Phoenix brilhante no papel do Coringa |
Uma das frases mais reproduzidas
do filósofo Jean-Jacques Rousseau é a que diz que o homem nasce bom, mas a sociedade
o corrompe. A sociedade transforma o homem num individuo ruim porque, com o
desenvolvimento da civilização, os homens teriam se tornado gananciosos,
mesquinhos, avarentos e invejosos, estabelecendo uma desigualdade entre eles e
encerrando para sempre a naturalidade humana e, consequentemente, a sua
bondade. A ideia presente no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, de 1755, parece ser a base teórica na qual o diretor Todd
Phillips se inspirou para levar às telas a sua versão tão particular do
Coringa, arqui-inimigo do Batman e que agora ganha um filme solo que procura
explorar uma origem para um dos maiores vilões da história dos quadrinhos.
Parar criar a sua versão do vilão,
Todd renegou a história conhecida do personagem, ainda que o filme tenha até
mais conexões com o universo do Batman e da DC do que se esperava. O que interessa
ao diretor, que também escreveu o filme junto com Scott Silver é investigar uma
genealogia do mal por trás da mente psicótica de Arthur Fleck, o homem que se
transformaria num dos mais perversos, sádicos e cruéis criminosos dos
quadrinhos. Essa é a base de “Coringa” (“Joker”, no original).
Há um mérito neste estudo de
personagem feito pelo diretor, mas ele também esconde um problema envolvendo o
personagem que, queira ou não, tem uma mitologia de oito décadas e alguns filmes
construída desde a sua primeira aparição em uma história do Batman em 25 de abril
de 1940. Incomoda a tentativa de justificar a maldade do Coringa. O maior
problema, aliás, está nessa eterna busca nas duas horas de filme de um “por
que?”. Essa tentativa de explorar uma tese sob a lógica de Rousseau de que
todo homem nasce bom, mas o meio o deteriora. Ou, parafraseando um trecho de “Bacurau”,
mais recente filme de Kléber Mendonça Flho, todo mundo já teve uma mãe.
Funcionaria melhor se fosse um
estudo sobre um psicopata fictício qualquer. Mas ao colocar o selo do Coringa
no título, há todo um passado que o mostra como alguém que é a essência da
maldade e o mensageiro do caos. Que com sua risada sádica pratica o mal
simplesmente porque é o que lhe dá prazer. O Coringa não tem explicação. Ele é
o mal e o terrorismo em estado bruto. Ou se aproxima mais da máxima do inglês
Thomas Hobbes em “O Leviatã”, de 1651, de que o homem é essencialmente
mau.
Contudo, entre Rousseau e Hobbes,
o Coringa não ocupa nenhum destes espaços. Ele é o que é com os buracos de ser
uma criação. Afinal, ele não é humano e sim um personagem de quadrinhos. E também
foi construído sem ter o sentido de humanidade. Até pela loucura causada pelo
que se entende ser a sua origem mais conhecida, a queda em um tanque de
produtos químicos que o desfigurou e o tornou insano.
Ao longo das décadas após a sua criação, o Coringa
foi incorporando ainda mais esse sentimento de falta de humanidade, horror,
terrorismo e mensageiro do caos no seu estado mais bruto. Ele é um psicopata que
tem uma mente naturalmente doentia e que tem prazer em fazer o mal. Daí a sua
risada sádica e apavorante, que tão bem foi construída pelo ator Joaquin
Phoenix. Tanto que nos quadrinhos é quem comete alguns dos crimes mais terríveis
no universo do Batman, como a morte de Jason Todd, o segundo Robin, e a
paraplegia de Barbara Gordon.
Phillips tenta pintar o Coringa
como fruto de uma sociedade doentia. Na vida particular, ele tem uma mãe doente
que já fora internada no Asilo Arkham, o mesmo asilo onde o Coringa é um
morador constante. Que trabalhara para Thomas Wayne, pai do jovem Bruce. Ele
próprio já fora internado no Arkham por motivos que o filme não revela. Arthur
frequenta uma psicóloga, toma sete remédios diferentes, tem distúrbios
neurológicos e ainda apanha da vida em uma Gotham City que é puro caos e
desordem. Nesse ponto, aliás, o filme faz uma ponte bem interessante com a
série “Gotham” (2014-), que procura contar a história da cidade justamente
neste momento em que Bruce é uma criança, não há Batman e Jim Gordon ainda é um
policial.
Estamos, portanto, numa época em que a cidade
não tinha o Batman, era infestada de ratos e a criminalidade era galopante e a
luz do dia. Arthur aqui é pintado como uma vítima desse caos. Sofre bullying
dos colegas, apanha na rua, é humilhado constantemente,
não é amado e é frequentemente rejeitado por todos. Phillips tenta dizer que
este homem vai explodir a qualquer momento. E nós sabemos disso, pois sabemos
quem ele é e no que irá se tornar. E deixa implícito que se a sociedade não cuida
de homens como este, eles irão explodir. Toda essa tentativa de justificá-lo é uma visão um pouco equivocada do Coringa.
Acontece que o personagem em sua
essência não é vítima. É e sempre foi um vetor do caos. É disseminador da
desordem. É o próprio condutor do terror. É no terço final do filme, quando
Phoenix já está devidamente transformado neste personagem, que o Coringa é
brilhante.
Num momento em que o mundo vê a
ascensão perigosa da extrema-direita em diferentes países, o Coringa virou a
personificação do fascismo. Ele é o símbolo de uma Gotham cansada de desmandos
e da mentira dos políticos, da corrupção dos policiais, da violência. E surge
como o símbolo de mudança pela força desejada por um povo que está cegamente em
busca de uma solução rápida para os seus problemas.
Está não é a primeira vez que o
personagem é usado para refletir sobre um estado doentio do mundo. O Coringa de Heath
Ledger era um terrorista e foi construído na esteira de uma série de atentados
que aconteceram anos antes do filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008).
Do 11 de setembro de 2001, quando foram derrubadas as torres gêmeas do World
Trade Center, passando por atentados em Madri (2004) e Londres (2005).
Mas ali, e aqui temos outro problema
deste filme, o Coringa era o antagonista. Aqui, não há Batman. Ou qualquer outro contraponto.
Bruce Wayne é apenas uma criança e sequer há o comissário Gordon para ser o
herói de um filme dominado e domado por um vilão. Há um certo buraco neste
ponto que vemos também no filme do “Venom” (2018). A diferença, porém, está na execução.
No “Venom” há uma ridícula tentativa de transformá-lo num herói. Em “Coringa”,
pelo menos, o personagem está longe de ser um herói. Porém, não há quem o
combata, quem apareça com um discurso de que isto que está acontecendo não é
correto e expondo os motivos. De fato, o “Coringa” é um voo solo do pensamento
anárquico e explosivo de alguém que se sente uma vítima do sistema. E não há quem
o defronte.
Com isso, “Coringa” se segura em dois
pontos. O primeiro está no fato de ser brilhantemente dirigido. Há uma boa dose
de cenas belíssimas, assim como a caracterização dessa Gotham City mergulhada
no caos também merece ser elogiada.
O segundo e mais importante ponto
é a atuação magnética de seu ator principal. Phoenix é o filme. O seu
trabalho para construir o personagem envolveu a perda de 25 kg, o
desenvolvimento de feições que evocam uma tristeza e uma maldade assustadoras e
de uma risada perturbadora. Ele caminha como uma leveza assustadora no filme
enquanto vai se transformando de Arthur em Coringa. Ao mesmo tempo que exibe uma brutalidade crua quando precisa. Suas cenas de dança, seu
sorriso desalinhado... tudo evoca o psicopata que o Coringa é. Ele só perde a
força justamente quando tenta se justificar. E o discurso no show de Murray
(Robert de Niro) é tão ruim que não faz sentido depois de tudo o que ele fez
com a mãe, com o ex-colega de trabalho e dias antes no metrô.
Isso porque o diretor é obsessivo
por esse “por que?”. Por que Arthur Fleck transformou-se no Coringa? Essa é a
teoria dele. Quando, insisto, o Coringa é o que é porque ele é pura maldade e
caos sem justificativas.
A preparação de Phoenix para fazer
o personagem não envolveu qualquer mergulho no trabalho original ou mesmo nos
filmes em que o personagem foi interpretado por Heath Ledger ou Jack Nicholson, que o
interpretou em “Batman” (1989).
- A maneira como ele se move. Há
momentos em que dança tão levemente que parece surgir da tristeza do mundo em
que vive. É por isso que fui inspirado por Ray Bolger, o espantalho de “O
Mágico de Oz” (1939). Adoro o fato de seu personagem brilhar através da dança,
música, notas e solfejos. Meu Coringa tem alguns movimentos mecânicos, uma
maneira de gesticular e mover a cabeça que denota uma arrogância silenciosa.
Muitas vezes combinei dança moderna e música disco: a beleza do Coringa é que é
realmente imprevisível. Eu não fui inspirado por nenhum outro Coringa. Mas
lembro-me muito bem de Jack Nicholson no Batman de Tim Burton. E o excelente Heath
Ledger. Mas eu preferi me preparar sem me referir a nenhum trabalho anterior,
nem mesmo quadrinhos ou séries de TV. Eu queria criar o meu Coringa, que foi
uma invenção da minha imaginação. Ou da minha loucura. Não é um filme sobre os
super-heróis habituais, bandidos e humanos com poderes especiais. Para mim, gostam
dos personagens inspirados nos quadrinhos porque têm problemas reais, o mesmo
que nós. O Coringa é apenas isso. Um de nós. Ele não tem pai, ele não tem
amigos, ele está ansioso e deprimido. O Coringa sofreu trauma e também foi
abusado quando criança... Pobre homem... Ele tem todos os problemas deste mundo.
Não foi agradável nem fácil entrar na cabeça dele, mas estou orgulhoso de conhecê-lo
– disse Phoenix em entrevista à imprensa, ao falar sobre o seu papel.
Percebe-se, portanto, a tentativa no mínimo complicada de humanizar o personagem. Ainda que seja fantástico, diria até soberbo, o
trabalho de Phoenix, não apenas pela forma como ele entrou fisicamente, mas
também na psicologia do personagem.
Esquecendo os problemas/defeitos/contradições,
“Coringa” chega até a ser um bom filme. Falha sim como ensaio sobre a
genealogia do mal, mas compensa no trabalho de Phoenix. Ele é a razão da existência do filme. E tem seus melhores momentos quando sai da tentativa de justificar
e emula o legado de Ledger. Ali é quando eu fiquei mais interessado em ver um
embate com o futuro Batman de Robert Pattinson.
Phoenix
nos entregou uma versão muito boa do Coringa. O que lhe falta, porém, é o
freio, o elemento que antagonize o seu discurso. Falta-lhe o Batman, pois o
Coringa nunca existiu sem o seu adversário. E vice-versa. E é neste ponto
que a construção de Ledger leva vantagem. O Coringa de Ledger tem mais força e um propósito maior, tem um rival e não é um pobre coitado que se desviou porque a vida não lhe sorriu. É claro que ele se passa em outro momento histórico. Mas sua atuação é
tão marcante que há pelo menos duas referências ao seu personagem no filme de
Phillips.
As questões que ficam agora é: que
papel terá este Coringa no universo cinematográfico da DC? O veremos já no novo
Batman previsto para 2021? Ele terá um papel maior como vilão dos heróis da
Liga da Justiça? Ou tudo se resumirá a este filme. Seria triste, porém, se esta
última opção fosse a escolhida. O Coringa de Phoenix tem espaço para brilhar até
melhor nas telas quando encontrar um adversário para ele.
Cotação da Corneta:
nota 8.
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