares
lacrados com bolsinhas impossíveis de abrir e que só são retiradas pelos
seguranças ao fim do espetáculo. O objetivo de Madonna é fazer o público viver
a experiência sem perder tempo filmando e fotografando. Numa era de
superexposição e popularidade medida por likes, a cantora prefere ver a
satisfação nos olhos de quem a observa e não nos números das redes sociais. E
não deixa de brincar com isso.
- Eu também
olho para vocês e fico pensando: por que não estão tirando fotos minhas? Talvez
eu também estivesse ficando viciada – disse ela ao explicar a importância deste
contato olho no olho com os fãs.
De fato, a
proximidade do palco e o espaço infinitamente menor do que os estádios que ela
se apresentou em todas as suas últimas turnês, trouxe uma inédita sensação de
intimidade rara com um artista do porte de Madonna. Isso a deixou bem à vontade
também para interagir e provocar os fãs, contar histórias da vida lisboeta,
fazer piadas e até bater um papo rápido com duas pessoas que tiveram a chance de
terem ainda mais proximidade com ela.
Madonna
circulou no meio da plateia, sentou em uma das cadeiras para descansar e
reclamou constantemente da lesão muscular que lhe causa muitas dores nos
membros inferiores e já a fez cancelar sete shows da turnê. Dois deles em
Lisboa.
- Madame X
está lesionada – disse a cantora, que nunca perdeu o bom-humor ao dizer que o
melhor momento do show é quando ela senta.
Mas pode-se
dizer que com um espetáculo tão diferente, os fãs ficaram satisfeitos? Depende
do que cada um esperava. Se ele for ao concerto de “Madame X” para ver Madonna
enfileirando seus sucessos, haverá um certo sentimento de frustração.
Principalmente porque o set list é todo baseado no novo álbum (são 11 canções
de um disco de 13 faixas) com algumas músicas pinçadas da carreira da cantora
para colorirem um pouco mais e servirem ao que o espetáculo propõe.
Se, por outro
lado, o fã da cantora comprar a ideia de um show com muitos elementos teatrais
dividido em quatro atos, um prólogo e um epílogo onde Madonna levanta suas
conhecidas bandeiras e faz com que as músicas estejam a serviço da ideia de
contar uma história encadeada, aí a experiência pode ser mais agradável.
As ideias de
Madame X
Madonna propõe
duas ideias diferentes em “Madame X”. Uma delas é um grande manifesto político
que passa por críticas ao governo Donald Trump, algo mais forte em “American
life”, a quem ela também aproveita para provocar dizendo que o presidente
americano têm um pênis pequeno, e pela defesa da liberdade de todos e da força
das mulheres e dos gays na sociedade. E não é por acaso que ela vai embora
estendendo uma grande bandeira do movimento LGBT+ em “I Rise”. Aqui é a Madonna
que se propõe incomodar como está na poesia de James Baldwin citada antes do
show: “Artists are here too disturb the peace”.
Durante o show,
Madonna ainda revisita seus elementos e brinca com isso. “Vocês conhecem meus
clichês”. O sagrado e o profano estão sempre ali presentes, seja com bailarinas
vestidas de freiras ou outros rituais encenados no palco. As provocações ganham
o seu ponto alto na interpretação de “Like a prayer”, quando o palco exibe
cruzes, mas também as backing vocals se postam na escadaria que forma um X com
Madonna cantando ao centro.
A segunda
ideia proposta pela cantora é uma viagem por sua experiência portuguesa.
Especialmente no terceiro ato. Madonna deixa clara a importância que a música
portuguesa e as experiências que viveu morando em Lisboa foram importantes para
a construção do álbum “Madame X” e para trazerem um frescor à sua música. E
também foram fundamentais para ela sair em turnê.
- Engordei
tanto comendo bacalhau que tive que sair em turnê – disse.
Sentada por causa de lesão/Reprodução/Instagram |
É neste ponto
que o cenário vira uma casa com diversos elementos portugueses (azulejos,
escadarias, janelas bem típicas) e ela chama Dino D’Santiago e o guitarrista
Gaspar Varela para tocarem com ela.
Uma
particularidade acerca disso, porém, mantém-se misteriosa. O quanto funcionaria
este show para outras plateias na parte mais portuguesa do espetáculo. Será que
não haveria uma recepção mais fria quando a turnê passar por países menos
afeitos ao fado e com culturas tão diferentes? É algo a se analisar. A menos
que está parte do show ganhe outras cores e mais mobilidade num set list que em
Portugal não teve variações.
É neste ato
que Madonna emenda dois fados intercalados entre suas músicas. “Fado
pechincha”, de Isabel de Oliveira, e “Sodade”, de Cesária Évora. A cantora se
esforça para interpretar bem em português e tem a simpatia do público, que não
faz grandes exigências e entende tudo como uma homenagem. Mas a reação de
outras plateias que não estão acostumadas com a música portuguesa pode ser bem
mais fria e dispersar um show que exige atenção e tem muitas pausas em suas
três horas e meia.
Show este que
começa com Madonna fora do palco. O prólogo do espetáculo dura meia hora em que
quatro músicos interpretam oito canções apenas de forma instrumental. Entre
elas, sucessos com “Secret”, “Who´s that girl”, “Like a virgin” e “Don´t tell
me”. O destaque desta parte é a trompetista Jessica Pina, que embala os
sucessos da cantora sempre interagindo com os fãs. Fãs estes que se empolgaram
muito com “Like a virgin”.
O ponto
negativo aqui é a longa espera na transição para o primeiro ato, quando Madonna
finalmente dá as caras cantando “God Control”, do álbum “Madame X”. Aqui ela desafia
os poderes estabelecidos, a idade e as leis da física durante “Human Nature” e
emenda com uma bonita versão à capela de “Express Yourself”.
Neste primeiro
ato temos as primeiras expressões interessantes do palco que, embora pequeno, é
muito funcional e cheio de entradas e saídas para trazer mobilidade aos
bailarinos e à cantora. O palco também é dividido em camadas para que possa ter
seu cenário modificado sem que o show sofra grandes interrupções.
É ainda possível
ver com destaque um telão que se amalgama por vezes com Madonna e os bailarinos
criando um efeito bem bonito de profundidade e também de fusão que terá o seu
ponto alto mais à frente quando a cantora vier a cantar “Frozen”.
No segundo
ato, o destaque é “Vogue”, um dos seus grandes sucessos e cantada numa
performance em que no palco surgem várias bailarinas fantasiadas de Madonna. É
aqui que também é cantada a já comentada “American Life”.
Daqui vamos
para o terceiro ato, quando Madonna deixa o lado político um pouco de lado
para fazer sua
homenagem à cultura dos países de língua portuguesa. Traz ao palco as mulheres
do batuque para cantar “Batuka”, emenda fados, canta “Crazy”, que tem um refrão
em português e dá uma pinçada em “La Isla bonita” que serve de transição para
um momento mais latino do show que viria com “Medellin” e recolocaria o
espetáculo na rota para o ato final.
É aqui que
percebemos que as canções novas funcionam melhor ao vivo do que no disco e servem
bem a proposta do show que se encaminha para o fim com o quarto ato. Aqui
temos uma das
interpretações de mais impacto do show. “Frozen”, do álbum “Ray of Light”
(1998), uma das mais belas canções de Madonna e interpretada com a cantora se amalgamando
com as imagens do telão num efeito muito bonito enquanto a tela mostra a sua
filha, Lourdes Maria, se exercitando e fazendo yoga. É um efeito muito bonito e
é o momento em que a voz de Madonna soa muito bonita. Aliás, um ponto
fundamental deste show é que ao contrário de outras turnês, Madonna canta o
tempo todo. Não há playback.
O espetáculo
termina com a já citada “Like a prayer” e o epílogo de “I Rise”, quando Madonna
se despede andando no meio da plateia e punho em riste no seu protesto final.
“Madame X” não
é um show de prazer fácil. É preciso comprar a sua ideia. E é um espetáculo que
se fosse possível seria bom ver pelo menos duas vezes dada a quantidade de
detalhes para se prestar atenção no palco. Mas é um show de muito vigor e de
uma Madonna que gosta de enfrentar e se impor desafios. Uma Madonna que se
recusa a cair na mesmice para oferecer ao seu público um novo olhar sobre a sua
obra.
Cotação da corneta: nota 8,5.
Nenhum comentário:
Postar um comentário