Sônia Braga está incrível no filme |
Eu tenho alguns amigos que não
veem filme brasileiro de qualquer jeito. Pode ser um filme de arte ou uma
dessas comédias que povoam os cinemas. A Corneta vai, portanto, fazer
um pedido. Quase um apelo. Não deixe de ver "Aquarius". Cinema bom,
cinema incrível, não tem bandeira. Logo, não pode ser alvo de
preconceitos.
Segundo filme do diretor pernambucano
Kleber Mendonça Filho, "Aquarius" é sobre o Brasil. Sobre um Brasil
retrógrado, onde as individualidades são oprimidas pela passagem voraz do poder econômico.
Mas esta é apenas a linha mestra do
roteiro. É a que conta a história de Clara, jornalista aposentada vivida por
Sônia Braga, que mora no edifício Aquarius no litoral de Recife. Ela é a última
moradora de um prédio cujos apartamentos foram vendidos para uma construtora
que pretende levantar um moderno empreendimento imobiliário no local.
Mas Clara não quer vender o seu
apartamento. Há muito história naquela área e ela tem toda uma vida confortável
e de frente para o mar que não pretende deixar.
A personagem, contudo, está longe de ser
uma saudosista. Clara prefere discos, mas ouve música em qualquer plataforma.
Aprecia o novo e o velho. Não se intimida diante de uma orgia. E se quer
trepar, não hesita em contratar um garoto de programa.
A personagem criada por Kleber é joia
pura e vivida com um brilhantismo ímpar por Sônia Braga. Se a força de
"Aquarius" está em sua história, Sônia tem muito mérito nisso, pois a
sua atuação é arrebatadora. Ela sabe exercitar todas as camadas necessárias de
um personagem que pareceu ter sido feito para ela. Foi um achado que o roteiro
de Kleber tenha encontrado Sônia e vice-versa.
Mas eu dizia que "Aquarius"
é sobre o Brasil. E de fato mais uma vez o diretor foi preciso em usar um microcosmo
recifense para refletir sobre as mazelas e os preconceitos muito próprios desta
terra.
"Aquarius" não trata apenas
da construtora que tenta passar por cima de Clara a qualquer custo e, para isso, esgarça todos os limites da ética. Mas é também sobre o racismo, a opressão, a
falta de respeito pelo outro e de caráter de alguns. Fala de nepotismo, jogos
de poder, do famoso "Você sabe com quem está falando?", enfim, de uma
série de comportamentos desagradáveis ainda conservados em uma espécie de poder coronelista. E se eu uso a expressão "coronelismo" não é
apenas para ter uma relação com o Nordeste, pois o Sul e o Sudeste também tem
suas versões de "coronéis" que se perpetuem no poder e espalham herdeiros. E que
fazem negócios pouco republicanos com empreiteiras e outras empresas que volta
e meia surgem enroladas com a Justiça.
Tudo isso está em
"Aquarius", um filme que ainda tem uma trilha sonora impecável que
pontua os estados de espírito dos personagens e das cenas. Vai entrar para o
vocabulário da filmografia de Kleber a frase "Toca Maria Bethânia pra ela.
Mostra que tu é intenso", que foi usada por Clara para que o sobrinho
impressione a namorada carioca que está chegando em Recife para encontrar com
ele. Essa frase é um retrato da sensibilidade do roteiro de Kleber.
Se a frase "A minha Veja veio
fora do plástico" resumia a ironia com que ele tratava os seus personagens
pequeno burgueses de "O som ao redor" (2012), em "Aquarius"
ele também soube usar desta ironia ao fazer Clara dizer "Se eu não gosto,
é velho. Se eu gosto, é vintage" no momento em que ela defende diante dos
filhos o direito de permanece em sua casa.
Por falar em "O som ao
redor", é inevitável fazer uma comparação entre os dois filmes do diretor.
Ambos são primorosos. A diferença está muito mais na estrutura.
"Aquarius" tem uma narrativa mais linear, clássica e de fácil ou
melhor entendimento para a maioria das pessoas.
"O som ao redor" trabalhava
com um simbolismo maior. Em várias cenas, é preciso refletir sobre o que está
acontecendo e seus significados. Em "Aquarius" a comunicação é
direta. Não há margem para a dúvida. Mas ambos são brilhantes em suas missões
de fazerem quase um inventário do comportamento de um Brasil que teima em
existir, que insiste em ainda ser protagonista. Junte os dois filmes de Kleber
e "Que horas ela volta?" (2015), de Anna Muylaerte, e tente não se
incomodar. Insira "Cidade de Deus" (2002) e "Tropa de
elite" (2007), e é possível sim traçar alguns paralelos entre os
blockbusters de Fernando Meirelles e José Padilha e estas obras, e tente não se
incomodar.
Por hora, admiremos
"Aquarius". Pois mesmo que a mensagem não chegue (ou alguns não
vistam a carapuça), ele ainda conserva a alma de um grande filme. Que merece
ser visto e revisto. E ainda tem de brinde uma Sônia Braga para quem só podemos
reservar os mais entusiasmados aplausos. "Aquarius", portanto, vai
ganhar da Corneta uma nota 9,5.
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