A mão, o ponto de partida de tudo |
Há anos Jean-Luc Godard vem reduzindo seu cinema
para camadas cada vez mais simbólicas e minimalistas. Se nas décadas de 70 e
80, seus trabalhos já chamavam a atenção por uma “ausência de roteiro”, o que
na verdade era um texto com linhas gerais que jogavam para o improviso em cena,
nas décadas seguintes até o trabalho dos atores passou a ser reduzido ao
mínimo.
Seus filmes hoje são como colagens da história e
reflexões sobre os assuntos aos quais ele têm mais interesse: a história e o
cinema. E o paralelismo que uma tem com o outro.
Mais novo trabalho do prolífico diretor, “O livro
da imagem” é o ápice do seu cinema de simbolismos e colagens. Não há atores. No
máximo a voz cavernosa de Godard, hoje com 88, narrando o filme é fazendo
reflexões sobre o século XX, o novo século, a humanidade, a sociedade, e,
claro, o cinema.
Para Godard, o cinema é o livro de imagens do
século XX. Da mesma forma que a Bíblia, o Corão e outros textos religiosos são
as bases para a vida em sociedade e contam a história dentro de suas
respectivas religiões, o cinema é a documentação da história da modernidade e
da contemporaneidade.
Através do “Livro da imagem”, Godard nos convida a
refletir sobre a história. E constrói uma jornada pelo século XX numa colagem
incessante de imagens e sons que perpassam a história da arte nas suas mais
diferentes formas. Tudo dividido em cinco atos, como cinco são os dedos das
mãos, como cinco são os sentidos. Cinco é um número que perpassa todo o filme, assim como a metáfora em torno das mãos e seus significados simbólicos em cada atitude.
É através desta metáfora das mãos que Godard chama a
atenção para uma história construída pelos signos da linguagem corporal. São as
mãos usadas para o amor, mas que também trazem decepção no primeiro ato, as
mãos usadas para a violência do segundo ato ou as mãos que legitimam o uso da
força pelo espírito das leis do quarto ato.
A primeira parte do filme é um conjunto de
reflexões do que Godard já havia de certa forma falado em outros trabalhos como
“Film Socialism” (2010) ou “Para sempre Mozart” (1996).
A última parte é que traz um Godard com um olhar
sobre o Oriente Médio raras vezes, ou talvez até nunca, mostrado com tanta profundidade. A partir de um
jogo de palavras em que afirma que “Sheherazade teria contado uma história
diferente em 1001 dias”, e não noites como a tradicional história, Godard exibe
a falência do olhar do ocidente sobre o oriente.
Para ele, vemos o oriente como uma massa cultural
única, e não como se cada país tivesse a sua própria cultura e visão de mundo.
Da mesma forma que olhamos para o oriente como o espelho do que não somos. E
isso vai se refletindo na forma como o cinema retrata o oriente. É quando
surgem as mãos em movimentos delicados, pintadas com símbolos que não
compreendemos ou segurando com força o Corão em sua reza.
Num momento mais polêmico, Godard apoia a bomba. Apela ao lado positivo da bomba. A
bomba, ele vê, é a revolução como a que já ocorreu em outros tempos na Europa.
É a reação do oprimido. É complicado apoiar isso em tempos em que a Europa
sofre tanto com ataques terroristas. Mas é possível entender o lado de Godard
ao tentar mostrar isso como reação e não como ação. Daí o paralelo com
movimentos revolucionários.
Godard é um gênio. Muitas vezes incompreendido,
muitas vezes visto como chato e de difícil entendimento. Mas seu cinema
permanece vivo, instigante e prazeroso para os que aceitam o desafio de tentar
decifrá-lo a cada trabalho.
Cotação da Corneta: nota 7,5.
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