sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Algumas considerações e o meu ranking de filmes do Oscar-2025

Meus quatro favoritos do Oscar-2025
Bem amigos das redes antissociais. Chegou o grande momento. O momento de falar sobre o Oscar 2025. Esta edição especial. Esta edição em que, como diria o Galvão Bueno, será um grande Haaaaaaaaja Coração! Para todos os brasileiros. Menos para este que vos tecla, pois eu sou frio, calculista e aquariano. Me disseram que aquariano era frio e sem emoções feito um Peaky Blinder e eu resolvi assumir esta persona para manter o meu distanciamento crítico.

Mas enquanto ainda não sabemos se o Brasil vai finalmente ganhar a Copa do Mundo do cinema ou se permanecerá como uma espécie de Holanda da sétima arte (incrível, revolucionária, mas com teias de aranha na sala de troféus), vamos aos comentários implacáveis sobre a edição deste ano do prêmio da Academia.

Falando apenas sobre os indicados a melhor filme, este foi um ano bem interessante. Há filmes muito criativos e de baixo orçamento que foram feitos com o dinheiro de um salgado e um refresco. Há superproduções, há queridinhos da indústria americana (sim, estou falando de você “Wicked”), há filmes que foram do amor ao ódio nas redes antissociais (vixi, “Emilia Perez”, acho que tu não ganhas mais nem eleição para síndico) e há uma diversidade interessante de temas e histórias. Deixaram até o body horror entrar na festa.

No entanto, de acordo com o instituto de pesquisas CornetaStats, a nota média dos indicados a melhor filme caiu 0,65 em relação ao ano passado e ficou em 7,9. Em 2024, tivemos o melhor ano da série histórica com uma nota média de 8,55. No entanto, 7,9 não deixa de ser uma boa nota média.

Mas vamos aos comentários mais detalhados por categoria e, claro, o ranking dos filmes indicados ao Oscar. Consegui ver quase todos os indicados deste ano. Só fiquei devendo o documentário “Porcelain War”, que não consegui ver nem pelos meios legais nem pelos meios pouco republicanos. Nem parece que o filme existe.

FILME — Nosso apoio incondicional vai para…. “Ainda estou aqui”. O que é péssimo para o filme brasileiro, pois em geral o trabalho que eu mais gosto não é premiado. O filme do Walter Salles é definitivamente o melhor entre os indicados. E lamento até hoje que o diretor brasileiro não tenha ganhado uma indicação como realizador também. No entanto, ficaria bem feliz se “Anora” ganhasse. É um filme incrível. Tanto “Ainda estou aqui” quanto “Anora” estiveram no meu top-5 de melhores filmes de 2024. Acho que “O Brutalista” também seria uma boa escolha, mas eu duvido que o povo da Academia tenha visto o filme inteiro na velocidade normal (OBS: aproveitando o ensejo, é errado ver filme ou série em velocidade 1,5x ou maior ou pulando cenas). Também ia curtir se “Duna: parte 2” ganhasse, mas qual a chance real de o filme de Dennis Villeneuve sair campeão este ano? Parece improvável. Embora em maior ou menor nível eu goste dos outros seis indicados, acho que eles não merecem levar para casa o principal careca dourado da noite. Não que isso vá mudar a minha vida. Na segunda-feira eu terei que ir trabalhar normalmente do mesmo jeito.

ATOR — Aqui eu fico entre o Adrien Brody e Colman Domingo. Acho tão bom o trabalho de Brody em “O Brutalista”. Já o Domingo consegue ter tantas camadas em “Sing Sing”, que, aliás, merecia estar na categoria principal. Também gosto do Sebastian Stan em “O Aprendiz”, mas nem na ficção o Donald Trump merece ganhar qualquer coisa. Se tivesse que votar somente em um, acho que escolho Brody.

ATRIZ — Minha favorita é a Fernanda Torres por “Ainda estou aqui” (OBS: eu vou ter que repetir isso constantemente, mas eu não sou pachequista. Ela é minha favorita porque a acho a melhor). Também seria bem legal se a Mikey Madison ganhasse por “Anora”. Gosto da Demi Moore em “A substância”, mas a vejo abaixo, inclusive, da Cynthia Erivo em “Wicked”. Já a Karla Sofia Gascón é um dos pontos fracos de “Emilia Perez” e, portanto, acho que não seria um prêmio justo.

DIRETOR — Aqui o meu favoritaço é o Sean Baker, de “Anora”. Em segundo lugar, mas bem atrás, o Brady Corbet por “O Brutalista”.

ATRIZ COADJUVANTE — Não vejo um trabalho que se sobressaia muito entre as cinco indicadas. Se eu tivesse que votar em uma, seria na que mais me surpreendeu, a Ariana Grande, em “Wicked”. E se tivesse que descartar uma, talvez seja a Isabela Rossellini, mas só mesmo por ser muito pouco tempo de tela, embora ela tenha uma cena fundamental em “Conclave”. Não acharia de todo ruim se ganhasse a Zoe Saldaña (“Emilia Perez”) ou a Felicity Jones (“O Brutalista”).

ATOR COADJUVANTE — Aqui eu tenho três favoritos: Kieran Culkin, Yura Borisov e Jeremy Strong. Curioso que tanto Culkin quanto Strong parecem estar fazendo variantes de seus personagens em “Succession” em “A verdadeira dor” e “O Aprendiz”, respectivamente. Gosto mundo de ambos e meu favoritaço é o Culkin. Mas ficaria bem feliz se o Borisov vencesse por “Anora”.

ROTEIRO ADAPTADO — Gosto de todos, mas acho que “Sing Sing” merece alguns prêmios para compensar a injustiça de não estar na categoria principal. No entanto, também ficaria satisfeito se “Um completo desconhecido” ou “Nickel Boys” vencessem.

ROTEIRO ORIGINAL — Também gosto de todos, mas se tem um que, para mim, é MESMO original no sentido de algo nunca ou, vá lá, raramente visto, é “A substância”. Gosto da forma como o filme aborda os problemas que as mulheres vivem na indústria do cinema a partir do seu roteiro. Minha medalha de prata vai para “Anora” e o bronze para “A verdadeira dor”.

FILME INTERNACIONAL — Se “Ainda estou aqui” é o meu favorito para filme, naturalmente é o meu favorito aqui. Mas se tudo der errado, que o prêmio vá para “A semente do fruto sagrado”, pois é outro filmaço da lista.

ANIMAÇÃO — Mais uma vez eu terei que lamentar que a melhor animação não irá ganhar. O hype está em torno de “Flow” e “O robô selvagem”, que são animações bonitas, mas a melhor mesmo é “Memórias de um caracol”.

DOCUMENTÁRIO — Dos quatro que vi, meu favorito é o desesperador “No Other Land”, mas tanto “Black Box Diaries” quanto “Soundtrack to a coup d´etat” mereciam o prêmio.

FOTOGRAFIA — Fico entre “Nosferatu” e “Duna: Parte 2”. Se for para votar em um, vamos de “Nosferatu”.

MONTAGEM — Aqui meus favoritos são “Conclave” e “Wicked”, com vantagem para o primeiro.

TRILHA SONORA — “Wicked” parece uma escolha meio óbvia aqui, mas eu realmente acho que a trilha sonora do “Conclave” funciona muito bem e dá toda uma personalidade ao filme.

FIGURINO — Vamos esquecer que “Gladiador 2” está aqui. Vamos esquece que este filme sequer existiu. Os quatro restantes são todos trabalhos muito bons. Só que para além da exuberância de “Wicked” e do rigor de “Nosferatu”, eu ficaria com o figurino de “Um completo desconhecido”.

DIREÇÃO DE ARTE — Cinco candidatos e uma escolha muito difícil. Vou ficar com “Wicked” nesta disputa com “Nosferatu”, “Conclave” e “Duna: parte 2” pelo lugar no meu coração.

CANÇÃO ORIGINAL — Nenhuma canção é muito marcante para mim. Ficarei cm “Like a Bird”, de “Sing Sing”.

EFEITOS VISUAIS — Vou ficar com “Duna: parte 2” porque este filme merece ser premiado. Mas “Wicked” seria o meu segundo favorito.

MAQUIAGEM E CABELO — Mais uma vez me vejo no dilema entre luz (“Wicked”) e sombra (“Nosferatu”). Ficarei com o filme de Robert Eggers, especialmente pelo visual do seu Nosferatu. “A substância” é o meu medalha de bronze.

SOM — Mais um prêmio em que escolho “Duna: parte 2” como o meu favorito.

Dito isso, assim ficaram distribuídos os meus carecas dourados:

3 carecas — “Ainda estou aqui”

2 carecas — “Wicked”, “Sing Sing”, “Conclave”, “Nosferatu” e “Duna: parte 2”

1 careca — “O Brutalista”, “Anora”, “A verdadeira dor”, “A substância”, “Memórias de um caracol”, “No Other land” e “Um completo desconhecido”.

Para finalizar, vamos ao ranking do Oscar:

1- “Ainda estou aqui”

2- “Anora”

3- “Sing Sing”

4- “A semente do fruto sagrado”

(Os filmes acima estão classificados para a Libertadores)

5- “Duna: parte 2”

6- “O Brutalista”

7- “Nickel Boys”

8- “Setembro 5”

9- “Um completo desconhecido”

10- “No Other Land”

11- “Trilha sonora para um golpe de estado”

12- “A verdadeira dor”

(Os filmes acima estão classificados para a Copa Sul-Americana)

13- “Allien: Romulus”

14- “Conclave”

15- O Aprendiz”

16- “Emilia Perez”

17- “Um homem diferente”

18- “A substância”

19- “Memórias de um caracol”

20- “Wicked”

21- “Better Man: A história de Robbie Williams”

22- “Black Box Diaries”

23- “Elton John — Never too late”

24- “Nosferatu”

25- “Planeta dos macacos: O Reinado”

26- “Divertida Mente 2”

27- “Flow”

28- “Maria Callas”

29- “O robô selvagem”

30- “Sugarcane”

(Os filmes abaixo foram rebaixados para a Série B)

31- “Batalhão 6888”

32- Wallace & Gromit: Avengança”

33- “Gladiador 2”

34- “A garota da agulha”

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Sete filmes e duas séries de fevereiro

Sing Sing merecia mais indicações no Oscar
Os filmes e as séries mais interessantes que eu vi em fevereiro:

Sing Sing (Sing Sing — EUA) — Filme bem emocionante sobre a recuperação de detentos de um presídio através da arte. Mais uma interpretação muito boa de Colman Domingo em um filme que merecia estar concorrendo na categoria principal do Oscar.

Setembro 5 (September 5 — ALE, EUA) — Há muito tempo que eu não via um filme bom sobre jornalismo (Não gente, “Spotlight” não é bom). Mostra a tensão, as chances de errar, o estresse de uma cobertura ao vivo de algo de grande magnitude e que até então não tinha qualquer precedente, o sequestro de atletas da delegação de Israel durante a Olimpíada de Munique em 1972.

No Other Land (No Other Land — PLE, NOR) — Documentário pesado sobre a destruição dos vilarejos de Masafer Yatta, na Cisjordânia, por parte do governo de Israel a partir do olhar de um ativista palestino e um jornalista israelense que se unem para documentar os abusos das autoridades de Israel. É de embrulhar o estômago.

Um completo desconhecido (A complete unknown — EUA) — Acho que o que me faz gostar mais do filme de James Mangold é a música de Bob Dylan enquadrada em imagens encenadas do que o filme em si. Mas como não amar este Bob Dylan que começa a sair do folk para fazer a revolução particular da sua música a plugar a sua guitarra?

O reformatório Nickel (Nickel Boys — EUA) — O que eu mais gosto do filme de RaMell Ross é a forma como ele é filmado. Mas sua história também é bem interessante e inspirada num terrível caso real.

Trilha sonora para um golpe de Estado (Soundtrack to a Coup d´Etat — BEL, FRA, NL) — Documentário bem interessante que mistura a Guerra Fria e o jazz para contar os bastidores do assassinato do líder congolês Patrice Lumumba que levou os músicos Abbey Lincolsn e Max Roach a invadirem a reunião do Conselho de Segurança da ONU para fazer um protesto.

Better Man: A história de Robbie Williams (Better Man — ING, EUA, CH, FRA, AUS) — Cinebiografia do ex-cantor do Take That que foi até certo ponto foi uma boa surpresa para mim. Ainda que em alguns momentos caia numa mesmice, o filme tem algumas boas ideias que me deixaram interessado até o fim.

Heróis desonestos do SAS (SAS Rogue Heroes — ING — BBC) — Esta série conta a história do insano batalhão inglês que operava atrás das linhas inimigas durante a Segunda Guerra Mundial. Batalhão este foi fundamental para que os nazistas não conquistassem a África e na tomada da Itália do governo fascista. Tem cada história tão louca que é difícil acreditar que foi real até o momento em que a série alterna imagens fictícias com gravações reais.

Seu amigão da vizinhança Homem-Aranha (Your Friendly Neighborhood Spider-Man — EUA, JAP — Disney Plus) — Essa animação devia ser o modelo do futuro da Marvel. Tem conexão com o Universo, mas tem vida própria. Os heróis coabitam o mundo, mas está cada um vivendo a sua vida, eventualmente se esbarrando, mas tudo dentro da sua realidade. E é uma história raiz do Homem-Aranha. Bela surpresa.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Capitão América e o sonho da Marvel de construir um admirável futuro novo

Desgaste natural do modelo, problemas na justiça com o ator que era a grande aposta de vilão da nova saga, saída de cena de atores que construíram personagens carismáticos e que conquistaram o público, aposta num modelo de multiverso que se revelou equivocada, uma pandemia… São inúmeros os problemas que fizeram o trem da Marvel Studios descarrilar. Depois de um ano de 2024 em que se pode considerar que a Marvel praticamente fez uma pausa para reorganizar a casa, havia uma expectativa baixa, mas alguma expectativa de que o novo filme do Capitão América seria um recomeço com algum frescor do Universo Cinematográfico do estúdio.

De fato, “Capitão América: Admirável Mundo Novo” (Captain America: Brave New World, no original) tem uma cara de fase 1 da Marvel. Aquela em que os heróis começaram a ser apresentados, lidaram com ameaças locais graves, mas em que também o terreno começava a ser preparado para o grande desafio futuro que viria pela frente. Contudo, há alguns problemas nisso tudo.

O primeiro é que não estamos mais na fase 1 e já se passaram 17 anos desde o primeiro filme do estúdio. Ou seja, o que o filme dirigido pelo até então pouco conhecido Julius Onah tenta fazer, no caso, emular uma subcamada de nostalgia daquele começo de saga em 2008 já não causa o mesmo impacto, pois aquilo não é mais novidade para fãs antigos, fãs de quadrinhos e fãs (se é que houve algum) chegados durante a pandemia. O segundo é que este já é o 35º filme da Marvel. O desgaste é evidente. A falta de criatividade é notória. E a Marvel tem um enorme peso de um longo passado de pontas soltas a resolver. Pelo menos neste filme ela tira um grande elefante da sala, a questão envolvendo o celestial no Oceano Índico do qual pouco se falou desde “Eternos” (2021). E resolve uma ponta que ninguém mais lembrava: por onde andava o Líder (Tim Blake Nelson) desde a sua aparição em “O Incrível Hulk” (2008).

Todavia, o maior problema de “Admirável Mundo Novo” é a falta de coragem de um roteiro e de um filme que passou por diversas refilmagens. O filme pega emprestado o nome de um clássico da literatura escrito por Aldous Huxley e lançado em 1932. No livro “Admirável Mundo Novo”, Huxley descreve uma sociedade distópica sobre a desumanização dos seres humanos em que de um lado existe uma civilização ultraestruturada e refém do progresso científico e do outro um grupo considerado “selvagem”, que simplesmente segue a ordem natural da sociedade antes que a ciência e a tecnologia tomassem conta da organização social.

O enredo tinha tudo para espelhar e refletir não a história de Huxley, mas trazer elementos do livro, mesmo ideias genéricas para debater o novo mundo em que os Estados Unidos são presididos pelo General Ross (Harrison Ford, que assume o personagem em substituição ao falecido William Hurt), a tecnologia é extremamente avançada, temos super-humanos por todos os lados e a humanidade ainda sofre com os efeitos da morte e posterior retorno à vida de metade do planeta.

Nada disso acontece. O admirável mundo novo do título se resume a uma frase de efeito de um programa jornalístico para dizer que agora o planeta não tem apenas o vibranium de Wakanda, mas descobriu que o celestial do Oceano Índico produziu adamantium. Sim, AQUELE adamantium que os fãs de X-Men conhecem muito bem.

Se o roteiro bastante expositivo e desinteressante não reflete nada, resta a história rasa do filme em si. Ela se resume basicamente a um projeto de vingança do Líder que Sam Wilson (Anthony Mackie) tentará resolver para impedir uma crise internacional e a injusta condenação de seu amigo Isaiah Bradley (Carl Lumbly) ao corredor da morte. Mesmo os dilemas de Sam são fugazes. Não há espaço para uma reflexão quando ele mais uma vez coloca em jogo o merecimento de usar o escudo de Steve Rodgers e assumir um manto que parece pesado demais para ele, um homem comum que não tem o soro do supersoldado correndo nas suas veias. Este dilema é mais uma vez resolvido de forma en passant após uma sessão de terapia com o seu colega Bucky Barnes (Sebastian Stan).

Se a trama do filme é pueril, pelo menos tem o mérito de colocar a Marvel com os pés de volta no chão. Saindo de tramas cósmicas e brigas com seres quase celestiais para os graves problemas do dia a dia do planeta.

Algumas cenas de luta do filme também são bem divertidas, mas é pouco. Muito pouco para um filme que almejava ser um recomeço da Marvel. O futuro do Universo ainda está longe de ser admirável. Vamos ver se o Quarteto Fantástico conseguirá resgatar a Marvel da irrelevância.

Nota 6,5/10.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

“Nickel Boys”: racismo, abusos e o terrível passado de um reformatório que funcionou até 2011 na Flórida

Nos anos 1960, Elwood (Ethan Herisse) era um jovem promissor, bom neto, educado, excelente aluno com um idealismo e senso de justiça e que acreditava na justiça social. Admirava o líder dos direitos civis Martin Luther King e sonhava em cursar uma faculdade. Com pouco mais de 15 anos, tinha todo um futuro pela frente. Ele só não contava em estar no lugar errado e na hora errada. Quando seguia a caminho da universidade em que sonhava fazer um curso, aceitou a carona de um homem na estrada. O carro era roubado. Por causa da cor da sua pele, Elwood foi visto pela polícia como culpado. Não teve direito a explicação, justiça, julgamento. Seu destino foi um só: ser encaminhado para um reformatório na Flórida. E ali começou a sua via-crucis que deixaria marcas para sempre em sua vida. Este é o enredo de “Nickel Boys”, um dos nove indicados ao Oscar de melhor filme deste ano.

Dirigido por RaMell Ross e adaptado do livro de mesmo nome do escritor Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer na categoria de Ficção em 2020, “Nickel Boys” é também baseado numa terrível e escabrosa história real. A história do reformatório Arthur G. Dozier, que funcionou por 111 anos na Flórida até o seu fechamento em 2011. Suas histórias de abusos físicos, psicológicos e sexuais e assassinatos remontam a 1903, mas somente há pouco mais de dez anos elas começaram a ser contadas, especialmente a partir da descoberta de sepulturas no local e os relatos de abuso de Jerry Cooper, que passou pela instituição em 1961, e cuja história serviu de livre inspiração para o livro de Whitehead. Entre tantos abusos que sofreu e presenciou, Cooper viu um jovem correr até morrer durante um treinamento de um time de futebol americano no local (A história real do reformatório pode ser lida neste link).

Para “Nickel Boys”, Whitehead e, consequentemente, Ross, mudou um pouco a história, trazendo um protagonista negro, acrescentando uma camada extra sobre a discussão do racismo. No entanto, o filme exibe com alguma fidelidade, mas sem uma exploração da violência gráfica, todos os principais abusos cometidos pela escola por parte de seus funcionários.

“Nickel Boys” é de embrulhar o estômago e fazer qualquer um perder a fé no sistema e na humanidade. O filme é muito feliz em exibir os contrastes da realidade estadunidense. De um lado, Luther King lutando pelos direitos civis dos negros nos grandes debates que são refletidos pela televisão, do outro a realidade invisível de um micro espaço na Flórida onde as violações de direitos humanos caminham lado a lado com a impunidade, mostrando que o caminho para um sonho de igualdade é muito mais duro e complexo do que o que chama a atenção e é exibido pela TV.

De um lado vemos a evolução humana a todo vapor, com direito a viagens para fora da órbita da Terra que, culminariam com o pouso do homem na Lua em 1969. Do outro, a barbárie com tons medievais acontecendo nesta mesma nação que voava para o espaço.

De um lado o sonho e uma dose de euforia, do outro, a falta de esperança e de fé que fazem Turner (Brandon Wilson) dizer para Elwood a frase que resume o pesadelo da escola Nickel: “Só há quatro formas de sair de Nickel: morrer, fugir, atingir a idade limite ou cumprir a pena”. Não há justiça, só resignação.

Um dos pontos mais interessantes do filme é sua perspectiva em primeira pessoa. A câmera se alterna entre Elwood e Turner e nós só vemos o que eles veem. Nós também só vivenciamos o que eles vivenciam e seus pontos de vista e olhares.

No início é estranho olhar pelos olhos de Elwood e Turner. Mas com o passar do tempo é possível se adaptar e esta perspectiva torna a narrativa mais angustiante pelo que não se vê, pois nunca temos a perspectiva do todo no cenário, o que normalmente temos em filmes.

Em resumo, “Nickel Boys” é um filme duro, mas dos mais interessantes que estão concorrendo ao Oscar deste ano.

Nota 7,5/10

domingo, 2 de fevereiro de 2025

“Um completo desconhecido”, quando Bob Dylan rompeu as fronteiras do folk

Há momentos na história da música que são divisores de água seja para um artista ou para um gênero. Para Bob Dylan este momento foi o uso da guitarra elétrica. Quando foi vaiado e cantou apenas três canções no encerramento do festival de folk de Newport, em 1965, Dylan ainda era um jovem artista com apenas quatro anos de carreira, mas já dava dois sinais naquele momento. O primeiro é de que se transformaria em um artista maior do que o gênero em que até então estava inserido. O segundo era o seu flerte com a guitarra elétrica e uma banda que já vinha sendo mostrado em “Bringing it all back home” (1965), seu quinto álbum de estúdio.

É este Bob Dylan em transição que vemos em “Um completo desconhecido” (A complete unknown, no original). Dirigido por James Mangold, de “Johnny and June” (2005), cinebiografia de Johnny Cash, que era amigo de Dylan, o filme conta exatamente os primeiros anos da carreira de Bob Dylan. Da sua chegada em Nova York, os romances de idas e vindas com Sylvie Russo (Elle Fanning) — o nome real da namorada de Dylan era na verdade Suzie Rotolo –, a relação conturbada com Joan Baez (Monica Barbaro), que deixou a cantora e ativista muito magoada e de coração partido como ela própria admite no documentário “Joan Baez I am a noise” (2023) e seu movimento do folk para um som mais associado ao rock and roll que estourava nos anos 1960 e conquistou Dylan.

Concentrar a sua cinebiografia num intervalo de cinco anos foi um acerto de Mangold. A base do filme é o livro “Dylan Goes Eletric” (2015), de Elijah Wald, que mostra a grande transição da carreira do cantor. Seria muito complexo cobrir em um filme uma carreira de 40 álbuns de estúdio de um cantor que segue em atividade mesmo aos 83 anos.

Ao fazer esta escolha, o filme concentra seus conflitos em um tópico pessoal e um profissional. No tópico pessoal, a relação que nunca se aprofunda, que é sempre distanciada com Sylvie e Joan. Como se quisesse retratar Dylan com aquela pecha do gênio incompreendido, e, portanto, solitário e isolado, que não consegue exatamente se relacionar com ninguém além da sua guitarra e sua música. Um dos pontos que exibem bem isso é justamente a festa pós-festival de Newport de 1965, quando estão todos celebrando o fim do festival ao som de “Subterranean Homesick Blues” enquanto a câmera vai até um Dylan sozinho, sentado num sofá e fumando, completamente alheio ao que havia acontecido horas antes.

O tópico profissional é sua relação com o folk e seus expoentes. A amizade com Pete Seeger (Um sempre ótimo Edward Norton), o cabo de força com os que circundam o tradicionalista grupo que organiza o festival de Newport, que deseja manter o status quo do folk e considera traidor quem decide plugar suas guitarras. Até se “eletrificar”, Dylan talvez fosse o seu maior aliado, pois suas canções eram fantásticas, histórias muito vívidas com melodias cativantes que elevariam o folk a um patamar inimaginável naqueles tempos.

A questão é que pouco tempo depois de Dylan ter surgido, os Beatles começaram a fazer uma revolução direto da Inglaterra. E na sequência vieram os Rolling Stones e assim começava a escalada do rock and roll ao topo do mundo. É claro que aquela música iria influenciar Dylan, um jovem de 23 anos, que tinha mais em comum com os jovens dos anos 1960 do que com os senhores que tentavam se agarrar ao folk para que ele não morresse. Talvez o momento em que melhor retrate este choque geracional seja a cena que mostra um Dylan feliz e gravando com uma banda no estúdio enquanto Seeger está gravando um melancólico programa educativo em que recebe um cantor de blues que o constrange bebendo e falando algumas frases, digamos, pouco educativas para as crianças. Quando Dylan chega no estúdio é quase como a passagem do tempo, a passagem de bastão, Seeger está eclipsado, Dylan conversa com o blues man, eles bebem e fazem um som improvisado tão vívido e sedutor que só resta a Seeger tentar acompanhar com o seu velho instrumento.

O único problema nestes conflitos que o filme mostra é que eles são sempre um tanto quanto pasteurizados, quase como se não quisesse ferir suscetibilidades. Na verdade, se podemos fazer uma crítica a “Um completo desconhecido” é que ela é uma cinebiografia correta demais, limpinha demais e que voa numa velocidade de cruzeiro perpassando os eventos com várias licenças poéticas — o episódio da vaia em Newport tem algumas incoerências — e tomando o cuidado para não machucar ninguém. E é difícil imaginar que o processo da mudança de rumo de Dylan e um certo rompimento com o folk tenha sido tão limpo quanto apenas um jovem pedindo passagem.

Mesmo seus dilemas com a fama retratados através de um jovem retraído perseguido por fãs e desejos para que ele interprete um papel dentro do folk que não deseja mais não se reverberam em choques reais dentro da história.

Esse filme correto e flat se retrata na própria interpretação de Timothée Chalamet. Seu Bob Dylan é incrível como uma imitação de Bob Dylan. Ele faz um belo cover e se esforça para ser o mais próximo possível do jovem Dylan. O ator é bem sucedido nisso, mas seu Dylan é o retrato do filme de Mangold. Correto, perfeito, seguindo todos os passos previamente determinados e sem muita alma.

A força mesmo de “Um completo desconhecido” está nas canções de Dylan. Os anos 1960 foram uma década muito prolífica para Dylan. Foi quando ele apareceu com músicas como “Blowin´ in the wind”“Girl from the North Country”“Masters of War”, “The Times they are A-changin”“Mr Tambourine Man” e “Like a Rolling Stone”. E como um jukebox o filme é daqueles imbatíveis. São as músicas que mostram o quão importante e fundamental Dylan é. São as letras que contam histórias que o fizeram, inclusive, romper a barreira do Nobel a ponto de ele ter sido laureado com o prêmio de Literatura em 2016.

Em resumo, “Um completo desconhecido” é como um delicioso sorvete de baunilha. Talvez o melhor sorvete de baunilha da sua vida, mas ainda um sorvete de baunilha.

Nota 8/10.