Banderas como o alter-ego de Almodóvar |
Pedro Almodóvar tem uma frase em
que diz que “a sala de cinema é o refúgio dos assassinos e dos solitários”. É
difícil ter certezas sobre alguém que não se conhece pessoalmente, mas o
Almodóvar diretor é um pouco de ambos. Pelo menos figurativamente falando no caso da expressão "assassino".
“Dor e Glória” (Dolor y gloria, no original), seu novo filme é apenas uma
reafirmação desta condição do cinema de Almodóvar. O diretor espanhol faz de boa parte da sua filmografia uma sessão de terapia em que tenta lidar com o passado, exorcizando seus fantasmas ao mesmo tempo em que exibe na tela a solidão de um
alter-ego que, em contraste, vive numa casa que por si só parece cheia de vida
e cores. As tão características cores do cinema de Almodóvar, que, como sempre, abusa dos tons vermelhos e das cores vibrantes tornando cada cenário numa obra de
arte.
E como Almodóvar precisava voltar a lidar com seus
fantasmas. Depois da fraca comédia “Os Amantes passageiros” (2013) e de um
“Julieta” que dividiu opiniões, o que se vê em “Dor e Glória” pode não ser um
Almodóvar na forma exuberante de “Fale com Ela” (2002), “Má Educação” (2004) ou
“Volver” (2006), mas é um Almodóvar que volta a discutir os temas que permeiam
o seu cinema: as dores da alma, a relação com a mãe, a influência da educação
religiosa, a homossexualidade e a descoberta da mesma, os amores que vêm e vão e as decepções e marcas que daí
surgem e os desencontros da vida. O cinema de Almodóvar é sobre as pessoas, é sobre os conflitos da alma, sobre o que deve ser dito para o outro e as oportunidades que se perde por não falar e não se permitir sentir. É, portanto, uma investigação da alma humana e suas sutilezas conduzidas pela leveza da câmera em contraste com os temas complexos a que ele se propõe debater.
Em “Dor e Glória” o texto de Almodóvar é claro e
direto. Aos 69 anos, ele busca reavaliar a relação com a mãe e quando expõe a
dicotomia entre a homenagem e a exposição dela e das pessoas que o cercaram
como fonte de inspiração para seus personagens. É curioso como no filme a mãe
diz detestar a maneira como ela e as amigas do seu povoado são retratadas no cinema do
personagem principal, enquanto ele afirma que cada linha, cada película é uma
homenagem a quem o transformou em quem ele é.
Em entrevistas, Almodóvar disse que "Dor e Glória" é um filme que o representa mais intimamente, ainda que determinadas situações sofridas pelo seu protagonista, como o uso de drogas e as dores terríveis não sejam verdadeiras, mas apenas licença poética com fins dramatúrgicos.
"Não é a minha biografia, mas sim o filme que mais me representa intimamente", disse o diretor, garantindo não esta tão fisicamente mal quanto o protagonista e nunca ter usado drogas como o mesmo.
Para viver este Almodóvar "piorado" temos um António Banderas
que não víamos desde “A pele que hábito” (2011), uma de suas últimas grandes
atuações, justamente num filme do cineasta espanhol. Na pele do também diretor e roteirista Salvador
Mallo, Banderas retrata muito bem o alter-ego de Almodóvar. Envelhecido, cheio
de dores físicas e da alma, com relações estremecidas ou perdidas por décadas
com diferentes personagens que passaram pela sua vida e um iniciante problema
com drogas, Banderas entrega uma de suas
melhores atuações emulando a alma do diretor. O ator espanhol parece ter
conseguido captar perfeitamente uma persona de Almodóvar com seus silêncios,
olhares cansados e hesitação na fala.
Ao mesmo tempo, Mallo quer se reerguer, voltar à
ribalta do cinema. E a inspiração vem justamente do material farto que é a sua
vida. E é o que Almodóvar faz. Usando os exemplos do que viveu, ele busca se
conectar com seu público, que também vive angústias e desejos semelhantes.
Afinal, viver, tal qual o título do seu filme, é uma experiência frequente de
dor e glória.
O filme ainda conta com a participação de Penélope
Cruz, que ajuda a contar histórias de um Salvador jovem que também são as de um
Almodóvar jovem. Ali vemos o que já nos acostumamos a ver em diferentes
passagens de filmes do diretor. A infância economicamente difícil, o estudo no colégio de
padres e a vida pela arte que o resgatou daqueles momentos de pobreza.
Extremamente metalinguístico e cheio de acertos de
contas com o passado, talvez “Dor e Glória” só peque por ser excessivamente e
tão claramente autobiográfico, o que torna a experiência de ver o filme com uma
sensação de déjà vu e sem um frescor de novidade que o acompanhe. É mais sessão
de terapia do que cinema e tem um texto mais confessional e menos criativo em
comparação com o que nos acostumamos a ver na filmografia do diretor.
Mas isso é um ponto de vista absolutamente pessoal. E não faz com que a experiência do filme seja
ruim. Longe disso. “Dor e Glória” tem o seu valor e tem um Antonio Banderas
simplesmente imperdível. A assinatura de Almodóvar também é garantia de prazer
para seus fãs, que não se sentirão decepcionados. Mas não acredito que seja um tipo de filme
que geraria novos fãs para o diretor.
No balanço final, “Dor e Glória” é como reencontrar
um velho amigo de quem se admira pela delicadeza, inteligência, perspicácia e até imperfeições. E um Almodóvar imperfeito ainda é um Almodóvar acima da média.
Cotação da Corneta: nota 7,5.
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