Uma das mesas da Feira Literária de Paraty/Marcelo Alves |
Mais um ano de Flip. Mais um ano em que eu sobrevivi sem
torcer fortemente os pés no piso acidentado da cidade histórica de Paraty. Não
posso dizer o mesmo sobre pequenas torções. Muita coisa mudou. Outras tantas
estão iguais. E aqui está o que só a Corneta viu na versão 2017 do Paraty
Facts?
1- Ok, é charmoso, é bonitinho, faz parte da história da
cidade, mas já está na hora de colocarem um asfalto decente nesse terreno do
centro histórico de Paraty. As pedras irregulares de tons surrealistas não são
inclusivas. Imagina o tormento para quem usa cadeira de rodas ou tem problema
nas articulações de joelhos e tornozelos para andar nessa cidade.
2- Foi uma Flip com muito mais policiais nas ruas. A segurança piorou. Natural. Paraty não seria uma ilha de
excelência num Rio de Janeiro que está abandonado, perdido e jogado na sarjeta.
3- Além de mais policiais e mais cachorros também tinha
mais gente dando Bíblia e espalhando a palavra divina nas esquinas. Eles
estavam competindo pau a pau em ocupação com os índios, que até onde eu sei,
são locais.
4- A rodoviária ganhou um upgrade considerável. Deixou de
ser aquela coisa empoeirada roots do interior e ganhou o ISO 9001 de rodoviária
de cidade média.
5- Ainda não me decidi se a melhor sorveteria da cidade é
o Finlandês ou o Pistache. De fato, tenho uma leve preferência pelo Finlandês,
cujo sorvete é mais saboroso, mas experimentei e gostei do sorvete de chocolate
com laranja do Pistache. Mas por que decidir isso agora? O importante é
continuar experimentando eternamente.
6- Devia ter um código de bom senso antes de guardar
lugares em cadeiras nas palestras na Flip. Uma pessoa, ok, a família inteira,
cachorro e papagaio, não pode. Ou então paga um salário mínimo para a cidade
pela reserva.
7- Teve "Fora, Temer!", teve "Volta,
Dilma!", teve "Geraldo Alckmin!" e teve umas coisas sobre
hábitos do Aécio que é melhor eu não reproduzir. Teve muito protesto também. De
todos os tipos e gêneros. Até pelo fim das carruagens. Eu apoio. Coitado dos
cavalos. Não dá para andar com equilíbrio no centro histórico.
A cidade histórica de Paraty/Marcelo Alves |
8- Teve também uma galera exaltada. As pessoas estão uma
pilha de nervos nesse país! Um cara passou berrando: "Não tem banheiro
nessa porra!" (Taí uma verdade). Durante uma mesa, uma galera bateu boca
num cantinho. Uma mulher esqueceu que fones com tradutores gabaritados falando
no seu ouvidinho são oferecidos de graça e berrou: "Cadê a tradução desta
MERDA!". E só porque um poeta mencionou que fez uma poesia inspirado nas
manifestações de 2013 um cara atrás de mim levantou exaltado, mandando um
"vai se fuder" e esbarrando nas mulheres ao seu lado que não tinham
culpa de nada. De que adianta frequentar um festival literário e não ter elegância?
9- Para todos os exaltadinhos fica então a sugestão de
rever a palestra de Lázaro Ramos e da jornalista portuguesa Joana Gorjão. Além
de ter sido muito boa com duas pessoas inteligentes com bastante coisa a dizer,
no fim de tudo Lázaro ainda pediu para as pessoas se amarem e distribuirem
afeto (e beijo na boca). Mais amor, gente. É o que também prega o Marcelismo.
10- Foi desta palestra ainda que surgiu Diva, a senhora
que iluminou a Flip com a sua história de vida, de resistência e amor à
educação. Professora de Curitiba, ela falou verdades sobre a capital
paranaense, coisas que não fariam o Sérgio Moro dar likes. E emocionou a todos.
Foi uma das personagens da Flip.
11- Eu não sei quem teve a ideia de inventar o pastel
doce. Nem deve ser uma invenção paratiense. Mas foi aqui que eu cai de boca sem
perdão e sem pensar no dia de amanhã num pastel de prestígio de 30cm que estava
supimpa.
12- Pilar del Rio, que personagem fascinante,
inteligente, carismática e bem humorada. Foi encantador simplesmente ouvir as
suas opiniões sobre tudo. Absolutamente compreensível o Saramago ter sentido a
terra tremer quando a viu.
13- Quando eu crescer eu quero ser inteligente,
equilibrado, altivo e ter a classe que o Angel Gurria-Quintana tem para mediar
as palestras. Ele devia mediar todos os conflitos e debates da sociedade
judaico-cristã ocidental.
14- A gente sabe que foi uma Flip com sérias restrições
orçamentárias, mas ficou bem legal a festa na praça da Igreja da Matriz.
O belo cenário de Paraty, onde aconteceu a Flip/Marcelo Alves |
15- Todo evento literário é um aprendizado para mim. Ouvir
pessoas de opiniões diferentes, aprender com elas. Geralmente é gente muito
mais sábia do que eu e com muito a me ensinar. E foi o que aconteceu muitas
vezes. Porém, dessa vez não vi um único escritor que me arrebatasse de tal
maneira que me fizesse cometer a sandice de levantar a bunda da cadeira e
comprar os seus livros na livraria oficial da Flip (onde tudo é caro). Foi o
que a Svetlana Alexievitch fez comigo no ano passado. Bom, de certa forma,
minha conta bancária agradece.
16- Vi dez debates. Destes, 40% envolveram pensadores
portugueses. Acho que eu estava meio obsessivo por um discurso sem gerúndios.
17- Sempre tive respeito por tradutores. Mas a conversa
entre o português Frederico Lourenço (que traduziu SÓ a Iliada, a Odisseia e a
Bíblia direto do grego) me fizeram enxergar o trabalho do tradutor como um
processo criativo fascinante ao mesmo tempo em que é um trabalho dispendioso e
de muita ourivesaria e paixão pelo texto original.
18- Frederico, aliás, ganhou o prêmio "ousadia e
alegria" da Flip ao, dentro de uma igreja, questionar com argumentos
sólidos e bastante aceitáveis a virgindade de Maria. Só faltou chamá-la de
danadinha, o que uma senhora atrás de mim fez sem pudor.
19- Aliás, profundo respeito pelo Frederico, que começou
a estudar grego sozinho e aos 10 anos, sempre acompanhado do seu pinguim de
pelúcia chamado Platão.
20- A gente sabe que a Flip inflaciona Paraty tornando
uma odisseia encontrar algum restaurante com um preço honesto. Mas por que é
tão difícil encontrar um lugar para comer sem a praga da música ao vivo?
21- Duas descobertas na Flip para aprofundar no futuro: a
poesia da grega Safo, que cantada pelo Guilherme Gontijo pareceu profundamente
bela. E a existência de um movimento punk na Islândia. Preciso ouvir estas
bandas cantando raivosamente como vikings chamando para a guerra.
22- Foi um pouco decepcionante a mesa "Por que
escrevo". Não rendeu muito. Uma pena. Vai demorar mais uns 20 anos para
outro surfista voltar a ocupar um lugar de destaque numa festa literária.
23- Sjón entoando cânticos antigos de lendas nórdicas me
transportou para um tempo que não vivi numa floresta mágica com trovadores,
elfos, fadas e vários personagens semelhantes tirados do "Senhor dos
Anéis".
24- Marlon James e Paul Beatty eram claramente os headliners
da festa. O primeiro pareceu totalmente à vontade e desfilou um monte de
referências. Citou até o "Led Zeppelin IV". Beatty tem um jeitão de
jogador de basquete e uma fala e gestos mais introspectivos. O debate fluiu bem
e foi interessante. Só não foi aquela apresentação épica que esperamos de um
headliner. Tipo um Bruce Springsteen quebrando tudo e roubando a sua alma
direto do palco.
25- É isso. A Flip continua linda. Um dia eu volto. Não
sei se nas mesmas condições ou não. Mas eu volto.
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