segunda-feira, 5 de setembro de 2016

É preciso ver 'Aquarius'

Sônia Braga está incrível no filme
Eu tenho alguns amigos que não veem filme brasileiro de qualquer jeito. Pode ser um filme de arte ou uma dessas comédias que povoam os cinemas. A Corneta vai, portanto, fazer um pedido. Quase um apelo. Não deixe de ver "Aquarius". Cinema bom, cinema incrível, não tem bandeira. Logo, não pode ser alvo de preconceitos. 

Segundo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, "Aquarius" é sobre o Brasil. Sobre um Brasil retrógrado, onde as individualidades são oprimidas pela passagem voraz do poder econômico. 

Mas esta é apenas a linha mestra do roteiro. É a que conta a história de Clara, jornalista aposentada vivida por Sônia Braga, que mora no edifício Aquarius no litoral de Recife. Ela é a última moradora de um prédio cujos apartamentos foram vendidos para uma construtora que pretende levantar um moderno empreendimento imobiliário no local. 

Mas Clara não quer vender o seu apartamento. Há muito história naquela área e ela tem toda uma vida confortável e de frente para o mar que não pretende deixar. 

A personagem, contudo, está longe de ser uma saudosista. Clara prefere discos, mas ouve música em qualquer plataforma. Aprecia o novo e o velho. Não se intimida diante de uma orgia. E se quer trepar, não hesita em contratar um garoto de programa. 

A personagem criada por Kleber é joia pura e vivida com um brilhantismo ímpar por Sônia Braga. Se a força de "Aquarius" está em sua história, Sônia tem muito mérito nisso, pois a sua atuação é arrebatadora. Ela sabe exercitar todas as camadas necessárias de um personagem que pareceu ter sido feito para ela. Foi um achado que o roteiro de Kleber tenha encontrado Sônia e vice-versa. 

Mas eu dizia que "Aquarius" é sobre o Brasil. E de fato mais uma vez o diretor foi preciso em usar um microcosmo recifense para refletir sobre as mazelas e os preconceitos muito próprios desta terra. 

"Aquarius" não trata apenas da construtora que tenta passar por cima de Clara a qualquer custo e, para isso, esgarça todos os limites da ética. Mas é também sobre o racismo, a opressão, a falta de respeito pelo outro e de caráter de alguns. Fala de nepotismo, jogos de poder, do famoso "Você sabe com quem está falando?", enfim, de uma série de comportamentos desagradáveis ainda conservados em uma espécie de poder coronelista. E se eu uso a expressão "coronelismo" não é apenas para ter uma relação com o Nordeste, pois o Sul e o Sudeste também tem suas versões de "coronéis" que se perpetuem no poder e espalham herdeiros. E que fazem negócios pouco republicanos com empreiteiras e outras empresas que volta e meia surgem enroladas com a Justiça. 

Tudo isso está em "Aquarius", um filme que ainda tem uma trilha sonora impecável que pontua os estados de espírito dos personagens e das cenas. Vai entrar para o vocabulário da filmografia de Kleber a frase "Toca Maria Bethânia pra ela. Mostra que tu é intenso", que foi usada por Clara para que o sobrinho impressione a namorada carioca que está chegando em Recife para encontrar com ele. Essa frase é um retrato da sensibilidade do roteiro de Kleber. 

Se a frase "A minha Veja veio fora do plástico" resumia a ironia com que ele tratava os seus personagens pequeno burgueses de "O som ao redor" (2012), em "Aquarius" ele também soube usar desta ironia ao fazer Clara dizer "Se eu não gosto, é velho. Se eu gosto, é vintage" no momento em que ela defende diante dos filhos o direito de permanece em sua casa. 

Por falar em "O som ao redor", é inevitável fazer uma comparação entre os dois filmes do diretor. Ambos são primorosos. A diferença está muito mais na estrutura. "Aquarius" tem uma narrativa mais linear, clássica e de fácil ou melhor entendimento para a maioria das pessoas. 

"O som ao redor" trabalhava com um simbolismo maior. Em várias cenas, é preciso refletir sobre o que está acontecendo e seus significados. Em "Aquarius" a comunicação é direta. Não há margem para a dúvida. Mas ambos são brilhantes em suas missões de fazerem quase um inventário do comportamento de um Brasil que teima em existir, que insiste em ainda ser protagonista. Junte os dois filmes de Kleber e "Que horas ela volta?" (2015), de Anna Muylaerte, e tente não se incomodar. Insira "Cidade de Deus" (2002) e "Tropa de elite" (2007), e é possível sim traçar alguns paralelos entre os blockbusters de Fernando Meirelles e José Padilha e estas obras, e tente não se incomodar.

Por hora, admiremos "Aquarius". Pois mesmo que a mensagem não chegue (ou alguns não vistam a carapuça), ele ainda conserva a alma de um grande filme. Que merece ser visto e revisto. E ainda tem de brinde uma Sônia Braga para quem só podemos reservar os mais entusiasmados aplausos. "Aquarius", portanto, vai ganhar da Corneta uma nota 9,5

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