Martinha, Gigi e
Carol eram amigas inseparáveis. Tão amigas que as duas últimas já estavam
acostumadas com as esquisitices de Martinha e nem ficavam mais chocadas.
Gigi costumava
dizer que Martinha era aquariana. Logo, gostava de causar, de ser diferentona e
sempre ficar fora da casinha do senso comum. Fora isso, Martinha era uma pessoa
afável e parceira para todas as horas. Por isso, elas eram muito unidas há 15
anos, desde que se conheceram no primeiro período da faculdade de economia.
Mas naquela tarde, Martinha
passou um pouco do limite. Tudo começou num piquenique que as amigas
organizaram no Parque Lage. Uma mera desculpa para jogarem conversa fora,
falarem trivialidades e saírem um pouco da rotina dos swaps reversos e CDBs do
dia a dia pesado nas instituições em que trabalhavam.
- Fiz um brownie
que, modéstia à parte, está excelente. Aproveitando que essa é uma ocasião
especial, usei chocolate Lindt e ficou um espetáculo - propagandeou Carol, a
mais talentosa das três quando o assunto era cozinhar.
- E quem garante que ele ficou excelente mesmo? Há uma opinião isenta para
comprovar? - provocou Martinha, apenas sendo Martinha.
- O Júlio provou - devolveu Carol.
- Namorado não conta. Homem apaixonado é mais burro que um protozoário -
devolveu Gigi.
Mas Gigi e Martinha
tiveram que dar o braço a torcer. O brownie realmente era de outro mundo.
Além da economia, o
chocolate era um ponto de interseção daquele trio inseparável. Tanto que o
grupo de WhatsApp delas era chamado de "Rainhas do Cacau".
- Não tem nada no
mundo melhor que chocolate. Maior invenção do homem - disse Gigi.
- Ao lado do avião, que te proporciona ir para outros lugares do mundo...
- ... Para comer chocolate! - disse Carol, completando a frase de Martinha, já
dando gargalhadas.
Carol, então,
resolveu manter o assunto na crista da onda perguntando às amigas qual era o
chocolate favorito delas. Disse que ela gostava da barra Lindt de caramelo.
"Derrete na boca e é quase um orgasmo", comparou.
Mais exótica do
trio, Gigi citou um chocolate com açafrão que ela disse ter experimentado numa
viagem ao Irã pelo Banco Mundial. Ela garantiu ser o paraíso na terra.
"Era maravilhoso. Nunca senti nada tão diferente na boca", dizia.
- Eu gosto de Sonho
de Valsa - afirmou Martinha, seca e cortante como uma navalha.
O silêncio tomou
conta das duas amigas.
- Que foi, gente?
Eu adoro Sonho de Valsa. É delicioso!
- Você não pode estar falando sério, Marta Regina! - retrucou Gigi.
- Ela só quer ser polêmica no piquenique - disse Carol.
- Estou falando sério. Eu amo Sonho de Valsa. Tem coisa mais gostosa do que
sentir aquele chocolate, ouvir o estalo daquele wafer e mergulhar profundamente
naquele creme de castanha de caju? Sonho de Valsa é tudo. Sonho de Valsa é
mara.
As amigas não
conseguiam acreditar. Não é possível que alguém pudesse gostar daquela classe
de bombons redondos a R$ 1 da Loja Americana formada pelos famigerados Sonho de
Valsa, Serenata de Amor e Ouro Branco.
- Na minha caixa de
bombom, o Sonho de Valsa é sempre o último a ser comido. E fica sempre com o
azarado que chegou atrasado - disse Carol.
- Certa vez, num Natal da família, Tio Rubens comprou uma caixa de bombom
"porque Jesus Cristo também gostava de adoçar a vida". Éramos 15
reunidos na casa dele. Cada um pegou um bombom da caixa. Quando Marcos, o
namorado de Tio Rubens, percebeu que sobrou o Sonho de Valsa para ele, fez uma
cara de decepção, virou e disse: "Estou de dieta" - contou Gigi.
- Seria a minha primeira opção - garantiu Martinha.
Era inconcebível
para Gigi e Carol que o Sonho de Valsa fosse o chocolate preferido de alguém.
Tinham mentes brilhantes. Explicavam a teoria da relatividade como quem faz um
pão na chapa. Mas elas não entendiam a equação Sonho de Valsa + Martinha =
amor.
- Vocês não sabem o
prazer que é comer um Sonho de Valsa aos poucos. Dando mordidinhas no
chocolates até surgir divinamente aquela massa bege de creme de castanha de
caju pronta para receber você. A melhor forma de comer Sonho de Valsa é
dissecando-o - garantiu Martinha.
- Para, Marta! Sai desse corpo que não te pertence! Nos últimos anos houve uma
abertura dos portos do cacau, nos trazendo o melhor do mundo. Não precisamos
mais destes trágicos espécimes nativos. Agora temos até Kit Kat sendo vendido
no sinal de trânsito! - irritou-se, Carol.
- Nem ligo. Mas se fosse Sonho de Valsa eu levava a caixa.
- Hahahaha, gente. Eu sabia que a Marta gostava de uma polêmica. Mas essa
história supera todas. Até aquele sonho que ela teve com um travesti - disse
Gigi.
- Quando eu casar, quero que a minha noite de núpcias seja numa cama de Sonhos
de Valsa.
- Iiiirc!! - indignou-se Carol.
- Aliás, quem precisa de marido quando se tem Sonho de Valsa? Eu casaria com
um.
No fim das contas,
Martinha era sempre garantia de que o papo renderia. A tarde acabou sendo
divertida pela polêmica do Sonho de Valsa, que entraria para a história das
amigas como "a última da Martinha". Ela ainda ganhou o apelido
interno de Creminho de Caju.
Quando foi embora,
Martinha ainda tentou comprar um Sonho de Valsa na padaria. "Bateu desejo
depois desse papo", disse ela. Mas sua procura foi frustrada. Só tinha
Diamante Negro e Chokito.
Quando chegou em
casa, Carol encontrou Júlio estatelado no sofá vendo "House of Cards"
no Netflix e comendo uma caixa de bombom. Júlio perguntou se ela queria começar
com ele a quarta temporada, mas Carol declinou. "Vou tomar um banho. Estou
cansada".
- Ainda tem bombom
aí? - ela perguntou.
- Sim, sobrou um. Pode pegar. Quero mais não.
Carol pegou a
caixa, abriu e deparou-se com um... Sonho de Valsa. Olhou para ele
demoradamente, foi até o quarto e fechou a porta. Mais uma vez fitou aquele
bombonzinho redondo em uma embalagem rosa e preta. Abriu e comeu. Comeu
discretamente, quase sem fazer barulho, em um esforço louvável para não ser
notada pelo universo.
Amava Sonho de
Valsa. Mas não admitia isso nem para as amigas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário