Ninguém conhecia o mar como Billy
Duncan. O velho marinheiro tinha o oceano como a sua verdadeira casa. Afinal,
passava meses viajando pela vastidão das águas até onde os mapas registravam e
muitas vezes além. Toda vez que voltava de suas expedições, Billy tinha
muitas histórias a contar. E ele descrevia as aventuras com riqueza de detalhes
e provocava um fascínio generalizado. Eram histórias fantásticas. Difíceis de
acreditar para os adultos. Mágicas para as crianças.
Toda vez que Billy desembarcava no
porto de Southampton era cercado por crianças. Elas não se incomodavam
com sua aparência asquerosa, a barba espessa e fedendo a uma mistura de sal e
peixe podre. Nem reparavam na sua jaqueta azul meio rasgada pelo tempo de uso e
as intempéries do mar.
- Billy! Billy! Quantas baleias você
matou?
- Billy! Você conheceu selvagens?
Eles existem mesmo? - gritavam as crianças que se aglomeravam no porto à espera
de Billy.
- Depois, garotos. Deixem-me primeiro
tomar o meu conhaque na taverna do velho John, o manco - respondeu o marujo com
a voz rascante que o tabaco lhe deu.
Billy era o capitão do principal
baleeiro da região. Por vezes, saia em jornadas longas pela vastidão do oceano
a procura destes animais que podiam ser dóceis ou perigosos. Nunca se sabe como
uma baleia pode se comportar. Mas elas poderiam ser bem mais agressivas quando
sentiam o cheiro do baleeiro Fitzgerald III se aproximando.
Na Inglaterra do início século XIX,
era o óleo de baleia que impedia as cidades de mergulharem na escuridão quando
a noite caia. Por isso, os homens desbravavam os mares em busca dos animais.
Era uma questão de sobrevivência. E Billy era um dos melhores no seu ofício.
O mar não o desgastava. Era o sol no
rosto que o deixava com um aspecto ainda mais envelhecido. Billy tinha 40 anos,
mas parecia ter quase 60. Foi casado até os 35, mas a morte de Mary
Duncan-Robinson de tuberculose com apenas 30 anos o deixou viúvo muito cedo.
Nunca mais teve outra mulher. Casou-se com o mar.
Logo que entrou na taverna, Billy foi
saudado por John, o manco.
- Ora, vejam se não é o bom e velho
Billy Duncan. Eu sabia que você vinha desde que os navios desembarcaram no
porto quando senti o fedor de peixe que o cerca. Como vai, Billy? - recebeu-o
John, que andava com dificuldades em direção ao capitão do Fitzgerald III.
- Pior do que ontem. Melhor do que
amanhã - respondeu o marinheiro, já sentando em sua tradicional mesa ao fundo
do estabelecimento.
John já se dirigia em direção a Billy
pronto para ouvir as suas histórias com a garrafa de conhaque. O dono da taverna mancava, pois fora esfaqueado numa briga há dez anos. O corte atingiu um nervo,
enfim algo vital, e John nunca mais andou direito. Billy foi quem salvou a vida
do dono da taverna e os dois ficaram amigos desde então.
- Aparentemente nada mudou desde a
minha última vinda nesta espelunca, John.
- Você está enganado, Billy. Temos um
forasteiro na área. Um alemão. Desembarcou há dois dias no trem de 15h23m na
estação.
- E o que um porco teutônico quer
aqui em Southampton? - questionou o marinheiro, que não gostava de
alemães.
John, o manco, ajeitou o corpo na
cadeira, abriu um sorriso debochado e disse:
- Falar com você.
Billy ficou surpreso. Não tinha nada
a conversar com aquele alemão. Ou qualquer alemão. Nunca haviam entendido o
motivo pelo qual ele não gostava de alemães, mas era no mínimo ousado um deles
atravessar a Europa, singrar o Canal da Mancha e tomar um trem de Londres a
Southampton só para falar com ele. Resolveu ouvir o que a figura germânica
tinha a dizer.
- Ele está aqui?
- Sim, é aquele filhote de leite de
cabra sentado ali no canto lendo o “Times de Southampton”.
- Chame-o aqui. Se ele quer falar
comigo, que venha até mim. Não moverei um músculo para me dirigir a um
alemão.
John virou-se para o alemão e gritou chamando-o. Disse para ele se sentar na cadeira em que estava, pois voltaria ao
trabalho.
O alemão obedeceu. Sentou-se e olhou
para Billy. O marinheiro o encarava sem nada dizer. Foram poucos segundos
assim, mas pareceu uma eternidade para o jovem. Ele se comportava como se
estivesse diante de uma figura mitológica.
- Qual é o seu nome, garoto?
- Walter, senhor.
- Só Walter? Você não tem
família?
- Walter Benjamin, senhor.
- Regra número 1 para você continuar
conversando comigo. Eu não sou um "senhor". Senhor está no céu, um
lugar para onde eu não vou, pois sou um assassino.
A palavra assassino deixou o jovem
Walter mais branco que o topo das montanhas de Munique. Walter tremia.
- Eu mato baleias. Mas você deve
saber disso se veio me procurar. Bom, regra número 2: eu só aceito falar com
gente como você com muito álcool na mesa. Logo, pague-me mais uma garrafa de
conhaque.
- Sim, senhor. Quer dizer, sim, é
claro - respondeu o alemão, atendendo ao pedido.
- O que você quer de mim? Se veio de
tão longe, não foi para olhar para mim com essa cara de quem viu um
fantasma.
- De fato eu vim em busca de uma inspiração.
Conversava com camponeses do interior. Mas quando me aproximei de Southampton
conheci a sua história e queria ouvir mais do próprio.
- Eu não tenho histórias, garoto. Eu
só trabalho - interrompeu Billy.
- Mas suas aventuras ecoam por toda a
cidade. Seria incrível conhecer algumas delas.
- E para que você quer saber o que eu
faço no mar?
- Eu busco inspiração para um romance
que estou querendo escrever.
Billy riu. Gargalhou debochadamente
para ser mais preciso. Escritores ou pseudo-escritores não eram bem vistos por
ele. Billy costumava dizer que não confia em homens que têm a mão macia. Era um
sinal para ele de homens fracos, que não trabalham. Homens afeminados que não
mereciam nada além do desprezo ou uma boa surra.
Walter obviamente tinha mãos macias.
Nunca fizera trabalhos forçados. Mas estava determinado a escutar a narrativa
de Billy. Sabia que tinha ouro diante dele. Ouro para um romance épico que se
passasse no mar. Precisava apenas dobrar o capitão.
Mas Billy estava reticente. Nunca
gostou de alemães. Imagina alemães de mãos macias. Estava quase encerrando a
conversa quando Walter lhe ofereceu um pagamento em troca. Três xelins por hora
de conversa. E mais a bebida. A melhor da taverna de John.
Billy não quis conversa. Levantou-se
da mesa, pediu desculpas a Walter, mas não contaria nada ao alemão
afeminado.
- Minha história eu já compartilho
com o mar.
Não era verdade. As crianças sabiam
disso. Assim com John, o manco. Depois que Billy deixou a taverna, Walter foi
conversar com John. Tentar uma ajuda pelo amigo de Billy. Precisava ouvir a
história do homem que caçava baleias.
John tentou fazer com que Walter
desistisse de sua empreitada e voltasse para a Alemanha. Billy não falaria.
Havia se tornado ainda mais introspectivo desde a morte da esposa. Ele só se
abria com as crianças. E Walter não aparentava nem um pouco ser uma
delas.
Walter, então, retornou para a
hospedaria onde estava há três dias. Antes de deitar-se acendeu o lampião.
Ficou ali, diante da mesa contemplando as suas anotações. Olhou para a chama
que queimava graças ao óleo de baleia que Billy trazia sempre que desbravava o
mar.
Nada daria certo. Nada faria sentido
nessa história sem o depoimento dele, pensou. E foi dormir com essas palavras
ecoando na sua cabeça.
No dia seguinte, o tempo estava
nublado em Southampton. Como de costume, Billy foi até a taverna beber. Eram
assim os seus dias entre uma estadia e outra no mar.
Desta vez, porém, deu atenção as
crianças antes de entrar na taverna. De longe, Walter observava um Billy tão
simpático com as crianças. Nem parecia o marujo carrancudo e intimidador que
conversara com ele.
O capitão não reparou que estava
sendo observado. Estava perdido no seu mundo paralelo, na sua vida que acontece
sem muitas emoções longe do barco.
Depois de dar algumas moedas a um
pobre mendigo que estava jogado na rua, Billy entrou na taverna. Cumprimentou
John e sentou na mesma mesa que senta há 18 anos. Comeu um pão, pediu o
ensopado da casa e degustou mais um copo de conhaque.
Trinta minutos se passaram até que
Walter tomasse coragem de abrir a porta e entrar no local novamente. Ao avistar
o jovem alemão desprezível, Billy bufou de enfado. Walter pediu uma garrafa de
conhaque e seguiu firme em direção ao marinheiro. Podia ter mãos macias, mas
estava disposto a exibir a coragem de alguém da tripulação do Fitzgerald III.
- Eu podia estar bêbado, mas se a
minha memória não falha, eu lhe avisei ontem que não conversaria com você –
afirmou Billy, ainda irredutível.
- Eu não me dou por vencido
facilmente - retrucou Walter, com firmeza.
- Há uma linha tênue entre a
sabedoria que te impulsiona e a teimosia que te mata - retrucou Billy,
colocando a sua faca em cima da mesa.
Walter não se permitiu ter medo. Sua
alma tremia, mas o corpo precisava se manter como uma rocha se ele quisesse
sugar aquela experiência. Precisava ouvir para criar. E ninguém naquela cidade
fria colada no mar tinha melhores histórias que Billy.
John só olhava de longe a ousadia do
jovem alemão. Era realmente um abusado, pensou. Mas admirava a sua insistência.
Muitos teriam saído daquela taverna para nunca mais voltarem. Walter não apenas
voltou como encarou Billy mais uma vez.
- Eu não quero que você divida suas
histórias comigo de graça. Estou disposto a pagar o preço que for.
- Poupe o seu dinheiro, garoto. Eu
não o quero. Em três semanas eu volto para o mar. Não preciso perder meus dias
aqui com você.
- Mas eu só preciso de algumas horas.
E eu pagarei por isso.
- Eu não quero dinheiro. Não quero
conversar com você. Só quero ficar sozinho.
- Esse isolamento tem a ver com a sua
mulher?
A lembrança de Mary era uma aposta
arriscada do jovem alemão. Billy poderia ter um acesso de raiva e expulsá-lo a
pontapés pelas ruas enlameadas de Southampton. Mas Billy não esboçou nenhuma
reação intempestiva. Acendeu um cigarro, fitou seus olhos azuis fixamente no
rosto de Walter e com a voz rascante de sempre o mandou embora.
- Volte para a Alemanha. Volte para o
lugar de onde você jamais deveria ter saído.
Sentindo-se definitivamente
derrotado, Walter levantou-se do banco. Vestiu o casaco e a taverna ouviu pela
última vez as suas pesadas botas.
Três semanas se passaram desde a
conversa entre os dois. Walter não foi embora. Conversou com camponeses, ouviu
donos de estabelecimentos, casais importantes da cidade. Queria uma história.
Ou várias histórias para contar. Esteve tão envolto naquela cidade que se
esquecia de coisas simples como fazer a barba.
Quando voltou ao porto para conversar
com alguns pescadores, Walter avistou Billy preparando-se para voltar ao mar. O
capitão coordenava todos os subordinados. Não podia deixar faltar nada. Dos
suprimentos da tripulação aos arpões que ajudariam o Fitzgerald III a trazer o
óleo de baleia fundamental para a cidade.
Walter pensou que não seria uma boa
ideia novamente puxar assunto com Billy. Ainda que aquela fosse a sua última
chance. Nunca mais se veriam a partir do momento que o Fitzgerald III singrasse
o mar.
Paralisado pelos pensamentos, nem
reparou a chegada de Billy para falar com ele.
- Ainda não foi embora, forasteiro? -
perguntou o capitão.
- Estava pensando se você me daria
uma última chance de conversarmos - retrucou Walter.
- Não sabia que alemães tinham tanta
fé. É culpa de Lutero?
- Não temos fé. Apenas somos
persistentes.
- Vá para casa, garoto. Tenho certeza
que você colheu boas histórias da nossa comunidade nestas semanas. Vá para casa
e escreva o seu livro.
Walter pareceu desanimado com mais
uma negativa de Billy, mesmo no momento da relação dos dois em que ele mais se
mostrou aberto. Foi quando subitamente uma ideia louca passou pela sua cabeça.
- E se eu fosse com você? E se
eu embarcasse com você?
- Um homem que sequer sabe amarrar
direito as botas não tem condições de entra no meu navio - disse Billy, dando
gargalhadas.
- Tenho certeza que eu posso ser útil
em alguma função do seu barco. Além disso, você perdeu dois tripulantes de
última hora que ficaram doentes. Não precisa me dar uma função importante. Mas
tenho absoluta certeza que posso ser útil.
Walter tinha razão. E Billy sabia
disso. A maldita tuberculose havia afetado dois dos seus homens, que não
poderiam viajar. O jovem alemão poderia limpar o convés, ajudar na comida, além
de outras tarefas que não exigissem tanta força ou uma precisão nos nós das
cordas. Na pior das hipóteses, poderia virar isca de baleia, pensou maldosamente.
- Se você não deseja contar a sua
história, deixe-me vivê-la para entendê-la - suplicou Walter.
- Você é abusado, garoto. Sabe que
ficaremos até seis meses no mar? Enfrentaremos tempestades, calor, sem falar
nas baleias que iremos caçar. Tem certeza que você quer isso mesmo?
Walter parou alguns segundos que
foram uma eternidade. Pensou no que deixaria para trás, na aventura que viveria
sem a certeza de que voltaria vivo, mas no fim estava determinado. O sim saiu
com a firmeza de um homem apaixonado diante do casamento.
Billy se aproximou dele. Lançou seu
olhar ameaçador. Sua barba fedia a peixe, mas Walter não hesitou. Nem reclamou.
O capitão pegou um saco de batatas e jogou nos braços de Walter. Aquilo devia
pesar uns 30 quilos, mas o jovem alemão aguentou. Ou fingiu muito bem que
aguentou.
- Ei, George! Temos um novo marujo.
Coloque-o na cozinha. Dizem que alemães sabem fazer batatas - gritou Billy
Duncan.
- Pode deixar, capitão.
Assim, Walter embarcou no Fitzgerald
III. Quando as âncoras do navio foram levantadas, ele não tinha mais como
voltar atrás. Estava preso por pelo menos quatro meses naquele navio e com
aquela tripulação.
Torceu para que tivesse tomado a
decisão correta. E pensava sobre isso enquanto observava o seu primeiro pôr do
sol do convés do navio.
- Tenho que admitir que você teve
colhões ao entrar neste navio, garoto - surpreendeu-o Billy Duncan.
- Eu também não acreditei no que eu
fiz. Mas era preciso fazê-lo - respondeu o jovem alemão.
- É bonito, não é? O sol se pondo no
mar? - perguntou o capitão tomando uns goles da garrafa de conhaque que levará
ao convés.
- Nunca vi nada tão belo na minha
vida – respondeu o alemão, verdadeiramente admirado.
O vento estava bom e o barco navegava
em boa velocidade mar adentro. Aquele seria um dia calmo da viagem do
Fitzgerald III.
- Imagino quantas outras coisas belas
verei nesta viagem. E horríveis também, é claro.
- Lá - disse Billy, apontando para a
costa que não era mais possível ver. - Você vivia em uma redoma de segurança.
Aqui, garoto, você verá a vida.
Com estas palavras o capitão se despediu.
Entregou a garrafa de conhaque para Walter, deu dois tapas em suas costas e
voltou para os seus aposentos. Já era noite. Walter tomou um gole da bebida e
olhou para a imensidão do mar com o seu silêncio sendo interrompido apenas pela
passagem do navio.
Ficaria assim por uns bons minutos
antes de se recolher para dormir. Sua aventura estava apenas começando.
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