sábado, 18 de janeiro de 2025

Faltam ideias e sobra a beleza de Paris no “Maria Callas” de Larraín

Gosto de como Pablo Larraín faz com que suas cinebiografias sejam mais ensaios e reflexões sobre o biografado do que propriamente uma sequência de eventos que vão do início ao fim da vida da personalidade que ele escolhe retratar. É uma pena que nem sempre suas ideias dão muito certo. “El Conde” (2023), por exemplo, é maravilhoso ao retratar o ditador Augusto Pinochet como um vampiro. Num campo oposto, “Maria Callas” (“Maria”, no original) é a mais fraca duas suas biografias ensaísticas.

Terceiro e último ato de sua chamada trilogia “Lady with Heels” (Senhoras com saltos, em tradução livre), “Maria Callas” tem como ponto de partida os dois últimos anos de vida da famosa soprano greco-americana. Vivendo isolada em Paris e apenas com a companhia de dois empregados, a governanta Bruna (Alba Rohrwacher) e o motorista Feruccio (Pierfrancesco Favino), Callas (Angelina Jolie) enfrenta problemas de saúde, o declínio da sua voz e um desequilíbrio emocional que vinha desde o seu conturbado e abusivo relacionamento com o magnata grego Aristóteles Onassis (Haluk Bilginer), que curiosamente depois viria a se casar com Jackie Kennedy, outra personagem estudada e biografada por Larraín.

A princípio, esta parecia uma boa ideia, mas por trás das tomadas belíssimas de uma Paris outonal e dos enquadramentos que parecem verdadeiras pinturas através da câmera de Larraín, o filme carece de boas ideias. Parece mais um passeio mórbido pela decadência de uma figura genial sem entregar em troca um motivo ou uma reflexão sobre a cantora que é uma das principais vozes do século XX.

Se “Jackie” (2016) era um maravilhoso ensaio sobre a viuvez do poder protagonizado por Natalie Portman e “Spencer” (2021) já tinha altos e baixos, mas tinha uma reflexão sobre alguém que sofre uma vida sufocante e sofre as consequências de estar completamente deslocada do seu habitat, é difícil perceber onde “Maria Callas” quer se inserir.

Callas parece estar numa via-crúcis de dor e se acostumando com a presença e a ideia da morte, seja por saber que está com a saúde debilitada, seja pelos “fantasmas” que a perseguem na sua mente. Ao mesmo tempo, ensaia diariamente num teatro de Paris, quando varia entre a esperança de estar recuperando a sua voz e a certeza de que está acabada. A artista La Callas já estava morta antes que Maria deixasse este mundo. Na vida real, Callas chegou mesmo a ensaiar um retorno em 1977, três anos depois de sua última apresentação no Japão. Ela chegou a fazer uma gravação de La Traviata com o então tenor em ascensão Luciano Pavarotti, mas até a sua morte a soprano nunca mais voltaria a cantar em público.

Outro problema do filme é Angelina Jolie. Escolha número 1 de Larraín e sem a qual não haveria filme nas palavras do próprio diretor chileno, a atriz até se esforça bastante. Jolie, inclusive, estudou ópera por sete meses para se preparar para o papel e, por mais que a maior parte do filme ela esteja sendo dublada, é dela a voz que canta na bonita e dramática cena final do filme.

No entanto, apesar do seu esforço louvável, Jolie não consegue sumir da tela para dar vida a Maria Callas. Transpõe-se muito pouco de Callas e vê-se demais uma Jolie tentando viver uma cantora de ópera no ocaso da vida em Paris. Mesmo na cena final, talvez a melhor da atriz, é difícil não ver Jolie num momento que deveria ser profundamente Callas. De certa forma, isto atrapalha um pouco a experiência do filme.

No fim, sobra pouco para se apreciar do “Maria Callas” de Larraín. É uma pena que sua trilogia informal tenha permanecido como ponto mais alto exatamente o primeiro filme, “Jackie”. Contudo, ainda prefiro um diretor que possivelmente falhe por trazer uma visão pessoal ao jogar luz sobre uma determinada figura histórica do que um que acerte fazendo a mais certinha e quadrada cinebiografia possível. Destas histórias, o cinema está cheio.

Nota 6/10.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O silêncio, a angústia e a opressão em “Pequenas coisas como estas”

Embora seja uma das mais proeminentes escritoras irlandesas, ainda não tive a chance de ler nada da autora Claire Keegan. Contudo, a julgar pelos dois filmes baseados em sua obra, talvez eu devesse dar alguma atenção a esta escritora que já ganhou alguns prêmios e teve obras incluídas em listas de destaques de publicações importantes ao longo dos últimos anos. O cinema pelo menos já se apercebeu do potencial da sua literatura, visto que num intervalo de dois anos entre 2022 e 2024 duas obras suas foram adaptadas para as telas.

A julgar pelo que vi na tela grande — o que é muito pouco para fazer um julgamento mais acurado — , a negligência e a hipocrisia em meio a uma complexa e contraditória Irlanda giram em torno da sua literatura. E tudo sem grandes assombros. Apenas trabalhando o desconforto do silêncio. O silêncio que vem de traumas perturbadores ou que vem da necessidade de lidar com questões morais e suas consequências enquanto o próprio peso da vida está te esmagando. Pelo que li sobre a autora, os silêncios são muito importantes em sua obra e o cinema tem conseguido traduzir muito bem essa qualidade da prosa de Keegan.

Em “A menina silenciosa” (“An Caillín Ciúin”, no original, e baseado no conto “Foster”, ou “Acolher”, em português), de 2022, o diretor Colm Bairéad traduz muito bem isso ao contar a história de uma menina retraída que vai morar numa casa estranha e com um casal desconhecido em que, com o passar do tempo, ela vai descobrindo camadas de afeto que lhe eram desconhecidas e, paulatinamente, vai superando o medo e o desconforto. Afeto que ela nunca recebeu dos pais biológicos.

Em “Pequenas coisas como estas” (“Small Things Like These”, no original), o buraco é mais embaixo. Aqui temos uma pequena comunidade da Irlanda que vive refém do jugo moral, poderoso e até financeiramente opressor da Igreja. Nela, o carvoeiro Bill Furlong (Cillian Murphy), dono de uma pequena e bem-sucedida empresa, se vê num dilema moral depois que descobre os abusos que jovens meninas sofrem num convento da cidade.

Furlong, um pai de cinco meninas que teve que conviver com a ausência materna desde muito cedo, angustia-se com o que presencia em uma visita ao convento para levar o seu carvão para as freiras e passa os dias seguintes remoendo num dilema moral entre fazer a coisa certa e se prejudicar e, consequentemente, prejudicar toda a sua família que vive uma vida simples, mas boa na cidade, e fechar os olhos para os abusos da Igreja numa comunidade refém do poder desta mesma Igreja.

Furlong é homem bom, mas angustiado. Os silêncios do filme são angustiantes e nos ajudam a sentir o peso no peito do seu protagonista. E poucos atores conseguem aproveitar as longas pausas do filme para expor com o olhar, gestos e expressões este peso deste homem traumatizado e angustiado que vive um dilema como Murphy. Ele é, sem dúvida, um dos trunfos que fazem “Pequenas coisas como estas” ser um filme tão interessante. Não exatamente brilhante, mas interessante o suficiente para eu desejar revisitar em outro momento. Talvez depois de ler o livro e encará-lo com um novo olhar. Por enquanto, saio satisfeito de “Pequenas coisas como estas”.

Nota 7,5/10.

sábado, 4 de janeiro de 2025

“Nosferatu”, o sonho realizado de Robert Eggers que, porém, perde para o original de Murnau

Refilmar “Nosferatu” sempre foi um desejo do diretor Robert Eggers. Fã do clássico do Expressionismo alemão lançado em 1922, Eggers se impôs esse desafio após consolidar a sua carreira com uma cinematografia muito baseada em construir filmes como um grau de horror que gravita entre o sobrenatural e o ocultismo. Mesmo seu filme mais controverso, “O Homem do Norte” (2022), explora uma faceta mística em meio a uma trama de vingança que se passa no período viking.

Mas ao impor este desafio, Eggers tem uma pressão extra que não teve nos seus três longas anteriores — além de “O Homem do Norte”, ele também é diretor dos ótimos “O Farol” (2019), talvez o seu melhor filme, e “A Bruxa” (2015). E esta pressão é a comparação com um filme lançado há mais de um século.

Quando filmou o seu “Nosferatu”, F. W. Murnau tinha perante si um cinema ainda muito jovem e que tinha apenas 27 anos desde que os irmãos Lumière projetaram o seu primeiro filme. Naquele tempo, a tecnologia era praticamente nenhuma em comparação com os tempos atuais de Inteligência Artificial. Os filmes eram mudos, em preto e branco e todo e qualquer efeito era prático. As atuações para os tempos de hoje soariam caricatas, mas não podemos esquecer que num tempo de cinema mudo, as expressões exageradas eram fundamentais para darem vivacidade ao que se queria passar.

E é fascinante que mesmo diante destas limitações o filme de Murnau permaneça sendo mais interessante do que a versão de Eggers. Isso diz muito sobre o quão Murnau foi genial ao filmar seu “Nosferatu”, mas também no quanto Eggers de certa forma falhou ao transpor a sua versão para as novas plateias do século XXI.

É claro que o “Nosferatu” de Eggers tem predicados. A começar pela fotografia. Belíssima, glacial, asfixiante e ainda com um jogo de luz e sombras que não deixa de ser uma bonita homenagem ao filme original.

Outro ponto alto de “Nosferatu” é o trabalho de Bill Skarsgard como o Conde Orlok. Ele é tão assustador quanto a versão original de Max Schreck (sempre, evidentemente, guardando as devidas proporções de um intervalo de 103 anos de diferença). E Eggers sabe muito bem jogar com os ângulos de câmera para revelar sempre apenas o necessário, deixando para Skarsgard a tarefa de usar a impostação da sua voz ecoar como o vento frio da morte sobre a fictícia cidade de Wisburg, na Alemanha do século XIX.

Contudo, o “Nosferatu” de Eggers se resume a isso. Ele não tem as sutilezas do filme de Murnau. No original, o mal vai crescendo enquanto o medo está a espreita até se revelar em sua profundidade. Embora, como espectadores, saibamos desde o princípio de que Orlok é um vampiro possuidor de almas, dentro da história a percepção desta evolução demoníaca é aos poucos. Sua alma avança pelas sombras sorrateiramente. Como se a influência de Orlok fosse se espalhando como uma doença até que já fosse quase tarde demais para salvar a cidade do seu domínio. Daí a associação com a peste negra funcionar melhor no original do que neste filme, quando Eggers transforma este elemento num confronto entre fé e ciência.

Esta dualidade, porém, acaba sendo um ponto fraco do filme. Temos os que acreditam, temos os que não acreditam, mas na essência parece haver um consenso de que é preciso seguir o professor Eberhart (Willem Defoe), que parece saber o que está acontecendo e, apenas por ser convincente no seu argumento, confia-se cegamente nele, apesar dos vãos e quase constrangedores esforços de um Friedrich vivido por um Aaron Taylor-Johnson nada convincente.

Conforme o tempo vai passando, o “Nosferatu” de Eggers de certa forma vai minguando e ficando desinteressante. Ele só volta a ganhar realmente um fôlego em seus momentos finais. Ali, no duelo entre Ellen (Lily-Rose Depp) e o vilão, o filme de Eggers ganha na interpretação de Skarsgard um final fascinante que culmina numa imagem que é uma pintura do horror e do sacrifício. Por esta cena, a espera valeu a pena.

Nota 6/10