domingo, 13 de janeiro de 2008

O real e o abstrato

Hermético é um adjetivo bastante apropriado para o diretor americano David Lynch. Seus filmes não são fáceis de entender e sua narrativa nunca é linear com ações e conseqüências imediatas. Seus filmes são quebra-cabeças que exigem muito do cérebro. Sua obra pode inclusive expulsar os que estiverem assistindo. No cinema, durante a exibição de “Império dos Sonhos”, seu mais novo trabalho, vi três pessoas abandonarem a sala. Não entenderam que Lynch não é “Harry Potter”.

De fato “Império dos Sonhos” é mais um de seus filmes duros de entender. Particularmente não tanto quanto o ainda insolúvel - para mim - “Cidade dos Sonhos” (2001). É algo mais próximo de “Veludo Azul” (1986). Mas assim como estes dois trabalhos, é outra excelente obra de Lynch, um dos poucos autores do cinema hoje em dia.

Assim como em “Cidade dos Sonhos”, Lynch explora os jogos de realidade e ficção dentro de sua obra e o espectador que se vire para construir a história. E acho que é bem isso mesmo. A obra do diretor é uma das mais abertas que conheço e já li entrevistas suas em que ele não se preocupava em explicar seus filmes deixando que cada um o interpretasse e tentasse entender ao seu jeito.

Sendo assim, na minha modesta opinião, chego a uma conclusão perigosamente óbvia se tratando de um filme de Lynch. O Império dos Sonhos é para mim uma crítica bastante direta à indústria cinematográfica de Hollywood.

Claro que o título original “Inland Empire”, poderia quebrar um pouco essa minha interpretação, dirão alguns. Contudo, uma olhada no dicionário me faz descubrir que Inland significa algo que seja longe da costa, distante, livremente falando ermo. Assim, seria um Império distante da realidade.

Com esse conceito básico, Lynch constrói uma trama de suspense com pitadas de terror que envolve contos ciganos poloneses e a filmagem de uma película. Ligado a isso tudo está Nikki/Susie, vivida visceralmente pela atriz Laura Dern.

Laura é uma atriz que consegue um papel numa importante obra que será dirigida pelo cineasta Kingsley, vivido pelo ótimo ator Jeremy Irons. Ela contracena com Devon (Justin Theroux), um ator conhecido por ser um garanhão e pegar todas as mulheres com quem divide o set.

Por trás desse cenário, está uma história macabra de que o primeiro filme, uma vez que a história é uma refilmagem de uma história cigana da Polônia, nunca foi finalizado porque seus protagonistas foram assassinados. Ao longo do filme de Lynch vamos acompanhando a “película lenda” em sua língua original e podemos comparar com a versão “pasteurizada” americana.

A crítica à indústria cinematográfica também está presente num cenário que seria bizarro se não soubéssemos que o filme é de Lynch, com personagens fantasiados de coelhos que interpretam diálogos pueris entremeados por risadas falsas como nas sitcoms americanas.

Nikki consegue o papel, mas se vê perdida entre o filme e a realidade. Não sabe se vive realmente aquele amor por Devon/Billy, ou é apenas Susie, a sua personagem. Está tão introjetada na vida de Susie que chega até a viver como tal.

Paralelamente a essa trama, Nikki/Susie/Laura vive uma terceira mulher. Uma dona de casa que acha a sua vida muito sem graça. Bem diferente do glamour das estrelas da TV. Na verdade, isso é o que achamos inicialmente, mas é essa dona de casa – que, aliás, abre o filme – que sonha em ser a estrela do cinema. Quando vemos Nikki na pequena casa, com seu marido problemático e uma gravidez a lidar, é, na realidade, o corpo da atriz na alma desta dona de casa sem nome.

É ela que quer entrar neste mundo de sonhos, de glamour, aparentemente perfeito. A deixa que nos faz fazer o link e compreender esta história é a cena final do filme falso que é feito dentro da obra de Lynch, quando uma coreana fala sobre uma prima distante que tem uma peruca loura que quando usa parece até estrela de cinema. Ela não só parece como vira a estrela, mas mantém sua vida de bed, TV and breakfast.

Não é possível falar mais sem estragar essa ótima obra de Lynch. Seus filmes são um desafio interessantíssimo para quem gosta de um cinema diferente do que é feito por 90% dos diretores e estúdios. Os 10% restantes estão nas mãos de diretores como ele, David Cronenberg, Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, além de craques que não estão mais entre os vivos como Stanley Kubrick, outro cineasta para lá de hermético, e Alfred Hitchcock.

“Império dos Sonhos” é um filme difícil que testa a paciência dos acostumados a ver tudo em alta velocidade com suas longas cenas escuras e minimalistas. Nesta obra de três horas de duração, Lynch parece avisar que quer na sala os que apreciam o cinema e expulsar os que só comem pipoca.

Mas se você ultrapassar essa barreira e fizer o exercício de juntar os recortes e criar a história a partir dos elementos apresentados, encontrará um bom filme e uma experiência inesquecível. E, claro, tirará suas próprias conclusões, pois tudo o que eu disse acima pode ser uma grande besteira. É um filme de Lynch. Nada está fechado. E se você conseguiu entender “Cidade dos Sonhos”, que já vi três vezes e não cheguei a uma conclusão sobre onde está a realidade e a ficção, por favor, me ajude.

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