sábado, 25 de outubro de 2025

“Salve-me do desconhecido”, a luta de Springsteen contra a depressão

White entre Carmy e o seu Springsteen
Fazer um filme sobre Bruce Springsteen é uma tarefa inglória. Como retratar em duas horas uma carreira tão cheia de camadas, álbuns diferentes, dezenas de sucessos e ainda cobrir a vida pessoal do cantor? O mais certeiro seria apostar no óbvio. Ou na sua jornada do início até se tornar um cantor de sucesso nos Estados Unidos e no mundo ou focar no lançamento de “Born in the U.S.A.”, (1984) que alçou Springsteen ao patamar de estrela mundial.

O diretor Scott Cooper, no entanto, preferiu não apostar em algo tão óbvio. Para além do astro, Cooper queria mergulhar na alma do Boss e trazer a tona o ser humano por trás da estrela, com todas as suas fragilidades. E apostar num momento complexo da vida do cantor, quando teve que lidar com os primeiros sinais de depressão ao mesmo tempo em que construía o bonito álbum “Nebraska” (1982).

Baseado no livro “Deliver me from Nowhere: The Making of Bruce Springsteen´s Nebraska”, de Warren Zanes, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido” (“Springsteen: Deliver me from nowhere”, no original) foi uma aposta ousada como o próprio “Nebraska” em seu tempo. Ao contrário do excelente álbum, no entanto, o filme tem seus altos e baixos.

O filme de Cooper tem como ponto de partida o fim da bem-sucedida turnê norte-americana de “The River” (1980). Springsteen estava em alta nos Estados Unidos, consolidado com sucessos como “Born to run” e “Hungry Heart” e preparava-se para voltar para a New Jersey natal para descansar e trabalhar num novo álbum.

O filme mostra que o retorno às origens, no entanto, o fez pensar e remexer no passado. Ao mesmo tempo em que o cantor via dentro de si um incômodo silencioso e crescente.

Misturando lembranças do passado, especialmente da sua complexa relação com o pai Douglas Springsteen (Stephen Graham, em mais um ótimo trabalho) com o momento que vivia, e sua igualmente complexa relação com Faye (Odessa Young), personagem fictícia e que resume as mulheres que estiveram no entorno de Springsteen naquele início dos anos 1980, o cantor começa a trabalhar no que se tornaria o álbum “Nebraska”.

O problema é que o ambiente, as memórias e a confecção de “Nebraska” fazem Springsteen cavar um buraco na alma e se expor de uma maneira até então não vista. Ao investigar o que o atormenta, o cantor se vê perto do abismo que viria a se tornar no diagnóstico e tratamento de depressão muito causado, segundo o próprio cantor, a uma infância estressante e a difícil relação com o pai.

“Salve-me do desconhecido” é muito sobre essa jornada dolorosa do “Nebraska” e a luta do cantor para entender o que estava lhe fazendo mal, buscar ajuda profissional e começar a se reerguer internamente enquanto, paradoxalmente, tinha um país inteiro que o amava. Sem passar por isso, Springsteen talvez não tivesse forças para encarar o furacão que viria em seguida com “Born in the U.S.A.”, álbum que vinha sendo produzido quase em paralelo a “Nebraska” e que é tão diametralmente oposto ao clima de “Nebraska”. 

Um dos méritos do filme, inclusive, é resignificar tanto “Nebraska” quanto “Born in the U.S.A.”. Especialmente para quem não leu o livro de Zanes. “Nebraska” ganha ainda mais camadas profundas e nos faz entender um pouco mais onde Springsteen estava mergulhando e o que estava sentindo naquele momento. Já “Born in the U.S.A” vira mais do que um excelente álbum cheio de críticas políticas e sociais, mas também soa como um Springsteen anunciando que está voltando ao seu espírito enérgico de “Born to Run”, por exemplo. 

Assistindo ao filme, consegue-se compreender porque o cantor escolheu pessoalmente Jeremy Allen White para interpretá-lo no cinema. Em “O Urso” (2022-), White vive um chef de cozinha atormentado e com sinais de depressão após a morte do irmão. Talvez Springsteen tenha traçado paralelos entre Carmy Berzatto, o personagem de White na série, consigo mesmo.

O lado ruim desta escolha é que por mais que White tenha se esforçado e não esteja mal no papel. fica um pouco difícil ver nele algo além de um Carmy imitando os trejeitos de Springsteen. Há muito da experiência de “O Urso” no Springsteen depressivo de White. Se o filme tivesse sido lançado há cinco anos, talvez a visão pudesse ser diferente. No entanto, após o sucesso da série, é impossível não ver determinados paralelos. Especialmente porque White ainda está trabalhando na série. Portanto, não se livrou por completo do personagem. Neste ponto, Ayo Edebiri foi mais bem sucedida em sumir do papel de Sydney em “Depois da caçada” (2025).

Apesar deste pequeno apontamento, penso que o trabalho de White é um dos pontos fortes do filme. Também gosto muito de como as imagens da infância são em preto e branco, refletindo um pouco o clima mais macambúzio e sombrio do “Nebraska”. E da relação de Springsteen com o empresário Jon Landau (um Jeremy Strong mais contido do que nos acostumamos a ver). Estamos tão acostumados a ver o entorno de um artista agindo como vampiros, que Springsteen teve muita sorte em, neste momento da vida, ter não apenas apoio do empresário, mais também até certo ponto da gravadora, que não acreditava em “Nebraska”, mas aceitou todas as condições do artista, incluindo não fazer turnês nem dar entrevistas para a imprensa. E no fim “Nebraska” foi um sucesso na mesma.

O outro lado de “Salve-me do desconhecido” é que Cooper não conseguiu mostrar porque Springsteen é um artista tão único e que merece ser celebrado em uma cinebiografia. O filme não mostra a grandeza do Springsteen, praticamente o esconde do palco e não mostra a força de suas letras e da sua capacidade de contar histórias que tocam e emocionam o público. Ele arranha este tema na conversa do empresário com o chefe da gravadora, mas não é algo facilmente identificável.

Quem é fã de Springsteen pode até compreender, mas o espectador comum não sai deste filme entendendo a relevância do artista para a música. E isso é um dos principais pecados do filme.

Neste ponto, “Um completo desconhecido” (2024) se sai melhor ao contar a história de Bob Dylan apostando num ponto de virada de sua carreira, quando ele começa a tocar a guitarra elétrica e tem um embate com os tradicionalistas do folk. “Um completo desconhecido” mostra a grandeza de Dylan e diz em muitos momentos porque ele é tão relevante para a música.

“Salve-me do desconhecido” falha neste ponto. Especialmente porque estamos acostumados a ver estadunidenses contando qualquer história real. O cinema norte-americano é especialista em transformar histórias comuns e que só interessariam a uma pequena comunidade em embalagens cinematográficas épicas. No entanto, a história de Springsteen é realmente a de um artista relevante e da primeira prateleira da música. E isso podia de alguma forma estar refletido no filme.

Talvez este não fosse o objetivo de Cooper e o diretor quisesse apenas contar a história de Springsteen exorcizando seus demônios. Mas isso faz com que o filme perca a amplitude que poderia ter. Parece mais um filme para dois públicos: estadunidenses e fãs de Springsteen. Posso estar enganado, mas parece improvável que um leigo saia da sala de cinema querendo saber mais, conhecer mais sobre Springsteen e ouvir a sua obra. O que é uma pena, pois a obra de Springsteen é grandiosa.

Nota 7,5/10.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Os filmes e as séries de setembro

Uma Batalha após a outra (One Battle After Another — EUA) — Paul Thomas Anderson levou 20 anos para fazer este filme, o que faz com que seja fascinante como ele dialoga muito bem com o momento atual dos EUA. É uma sátira sobre a América paranóica, racista, xenófoba e dominada por uma extrema-direita militarizada e com traços de seita que persegue imigrantes e minorias. No mesmo dia em que eu vi este filme, aparecia na imprensa mais um video de agressão e truculência de autoridades estadunidenses contra imigrantes. O filme é um retrato destes tempos sombrios e caóticos. E que atuações de Sean Penn e Leonardo DiCaprio.

O último azul (BRA, MEX, NL, CHI) — Uma distopia com imagens incríveis da Amazônia que reflete sobre o etarismo e critica o capitalismo. Enquanto vivemos num mundo em que a velhice é escondida em camadas de plástico, cirurgias deformadoras e filtros de redes sociais, o filme de Gabriel Mascaro é uma afirmação da vida em que a idade não deve ser tratada como um fardo.

Por inteiro (All of you — EUA, ING) — O amor é escolha ou destino? Ou um pouco de ambos? Um filme que nos faz refletir sobre as idiossincrasias da vida. Adoro o texto, o trabalho dos atores e a fotografia. Só foi difícil acreditar num jornalista que viaja tanto e sempre se hospeda em lugares incríveis.

Downton Abbey: O Grande Final (Downton Abbey: The Grand Finale — ING, EUA) — A despedida de Downton, uma bonita homenagem a Maggie Smith e um belo final para os personagens que começaram numa série de TV e passaram para três filmes no cinema. Foram tantos acontecimentos que poderiam ter sido uma temporada, mas gostei dos desfechos dos personagens.

O Surfista (The Surfer — AUS, IRL) — Só Nicolas Cage para fazer um filme insano como este. Nunca pegar uma onda na Austrália foi tão difícil.

O clube do crime das quintas-feiras (The Thursday Murder Club — EUA) — O mistério é rocambolesco, mas é bom demais ver a Helen Mirren trabalhar. Aliás, parte do elenco do filme também está em “Terra da Máfia”. É quase como se Mirren, Pierce Brosnan e Geoff Bell tivessem combinado de fazer uma pausa na série para gravar algo mais leve.

Alien: Earth (EUA — TAI — FX) — Noa Hawley é muito bom. Talvez seja a pessoa que faz algumas das melhores series que infelizmente não atingem a popularidade que elas merecem. É assim com “Fargo” (2014–2024), com “Legion” (2017–2019), uma das melhores series de super-heróis, e parece ser com esta que talvez seja uma das melhores séries do ano. “Alien: Earth” se passa dois anos antes dos acontecimentos de “Alien: o 8º passageiro” (1979) e é a primeira produção deste universo que se passa na Terra. O que vemos aqui é uma luta de corporações trilionárias por espécimes com incríveis capacidades de adaptação e que se espalham facilmente como vírus destruidores. Um misto de ficção científica, suspense e terror com design e elementos visuais que lembram muito os de “Blade Runner” (1982).

Fundação (Foundation — IRL, EUA — Apple TV) — A cada temporada de “Fundação” aumenta o meu desejo de ler os livros de Isaac Asimov. A terceira temporada foi a melhor até agora tanto na parte da história da saga dos clones, quanto na trama que trata da Fundação. E foi definitivamente a temporada da Demerzel (Laura Birn). O episódio final é incrível.

Diários de um robô-assassino (Murderbot — EUA — Apple TV) — O robô vivido por Alexander Skarsgard representa todos nós. É alguém que só quer fica em paz vendo as suas séries e não perder tempo com coisas menores como trabalhar. A série sobre um robô de segurança que hackeia a próprio programação e é enviado para um planeta inóspito para proteger um grupo de cientistas é mais legal do que eu imaginava.

Chefe de Guerra (Chief of War — EUA — Apple TV) — Sabemos que Jason Momoa não é exatamente um Al Pacino, mas se superarmos esta barreira, esta série é bem interessante. Projeto pessoal de Momoa, ela é baseada nas guerras de unificação do Havaí que aconteceram no final do século XVIII, uma era de grandes transformações e conflitos nas ilhas antes da chegada dos europeus para tornarem tudo ainda pior. A série tem um elenco quase todo de origem polinésia e boa parte dela é falada na língua nativa do Havaí. Spoiler: Em nenhum momento o Momoa diz: “My Man!”

domingo, 28 de setembro de 2025

“Uma batalha após a outra”, uma sátira sobre os Estados Unidos de hoje

DiCaprio enfrenta o sistema para salvar a filha
Não deixa de ter uma certa magia quando filmes que demoram tanto para serem feitos nascem no momento certo. 
“Uma batalha após a outra” é deste tipo de filme. A obra levou 20 anos para nascer, mas é fascinante como dialoga com o momento atual dos Estados Unidos e até certo ponto deste mundo problemático em que vivemos.

Livremente inspirado no livro “Vineland”, de Thomas Pynchon, o novo filme de Paul Thomas Anderson é uma sátira sobre a América paranóica, racista, xenófoba e dominada por uma extrema-direita militarizada e com traços de seita que persegue imigrantes e minorias.

No centro da história está a perseguição do coronel Steve J. Lockjaw (um maravilhoso Sean Penn numa atuação espetacular) para encontrar e destruir um grupo de revolucionários que se intitulam French 75. Em especial Bob (Leonardo DiCaprio) e sua filha Willa (Chase Infiniti), marido e filha da líder do tal grupo, Perfídia (Teyana Taylor).

Os filmes de Anderson não seguem exatamente um único estilo, mas o diretor sempre navegou bem em dramas de estudo de personagem em que aproveitava ou não para discorrer sobre um problema maior. Lembro de “Boggie Nights” (1997), “Magnólia” (1999), do absolutamente maravilhoso “Sangue Negro” (2007) e de “Trama Fantasma” (2017).

Em “Uma batalha após a outra”, temos um Anderson mais soltinho, que usa uma dose de humor para fazer as suas críticas a uma América que persegue os imigrantes enquanto busca um ideal de pureza que soa tão ridículo quanto a seita na qual Lockjaw luta arduamente para fazer parte.

Por seu tom satírico. em alguns momentos senti-me muito mais vendo um filme dos irmãos Coen do que de Anderson. A hilariante jornada do DiCaprio para recarregar o celular tem muito a cara do cinema deles. E acho curioso e fascinante ver o diretor se aventurar em contar histórias de outras formas.

Embora se passe nos tempos atuais, o filme dialoga muito com o jeito de fazer cinema da Hollywood dos anos 1970. “Licorice Pizza” (2021) já tinha essa veia, até porque o filme de passava mesmo naquela década. Mas “Uma Batalha após a outra” também tem uma alma setentista que grita muito no terço final do filme que mostra DiCaprio tentando salvar a filha, a filha tentando se salvar e uma maravilhosa perseguição de carro.

Pode-se criticar os exageros da história, mas a hipérbole não deixa de ser uma das características da sátira. Pode-se criticar ainda uma certa ingenuidade na retratação de certos personagens, que seguramente não andariam com tanta liberdade nesta América autoritária retratada por Anderson. No fim, é uma questão de gosto. Para mim, Paul Thomas Anderson acertou de novo. História, temas, atuações, a trilha sonora impecável de Jonny Greenwood… o diretor acertou bem mais do que errou ao fazer um filme sobre o autoritarismo nos Estados Unidos.

Nota 8,5/10

“O último azul”, a distopia contra o etarismo que é uma afirmação da vida

Tereza se recusa a ir para um asilo
Vivemos num mundo em que a velhice é escondida em camadas de plástico que deformam os rostos e envelhecer é um fardo. As redes sociais nos mostram um mundo em negação onde só o corpo jovem (ou aparentemente jovem) e belo tem a chance de viver.

Com uma premissa relativamente simples, Gabriel Mascaro soube captar muito bem a nossa realidade para criar uma distopia brasileira que crítica o etarismo, o capitalismo e joga na nossa cara que que envelhecer é um processo natural da vida e não necessariamente um problema.

Ambientado no Amazonas e com uma fotografia belíssima e poética, “O último azul” conta a história de Tereza (a maravilhosa Denise Weinberg, uma das forças do filme), uma senhora de 77 anos que vive sozinha, trabalha e ainda tem sonhos a realizar.

O problema é que Tereza atingiu o limite de idade determinado pelo governo brasileira em que os idosos são retirados não apenas do mercado de trabalho, mas da vida ativa e do convívio de seus familiares e mandados para colônias onde vão basicamente para viverem o resto de suas vidas até a morte. O objetivo da medida é manter os jovens produtivos e sem a necessidade de cuidarem dos seus idosos.

Tereza, no entanto, se recusa a ir para o asilo. Ela tem sonhos a realizar. Ela deseja voar de avião, o que nunca pôde fazer, pois era uma mãe solteira cuidando de uma filha que agora não só não liga para ela, como tem a sua guarda, de acordo com as leis do governo. Ou seja, Tereza não só perde o trabalho como a própria autonomia de viver e tomar as decisões de sua própria vida.

Ao se rebelar contra o sistema e se recusar a ser tratada como mercadoria estragada, Tereza embarca numa jornada de afirmação da sua liberdade. A partir da busca pelo sonho de voar, ela cruza o caminho de diversos personagens e vive experiências que escancaram que a vida só tem um fim quando tem que ter e não por uma determinação do governo.

Na sua temática, “O último azul” me lembra muito o filme japonês “Plano 75” (2022), que também explora a questão do envelhecimento onde idosos são convidados a fazerem uma eutanásia voluntária aos 75 anos, mesmo que estejam saudáveis.

Na essência, os dois filmes tratam dos mesmos temos. O capitalismo na sua forma mais cruel e a idade sendo tratada como um fardo.

A vantagem de “O último azul” está na poesia de Mascaro, que aproveita a paisagem amazônica para mostrar não apenas a beleza, mas a riqueza cultural da região, com todas as suas contradições, aspectos positivos e negativos e que deviam estar disponíveis a todos. Independentemente da idade.

Nota 8/10

domingo, 31 de agosto de 2025

Os filmes e as séries de agosto

Os filmes e as séries mais interessantes de agosto:

Ladrões (Caught Stealing — EUA) — Nunca imaginei que eu veria um filme de Darren Aronofsky, diretor de “Pi” (1998), “Réquiem para um sonho” (2000), “Cisne Negro” (2010) e “Mãe!” (2017), no melhor estilo do cinema de Guy Ritchie do final dos anos 1990. É pura diversão. E fica a lição: cuidado com falsos amigos.

On Falling (ING, POR) — Escrito e dirigido por Laura Carreira é um filme fundamental ao mostrar a precarização do trabalho, a duríssima vida do imigrante e a uberização das nossas vidas.

Elskling (NOR) — Primeiro longa da diretora Lilja Ingolfsdottir, .o filme fala sobre como Um os traumas de infância atrapalham as nossas relações e, se não tratamos estes traumas, a conta sempre vem no convívio com seu parceiro. Em alguns momentos, ele me lembrou “A pior pessoa do mundo”, outro filme norueguês que eu adoro. Helen Guren está incrível como a protagonista.

F1: O Filme (F1: The Movie — EUA ) — Embora seja um filme que pareça mais publicidade do que cinema, Joseph Kosinski conseguiu pelo menos trazer para as cenas de corrida as mesmas tomadas emocionantes que vemos em “Top Gun: Maverick” (2022).

Ernest Cole: Achados e Perdidos (Ernest Cole: Lost and Found — FRA, EUA) — Excelente documentário de Raoul Peck, que documenta muito bem a solidão do exílio e o duro regime do Apartheid sul-africano a partir da vida e obra do fotógrafo Ernest Cole. Nota 8.

Filhos (Vogter — DIN, SUE. FRA) — Entre a vingança e a ética, fica apenas o dilema que corroi a alma da protagonista. Fazer o certo por vezes é o mais duro, enquanto o desvio do caminho pode trazer graves consequências. Adoro a Sidse Babbitt Knudsen.

Sirât (FRA, ESP)  Parecia ser apenas um filme sobre a busca de uma jovem desaparecida, mas conforme ele foi passando, me fez pensar sobre muitas coisas. E quão trágico e efêmera pode ser a vida a partir de pequenas escolhas.

O Urso (The Bear — EUA — FX) — Belíssima quarta temporada. Parece que finalmente o Carmy e seus colegas estão resolvendo seus problemas.

The Gilded Age (EUA — HBO) — Adoro a versão americana de “Downton Abbey”, principalmente porque ela mostra um momento de transformação, a ascensão do trabalhador comum sem pedigree, o novo dinheiro do capitalismo se impondo diante dos velhos ricos, que vão perdendo prestígio e tendo que dividir o seu espaço na sociedade. Só gostaria que houvesse mais espaço para o baixo clero, os empregados, terem suas próprias histórias. É pouco em comparação com “Downton Abbey”.

Indomável (Untamed — EUA — Netflix) — Um policial traumatizado, um assassinato misterioso e toda uma trama intrincada descobrir a verdade. Tudo com imagens bem bonitas de um parque nacional dos Estados Unidos. É formulaico, mas bem legal. Só não faz sentido ter segunda temporada.

Olhos de Wakanda (Eyes of Wakanda — EUA — Disney Plus) — A animação mostra um grupo de guerreiros de Wakanda que ao longo da história humana recuperam objetos roubados do país. A premissa é boa, mas podia ser melhor. Por outro lado, é legal ver essa expansão do universo de Wakanda.

Book Review: “Atos Humanos”, de Han Kang

“Todos os dias observo a cicatriz que tenho na mão. Este sítio onde outrora o osso esteve exposto, onde uma secreção esbranquiçada escorra de uma ferida putrefata. Sempre que vejo uma vulgar esferográfica Monami, fico com a respiração presa na garganta. Espero que o tempo me arraste como água enlameada. Espero que a morte chegue e me limpe, me liberte da memória dessas outras mortes esquálidas que assombram os meus dias e as minhas noites.

Luto sozinho, dia após dia. Luto contra o inferno a que sobrevivi. Luto contra a realidade da minha própria humanidade. Luto contra a ideia de que a morte é a única maneira de escapar a essa realidade” (Pág. 146)

Quando Han Kang foi laureada com o Nobel de Literatura em 2024, a Academia Sueca destacou a “intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana” da autora.

Até então eu não conhecia a escritora sul-coreana. Mas a premiação acabou por me chamar a atenção para o seu trabalho descrito por quem o conhece e estuda como uma escrita experimental e pela sua capacidade de explorar a fragilidade humana em contexto de dor, conflitos emocionais e físicos e traumas históricos.

A promessa era de uma leitura interessante. Entretanto, depois de três livros, posso dizer que infelizmente Han Kang não é para mim.

Acho interessantes os temas que ela aborda, mas acho que a pegada experimental da escrita me afasta um pouco de sua arte. Pensando em retrospectiva, talvez tenha sido isto que tenha me feito achar “O livro branco” (2016) um pouco indecifrável aos meus olhos. Na ocasião, cogitei que o meu afastamento fosse causado por uma diferença na língua entre o coreano original e a tradução para o português. Hoje, porém, penso que embora este fator ainda tenha importância, o estilo também é algo que me afasta do livro.

Perto de “O livro branco”, “Atos Humanos” (2014) é mais linear. Tal qual “A Vegetariana” (2007), o meu favorito dos três que li.

Se em “A Vegetariana” há um elemento de horror em como a sua protagonista vai além do limite pelas suas ideias, em “Atos Humanos” o horror está no Estado, que promoveu um massacre na região de Gwangju após os protestos iniciados por estudantes e abraçados pela população contra o fechamento de universidades e a falta de liberdade de expressão em 1980.

A partir da busca do protagonista pelo cadáver do melhor amigo, vamos acompanhando as histórias daqueles que cruzam o seu caminho antes e depois da fatídica noite em que seu amigo foi assassinado.

Infelizmente, a prosa de Han Kang não me prende. É um livro que por vezes eu me vi até um pouco perdido e desinteressado.

Por outro lado, “Atos Humanos” tem alguns méritos. Entre eles, os seguintes:

1- Registrar a história para mostrar ao mundo que ela não deve se repetir.

2- Em meio ao soft power sul-coreano de K-pop e K-drama, mostrar um outro lado bem sombrio da Coreia. Lembrando que tem apenas 45 anos que tais eventos terríveis aconteceram. Do ponto de vista histórico, isso é uma vírgula no tempo.

3- Expor a crueldade do ser humano, que frequentemente flerta com a barbárie.

A segunda metade do livro é bem interessante na exposição destes três pontos.

Queria ter gostado mais de Han Kang, mas acho que depois de três livros nossa relação termina aqui. Três obras é uma boa medida para determinar se devo continuar ou não investindo tempo num autor. E para mim a escritora sul-coreana não funcionou. Posso mudar de ideia no futuro. Mas hoje o sentimento é de ponto final. 

domingo, 24 de agosto de 2025

“F1” fica entre a publicidade e o cinema

Duelo entre o jovem e o experiente: um clichê de roteiro
Com o sucesso da série da Netflix “Drive to Survive” e o novo boom de popularidade da Fórmula-1 , não ia demorar muito para que a entidade que controla o esporte investisse no cinema para trazer ainda mais visibilidade para o esporte. “F1: O Filme” é uma aposta até certo ponto certeira nesta direção.

Dirigido por Joseph Kosinski, de “Top Gun: Maverick” (2022), o filme tem uma receita de bolo simples: uma equipe em apuros e precisando vencer corridas para se manter no grid, um choque de gerações entre um piloto veterano (Sonny Hayes, vivido por Brad Pitt) e uma jovem promessa (Joshua Pearce, vivido por Damson Idris), um drama básico aqui e ali é os necessários momentos de redenção.

“F1” é redondinho. Diria até que é redondinho até demais. O filme muitas vezes navega numa linha tênue entre a publicidade e o cinema.

Como é uma produção “oficial”, ela procura não ferir suscetibilidades. Os pilotos reais da F1 são citados com respeito, ganham espaço, suas glórias são exibidas enquanto a fictícia equipe Apex luta por sua sobrevivência.

A própria existência da Apex em meio às equipes reais é uma forma de o filme não tomar lados, não fazer com que uma equipe real do grid tenha mais destaque do que outra num filme que pareceu com os espaços de cada escuderia milimetricamente calibrados de acordo com sua importância no grid e na história.

Tudo soa meio artificial no filme. Mesmo as idas e vindas da relação de Hayes e Pearce não têm muito drama. São apenas dois galos que precisam aprender a conviver de no galinheiro e até que eles não têm muito atrito real. Apenas divergências fruto de desinformação e disse me disse.

Também é difícil de engolir a quantidade de absurdos que acontecem no filme para fins de dramaticidade. Na F-1 real, acho que Hayes teria sido banido por conduta antidesportiva ou alguma coisa do gênero. Dizem que a inspiração do seu estilo arrojado foi Ayrton Senna. De fato, Senna era um adversário duro na pista e que muitas vezes estocava a corda dos limites. Mas Hayes é um personagem que só na ficção mesmo.

Por outro lado, o filme é divertido demais. Kosinski conseguiu levar para a pista as cenas eletrizantes que produziu no ar em “Top Gun”, fazendo com que sintamos a urgência e a necessidade de vitória da Apex na pista.

Ainda assim, “Drive to Survive” consegue ser ainda mais impressionante com as cenas reais das temporadas da F-1.

Mas não dá para negar que “F-1: O Filme” é muito bem feito. Eu não consegui tirar o olho da tela até o fim. E isso é mérito de um roteiro muito bom, ainda que previsível demais, da direção eletrizante de Kosinski e do trabalho dos atores.

Nota 7,5/10.

Book Review: “A morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstói

“Com a consciência disso, e ainda com a dor física, e ainda com aquele medo, tinha de se deitar na cama e, muitas vezes, não dormir a maior parte da noite. E de manhã era preciso levantar-se, vestir-se, ir ao tribunal, falar, escrever, e quando não era necessário ir lá, ficar em casa as mesmas vinte e quatro horas do dia, cada uma das quais era um martírio. E tinha de viver assim, à beira da morte, completamente sozinho, sem uma única alma que o compreendesse e tivesse pena dele”. (Pag 50)

Vladimir Nabokov considerava “A morte de Ivan Ilitch” uma das obras máximas da literatura russa. É difícil contra-argumentar um Nabokov e outras tantas figuras importantes que veem nesta pequena novela de Liev Tolstói como uma das obras mais importantes da literatura russa e talvez a mais relevante de Tolstói.

É óbvio que “A morte de Ivan Ilitch” tem inúmeras qualidades. Escrito logo após a conversão religiosa do autor entre 1879 e 1880, o livro conta a história de um juiz da alta corte que sofre com uma doença terminal.

A agonia e o sofrimento físico de Ivan Ilitch soam como uma espécie de pagamento pelos pecados de uma vida hipócrita e superficial, uma vida de mentiras e com um casamento celebrado por dinheiro, e não pelo amor.

A ideia de que vivemos uma vida vazia sobre a qual só nos damos conta no leito de morte perpassa todo o livro, que no fim narra a história de um homem medíocre que precisa passar por um sofrimento que é quase pedagógico.

O livro narra a vida, mas também o dor e a amargura de Ivan Illitch, que só encontra uma réstia de alívio na relação cordial com o empregado Guérrassim.

É curioso como Tolstói nesta fase convertida ao Cristianismo faz com que seu personagem sofra uma via-crúcis. Como Ivan Ilitch foi avaro em vida, a sua morte precisa ser dolorosa e agônica. E solitária. Embora tenha família, Ivan Ilitch se isola e quase deseja acabar com a tortura que sofre e que, consequentemente, impõe a todos.

Neste ponto, Tolstói se aproxima de Fiódor Dostoiévski no tratamento dado a seus protagonistas que não são tementes a Deus. Todos sofrem. Precisam sofrer para expiar seus pecados.

Se há uma semelhança entre Ivan Ilitch e personagens como Raskólnikov, de “Crime e Castigo” (1866) e Ivan Karamazov, de “Os Irmãos Karamazov” (1880) eles se afastam no fim de suas jornadas. Enquanto os personagens de Dostoiévski encontram algum alívio e até redenção quando aceitam o sofrimento espiritual e se voltam para Cristo, Ivan Ilitch resiste até o fim ao mergulho na fé. Por isso, a sua morte é tão seca, vazia e direta.

Não tenho repertório para julgar se “A morte de Ivan Ilitch” é de fato uma das obras máximas da literatura russa. No meu duelo imaginário com Nabokov, só posso esperar a derrota.

Por outro lado, de um ponto de vista estritamente pessoal, gosto mais de “Anna Karenina” (1878). Penso ser uma obra mais interessante de se ler. O que, obviamente, não faz com que “A morte de Ivan Ilitch” seja um livro ruim. Apenas prefiro Dostoiévski quando o assunto é sofrer por falta de fé.

sábado, 16 de agosto de 2025

“Elskling” e o preço da falta de terapia

Helga Guren é o grande destaque do filme
Primeiro longa-metragem da diretora Lilja Ingolfadottir“Elskling” é uma pedrada que em alguns momentos lembra um outro excelente filme norueguês: “A pior pessoa do mundo” (2021). Talvez “Elskling” seja até um pouco mais amargo, mas na essência eles guardam alguma semelhança. Especialmente na busca de suas protagonistas em investigar seus problemas, dramas e dilemas internos.

Aqui, vemos Maria (a espetacular Helga Guren), lidando com um segundo casamento que entra num ponto de desgaste após sete anos. Com quatro filhos para criar e um marido que embora a ame está muito ausente pela natureza do seu trabalho, ela se vê sufocada a ponto de explodir de raiva constantemente.

Por um momento, o filme parece que vai fazer o inventário de um relacionamento que começou tão lindamente como o início do filme mostra, mas que vai acabar terrivelmente como em muitos divórcios. Algo como “História de um casamento” (2019).

No entanto, Ingolfsdottir está mais interessada em ir mais a fundo do que o filme americano e expor a gênese dos nossos problemas. E a solução (spoiler: é terapia).

“Elsklimg” levanta a ideia de que se não cuidamos de nossos traumas de infância, eles serão monstros que baterão na nossa porta em nossos relacionamentos futuros. E isso fica muito claro nas atitudes, medos e inseguranças de sua protagonista.

E se não conseguimos perceber as sutilezas que Guren consegue entregar tão bem, o filme desenha para nós ao mostrar a relação de Maria com a sua filha mais velha e com mãe, num dos pontos de virada do filme que nos faz compreender tão bem como aquela alma está quebrada e precisando de ajuda.

“Elskling” mostra como os traumas ajudam a impor barreiras mas nossas relações e criam dificuldades para que as pessoas consigam se conectar. Nem Maria, nem Sigmund (Oddgeir Thune) são culpados por serem quem são. Foi o ambiente que os fez assim. A dificuldade está em romper as barreiras para que eles possam se reconectar.

De certa forma, “Elskling” é um filme anti-Disney. Se o estúdio americano gosta de vender a ideia mitológica de alguém que é feito para uma outra pessoa e vai cuidar de você e o casal será feliz para sempre, “Elskling” prefere mostrar a vida como ela é: somos almas quebradas, com criações imperfeitas, e precisamos lidar com nossos traumas para fazer esta relação dar certo. Ou seguimos em frente até encontrarmos alguém que esteja disposto a travar esta árdua batalha conosco.

“On Falling” e a solidão de ser imigrante

Joana Santos soube interpretar as dores do imigrante
Assistir a “On Falling” na condição de imigrante é saber identificar todos os signos retratados pela diretora Laura Carreira.

Da vida em comunidade dividindo casas com estranhos à sensação de não pertencimento a lugar nenhum, passando pelo olhar solitário de sua protagonista, Carreira conseguiu resumir muito bem a sensação que muitos imigrantes passam.

Seu filme é uma jornada dura de uma imigrante portuguesa que vive na Escócia em busca de uma vida melhor, mas se vê trabalhando em subempregos, com uma tremenda dificuldade financeira e até passando fome e frio.

É curioso que o nome da protagonista seja Aurora, cujo significado é o amanhecer, o raiar do dia, quando a Aurora de “On Falling” parece estar sempre eclipsada pela vida medíocre de casa-trabalho-casa a que somos forçados a nos impor especialmente pelas dificuldades financeiras.

E como a atriz Joana Santos consegue com poucas palavras e alguns gestos nos contar tanto sobre esta Aurora, uma personagem que está no limite do desmoronamento físico e psicológico. A cena da entrevista de emprego de Aurora é de partir a alma, por revelar os sonhos em contraste com a realidade desumana.

“On Falling” nos mostra como estamos caminhando muito mal como sociedade. Os sinais estão muito claros. Na Escócia ou em Portugal. No Brasil ou na Irlanda. Onde quer que se vá, o cenário do mercado de trabalho é desanimador. Os imigrantes são a mão de obra frágil e barata que podem ser aproveitadas por qualquer empresa sem muitos escrúpulos. E as soluções estão longe de ver o raiar do dia.

Book Review: "O Padrinho", de Mário Puzo

“A transformação que Michael sofreu foi tão extraordinária que os sorrisos desapareceram dos rostos de Clemenza e Tessio. Michael não era alto nem de constituição robusta, mas a sua presença parecia irradiar perigo. Nesse momento, ele era a reencarnação do próprio Don Corleone. Os seus olhos adquiriram um tom castanho pálido e o rosto estava completamente branco. Parecia estar disposto a atirar-se a qualquer momento sobre o irmão mais velho e mais forte. Não havia dúvida de que se ele tivesse uma arma na mão Sonny estaria em perigo. Sonny parou de rir e Michael perguntou-lhe numa voz extremamente fria:

- Pensas que não sou capaz de fazê-lo, meu sacana?” (Pág. 119)

Se “O Poderoso Chefão” é um grande filme, um dos maiores da história do cinema, é também porque teve como base um grande livro escrito por Mário Puzo.

Pode-se dizer que “O Padrinho” (a versão que eu li foi em português europeu, daí o nome diferente do livro cujo nome original é “The Godfather”) é a pedra fundamental da literatura de máfia, ainda que o primeiro texto a tratar do tema seja a peça de teatro “Os mafiosos de Vicaria”, de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca, de 1863. Se o termo “máfia” nunca foi usado nesta peça, foi nela que pela primeira vez se falou numa gangue que tem um chefe, um ritual de iniciação e conceitos como a da omertá, o código de silêncio dos mafiosos.

Embora o livro de Puzo não tenha sido o primeiro a tratar do tema, foi no seu texto publicado em 1969 que se popularizou o termo máfia e se tratou de forma mais direta e detalhada de toda a capilaridade de uma organização criminosa como a máfia siciliana, com influência em todas as esferas de poder de um país.

Seu livro é delicioso e extremamente rico em detalhes ao contar a saga da família Corleone, seus conflitos e disputas de poder com as outras famílias mafiosas de Nova York, ao mesmo tempo em que retrata a ascensão e construção de poder de Don Vito Corleone, um imigrante italiano que chega aos Estados Unidos e enxerga o país como a verdadeira terra das oportunidades para construir o seu império.

Corleone tem três filhos, o impulsivo Sonny, seu sucessor natural, Freddo, o jovem que não foi feito para trabalhar nos negócios da família, e Michael, o mais inteligente de todos. O que rejeitou seguir a vida na sombra do pai, virou um oficial do Exército que lutou na Segunda Guerra Mundial e quer construir uma história com a sua namorada Kay e longe do mundo da máfia, mas que se vê cada vez mais dentro daquele mundo conforme os acontecimentos do livro vão se sucedendo.

O livro mostra com ainda mais riqueza como Don Corleone e Michael são personagens muito complexos e mais parecidos do que se pode imaginar. Vito tem uma calma, uma frieza e parece estar pensando muito a frente dos demais. Por isso é tão respeitado e temido. Michael é frio e calculista, e também tem um certo dom de enxergar o cenário futuro, ainda que não com a mesma habilidade do pai.

Os dois são homens contidos, mas que fazem o que é necessário pela família. Seus ritos de passagem foram semelhantes e mudaram completamente as suas histórias. Pai e filho estão extremamente ligados, por mais que Michael seja o mais distante dos três filhos de Don Corleone.

Ler o livro anos depois de ter visto a trilogia de Francis Ford Coppola enriquece ainda mais estes dois personagens, que de forma muito certeira foram interpretados por Marlon Brando (primeiro filme), Robert De Niro (segundo filme) e Al Pacino, o Michael Corleone em toda a trilogia. A escolha de Pacino então foi certeira na época. Ele ainda não era um ator conhecido, mas não conseguiria imaginar outro ator melhor para este papel.

Fugi um pouco do livro, pois não tem como não associar o texto de Puzo ao filme “O Poderoso Chefão”, que também contou com Puzo como roteirista.

Mais de 50 anos depois do seu lançamento, “O Padrinho” pode ser visto como um clássico inabalável da literatura de máfia. Através da ficção com um fortíssimo fundo de verdade (e a máfia interferiu nas filmagens do filme, como é bem retratado na série “The Offer”), o livro de Puzo abriu caminho para a exploração de um gênero e para livros-reportagens absolutamente fundamentais para entender estas organizações criminosas como os trabalhos de Roberto Saviano em “Gomorra” (2006) e “Zero Zero Zero” (2013).