![]() |
| Reinsve está maravilhosa no papel |
Há filmes que a gente consegue saber desde o início que estarmos diante de algo diferente. Eu tive está sensação nos primeiros minutos de “Valor Sentimental” (Affeksjonsverdi, no original), o novo filme do diretor dinamarquês Joachim Trier, o mesmo do excelente “A pior pessoa do mundo” (2021).
Nestes primeiros minutos, Trier usa a casa que pertenceu a diferentes gerações da mesma família como uma metáfora para uma exploração da intimidade desta família, revelando memórias, fraturas e conflitos não resolvidos.
Os primeiros minutos retratam a casa tendo como texto de fundo uma redação em que a jovem Nora Borg escreveu para a escola usando a casa como a protagonista. Eles dão o início de uma jornada de investigação de traumas e reconciliação pela arte.
Pulando para o presente, o cineasta Gustav Borg (Stellan Skarsgard numa atuação absolutamente fenomenal), aparece no funeral do sua ex-mulher e se vê diante de suas duas filhas, Nora (Renate Reinsve, ainda mais impactante e cheia de nuances do que no filme anterior de Trier) e Agnes (Inge Ibsdotter Lilleaas, que eu não conhecia, mas cujo trabalho magistral não fica nem um pouco atrás dos dois protagonistas). Logo de cara, percebe-se que há uma relação com arestas que precisam ser aparadas ali.
Borg representa o clichê do cineasta livre, que viveu para o cinema, negligenciando o tempo para cuidar das filhas. Nora é uma atriz de teatro de sucesso que frequentemente tem ataques de pânico e parece ter dentro de si uma tristeza e assuntos não resolvidos. Agnes é uma historiadora que não quis seguir a carreira artística, embora tenha sido a estrela mirim de um dos filmes de sucesso de Borg. As duas se ressentem da falta do pai, são magoadas pela sua ausência que vem de muito antes de sua separação da mãe.
Borg, no entanto, parece querer tentar uma reaproximação com a família. E o caminho que ele usa é o que ele mais conhece e se sente à vontade. Depois de 15 anos sem filmar, o diretor tem um roteiro novo e quer oferecer à filha. O roteiro é perfeito para ela, ele diz. Ela, no entanto, se recusa a filmá-lo numa cena em que Skarsgaard e Reinsve duelam com expressões cheias de sutilezas e extremamente ricas pelo que não é dito. Nora diz não conseguir trabalhar com Borg porque sequer consegue dialogar com ele. Fica claro desde o início que eles têm algo que os afasta.
Borg, entretanto, precisa fazer este filme. Ele é parte do seu processo de investigação do motivo do suicídio de sua mãe quando ele tinha apenas sete anos.
É quando entra em cena a famosa atriz americana Rachel Kemp (Elle Fanning, brilhante). Ela tem o dinheiro, os recursos e o nome para atrair a atenção de grandes produtoras como a Netflix. Estes momentos que envolvem a participação de Borg em um festival de cinema e a produção para a Netflix são o máximo de alívio cômico que “Valor Sentimental” nos entregará.
Kemp se esforça muito para fazer o filme, mas por mais excelente que seja como atriz, e há algumas cenas realmente maravilhosas de Fanning neste processo, ela sente que há algo de errado. Que não devia estar ali. Embora não exponha isso para além de sutis comentários e olhares, Borg também sente que algo não está certo. Mas entre o filme possível e o não filme, ele mantém os ensaios e a produção de pé.
Paralelamente, Agnes começa a investigar o passado da avó. Sua prisão e tortura por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Ali temos vislumbres do que a mãe de Borg viveu. Vislumbres para tentarmos conectar com sua investigação pela arte.
É curioso que Trier coloque no centro desta história um diretor, uma atriz e uma historiadora. De um lado, Borg quer fazer o filme para tentar compreender as razões do suicídio da mãe. Mas o roteiro, como ele sempre deixa claro, não é (somente) sobre ela, mas também sobre a filha, Nora, que já mais para o fim do filme, descobrimos que também tentou tirar a vida em algum momento no passado.
Do outro, temos a historiadora, a acadêmica buscando dados e fatos do passado para compreender não apenas o passado, mas também o presente.
As duas camadas são importantes para nos darem pistas para construir o quebra-cabeças daquela família com relações fraturadas pelo tempo, pelo afastamento, por escolhas equivocadas, pela falta de diálogo.
Trier construiu em “Valor Sentimental” um filme monumental. É um trabalho sobre memória e o poder reconciliador da arte que conta com atuações soberbas dos seus principais atores. Se eu só pudesse escolher um filme para levar de 2025, definitivamente seria este.
Nota 10/10.

Nenhum comentário:
Postar um comentário